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CINEMA | Eisenstein, hoje

A atualidade do cinema de Eisenstein está, sob o ponto de vista revolucionário, na sua capacidade de instruir e libertar o olhar numa direção transformadora.

domingo 5 de abril de 2015 | 00:01

Serguei Eisenstein está em cena neste ano de 2015, muito mais por razões de fórum íntimo do que pela sua contribuição revolucionária no plano do cinema. Se o divórcio entre arte e vida pessoal é fundamentalmente uma atitude burguesa, que separa num artista as esferas pública e privada, a mídia capitalista nutre uma verdadeira tara sensacionalista pelos aspectos pessoais de um artista para, em seguida, colocar num plano inferior o significado da sua obra. No caso de um artista comunista como Eisenstein, os urubus ficam ainda mais alvoroçados: os comedores de carniça em questão dizem respeito a setores reacionários de uma crítica cinematográfica que, mergulhada na polêmica cinebiografia "Eisenstein in Guanajuato", do diretor Peter Greenaway, mobiliza-se para fazer dos erros políticos e culturais do stalinismo fatos que condenam a própria revolução socialista: segundo esta ótica a criação artística e a sexualidade não poderiam se desenvolver livremente num regime socialista. Para que possamos desmentir este papo furado, precisamos ter enquanto munição o pensamento cinematográfico do próprio Eisenstein e sua utilidade para a classe operária hoje.

Em fevereiro passado, boa parte da crítica cinematográfica virou suas atenções para o filme de Peter Greenaway. Ambientado no início dos anos trinta, quando Eisenstein encontrava-se no México para a realização do projeto cinematográfico que ficaria posteriormente conhecido como “Que Viva México!", o longa de Greenaway apresentaria um olhar íntimo sobre Eisenstein; o que por sua vez culmina na questão de uma suposta homossexualidade. Inquestionavelmente, as questões de cunho sexual não se separam do caráter político emancipador da revolução (Wilhelm Reich, por exemplo, foi preciso neste tema). Este é um assunto da maior importância, não apenas para entendermos a vida de Eisenstein, mas para compreendermos a repressão sexual enquanto sintoma cultural da contra-revolução stalinista: se durante os anos vinte a União Soviética apresentava possibilidades libertadoras para a arte, o amor e o cotidiano, o stalinismo deu um golpe devastador sobre o modo de vida. As tesouras não agiam apenas sobre os filmes, mas sobre a constituição da personalidade humana. Sem dúvida que a geração de Eisenstein sofreu com isso (o cineasta teria obtido uma liberdade pessoal maior em solo mexicano). Entretanto, não podemos compactuar com alguns críticos que fazem do socialismo a raiz da opressão na vida pessoal e na criação artística, perante o fato do socialismo revolucionário ser o oposto do stalinismo; não admitindo assim formas de repressão cultural (do controle burocrático sobre o trabalho artístico até o às formas de violência e opressão contra as mulheres, os homossexuais e as mais variadas minorias), devemos enfatizar o que a crítica burguesa de cinema negligencia: o caráter revolucionário do cinema de Eisenstein.

Certa feita Eisenstein realizou a seguinte comparação entre o cinema e o teatro: “É absurdo procurar aperfeiçoar o arado quando se dispõe do trator". Apesar da injustiça metafórica com o “teatro-arado", é possível observar que o autor concebia o cinema não enquanto divertimento inocente, mas como um instrumento que, a exemplo de um trator, pode apresentar realizações de um trabalho concreto: nos primeiros anos do governo soviético dirigir um filme era parte de um conjunto de atividades em que a máquina (da câmera ao trator) construía um novo mundo, agindo na formação política da sociedade. Como se sabe, o próprio Lênin considerou naquele momento o cinema como a mais importante de todas as artes. Eisenstein coloca esta evidência em prática durante a década de vinte: num momento em que o Proletkult tem no bojo de suas tarefas a realização de filmes pautados na História do movimento operário russo, Eisenstein inicia sua brilhante cinematografia com “A Greve” (1924). Talvez o grande barato da estética eisensteineana esteja no sentido político e poético contido na montagem do filme. É, pois, a montagem a principal sacada do pensamento cinematográfico de Eisenstein na época do Construtivismo russo.

Eisenstein revela, através da justaposição de imagens, a importância do contraste na montagem do filme. As relações imagéticas são, para ele, lições instantâneas da dialética marxista. Em Eisenstein o espectador participa ativamente/mentalmente da montagem cinematográfica: a percepção do filme realiza-se pelas partes que constroem o todo. O espectador deste tipo de cinema não é aquele pobre diabo da nossa cultura, que vive à mercê dos imperativos da linguagem publicitária, tendo seus desejos e sua consciência atirados de um lado para o outro numa realidade alienada e feita de mercadorias. O que interessava para o Eisenstein dos anos do construtivismo russo era proporcionar choques emocionais que permitiam ao espectador construir, junto com o olhar do cineasta, o significado do filme. Como vem sendo apontado por estudiosos no assunto, trata-se de conhecer para construir, tanto a obra de arte quanto a própria realidade política.

Nem é preciso dizer que este pensamento estético é hoje uma ameaça para a classe dominante. Já imaginaram se o proletariado se arma com as câmeras digitais para colocar em prática o método cinematográfico de Eisenstein? Não apenas o cinemão seria colocado em cheque, mas toda a estrutura midiática capitalista baseada no controle e na manipulação das informações. Portanto, a atualidade do cinema de Eisenstein está, sob o ponto de vista revolucionário, na sua capacidade de instruir e libertar o olhar numa direção transformadora. Formar um público para este tipo de cinema é algo que a esquerda revolucionária deve almejar; por exemplo, com a exibição e discussão de filmes realizados pelos trabalhadores, nos mais diferenciados espaços de trabalho e estudo.

Eisenstein teve que enfrentar a barra do stalinismo. Humilhações, retratações e puxadas de orelha eram parte da rotina do cineasta. Ainda que por pressão ele tenha recorrido a alguns elementos visuais do realismo socialista, Eisenstein era suficientemente malandro para expor no plano do filme as contradições históricas da ex-URSS. Hoje, Eisenstein tem a sua memória ameaçada por uma crítica burguesa que reconhece no cineasta um “artista genial" cujo “erro foi o comunismo". Cabe a nós fazer uma interpretação revolucionária do legado do diretor de "O Encouraçado Potemkin".


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