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Barbie diante do "mundo real"

Aviso: o texto contém spoiler.

terça-feira 25 de julho de 2023 | Edição do dia

Atualizado 27/07/2023

Eu tinha comigo que a boneca Barbie estava em decadência, e inclusive, sem querer parecer repetitivo, poderia ligar isso com a última grande clivagem no capitalismo, a recessão de 2009. Mas não foi exatamente uma surpresa quando adentrei um shopping de Recife na noite desta segunda para assistir “Barbie” e a máquina do estacionamento alertava os pais sobre os cuidados com as “agitações” das crianças. Não era para menos. Cinema lotado, vestimentas rosas de todo tipo inundavam o ambiente, das bonecas para a vida real, um fenômeno ideológico vivo da indústria cultural com ampla difusão em setores de massa.

Surgiu-me uma hipótese sobre o filme: “existe uma Barbie dentro de você”. O problema é que existem muitas coisas na Barbie que parecem estar em contradição com os tempos, então o desafio do filme era reinventar esse símbolo para justificar a combinação entre as novas ideias e as velhas ideologias.

Talvez aos olhos de pessoas que acompanharam as bonecas nos anos de auge do neoliberalismo, a imagem da Barbie não estava associada a nada de feminista ou progressista. Uma mulher rica, loira, magra, que vive no mundo encantado da Barbilândia. Mas a história da boneca não foi sempre exatamente assim e é revelada na primeira cena do filme. Utilizando a clássica cena de “2001: uma odisseia no espaço” de Stanley Kubrick (o que não deixa gerar consternação para amantes do cinema) em que o centro da cena no antigo filme é a emergência da forma humana de trabalho, o que surge nesse novo é a Barbie, uma boneca de 1959 que revolucionou os brinquedos femininos na medida em que até então o único que se oferecia as crianças eram “bebês”. Então a inovação da Barbie era fantasiar, na brincadeira, que você é uma mulher, inclusive, uma mulher “independente”, que é médica, advogada, presidente, e não se casa com Ken[1].

Tendo em vista que é um brinquedo relativamente barato nos Estados Unidos, seu sucesso foi extraordinário, alcançando a ampla maioria dos lares no país. E ao contrário do que possa parecer, a Barbie causou num primeiro momento a reação dos conservadores, afinal, era transmitir a vida de uma boneca adulta para crianças. De fato, o fenômeno Barbie podia ser relacionado ao feminismo, mas em sua versão liberal, e no caso dela burguesa, como parte da disputa ideológica em torno da segunda onda.

Mas voltemos ao filme, dirigido por Greta Gerwig, com um orçamento de 145 milhões, com o desafio colocado em uma pergunta: como reinventar a Barbie atualmente?

Parte da receita era sem dúvida o contexto pós-primavera feminista da década de 2010. Obviamente a produção do filme estava atenta a isso. Fala-se do patriarcado, do empoderamento feminino, de uma certa “masculinidade tóxica”, se humaniza a Barbie e se “barbifica” os humanos. Desperta em setores massivos a tranquilidade de ter os momentos Barbie como parte inclusive de uma coisa maior, a luta das mulheres. A nova Barbie não pode ser a “patricinha de Beverly Hills” dos anos 1990, tem que ser diferente para ser a mesma. No debate contemporâneo dos Estados Unidos, entre Democratas e trumpistas, a Barbie deveria tomar partido: continua liberal e burguesa, mas se delimita da rica fascista (quer dissociar a imagem clássica da Barbie da extrema-direita) e, de outro lado, ela deve se reconstruir como feminista, dialogando com o sentimento da juventude atual.

Indo direto ao ponto nesse aspecto, naturalmente pode-se analisar várias cenas, mas queria centrar em um ponto, porque a insistência dele revela os verdadeiros receios por trás do roteiro: o filme ganhador do Oscar deste ano “Everething, everywehere at all once” , conforme escrevemos aqui, traça uma grande jornada pelo multiverso, múltipas vidas, múltiplos contexto para terminar na.... redenção mãe e filha como um dos temas centrais. E chama a atenção que uma das teses fortes do filme da Barbie é essa mesma, da relação mãe e filha. Trata-se de um problema geracional objetivo dos Estados Unidos, um problema "estratégico" da hegemonia dominante: uma geração formada nos anos 1980 até a década de 2000, auge do neoliberalismo, e uma jovem geração formada no pós-crise capitalista de 2008, que, entre outras coisas, não está nem aí para a Barbie.

Nesse filme então tem esse encontro de mãe e filha, mas mediado pela boneca (e sua crise existencial). Porque o processo de humanização da boneca, seus anseios e angústias, é parte desse encontro de gerações.

Sasha, que é a filha, no primeiro “encontro” com Barbie diz que ela é um símbolo da objetificação da mulher, que com seus padrões ajuda a atacar a autoestima das jovens, um símbolo capitalista e, nas palavras dela, fascista. Essa passagem, embora um pouco hiperbólica, possivelmente é o mais importante do filme, porque indica duas coisas decisivas: primeiro, que existe nos EUA uma geração de jovens que pensam mais ou menos assim, tem certa simpatia ao socialismo e estão com críticas (por vezes expressivas) a esses símbolos do capitalismo. Segundo, que se deriva dessa constatação, que esse setor (os embriões de uma ideologia anticapitalista na juventude) é extremamente perigoso para a hegemonia do sistema, de modo que é preciso criar e recriar os símbolos de modo a dialogar e influenciar essa nova juventude.

O que existe de fundo no filme então são os aprendizados de Sasha, compreendendo melhor sua mãe (e a importância da Barbie para sua geração), compreendendo o "feminismo" da Barbie e se reconciliando. Essa é a profunda imagem ideológica oculta que se faz presente. E existe uma segunda questão, que está numa “camada” ainda mais sutil do filme: é que mãe e filha são de origem latina, e a Barbie é o símbolo mais “norteamericano” por excelência. Ou seja, latinos podem contribuir até mesmo para a Barbie perceber seu lado empoderado, crítico, feminista, em sua dissonância cognitiva (“saberes subalternos”?). Mas de sua parte podem aprender um pouco com o american way of life (e que quem manda na Barbilândia é a Barbie).

Interessante notar ainda que se existe esses “diálogos” sobre a temática da mulher, na questão da sexualidade é chamativo como o filme é em choque contra a sensibilidade atual de um setor de vanguarda da juventude que vem levantando um questionamento às velhas fórmulas patriarcais fetichizadas de gênero. Em poucas palavras, o filme reafirma o “masculino” e “feminino”, naturalmente criticando os “excessos”, e não dialoga em nada debates de vanguarda LGBTQIAP+, ao menos com o público queer, o que é chamativo – e não precisamos nem elucubrar sobre a teoria dos atos ilucionários de Judith Butler e o aspecto performativo do gênero para refletir que a "performance" em Barbie é digna da velha família heterossexual bem caricata do americanismo. Isso não significa que não tenha entrada em setores LGBTs em camada mais amplas, explorando o "feminino" da Barbie.

Pois bem, nos debates com a juventude, do ponto de vista da mulher a senha é o feminismo liberal, do ponto de vista da sexualidade se conservam os padrões e da questão negra a própria Barbie fala por si só (a questão étnica aparece mais no dialogo com a mãe e filha latinas). Valeria um artigo só analisando como tem se destacado essas figuras loiras, brancas e burguesas - no New York Times saiu uma nota interessante relacionando a Barbie com o fenômeno Taylor Swift.

Essa preocupação para o grande capital se liga diretamente com outra na atual situação norte-americana: a organização do mundo do trabalho, e sua expressão na sindicalização. Mas pera aí! Não teve lutas, sindicatos e nada disso no filme. Sim, chama a atenção que no fundo da fantasia da Barbilândia não existe o mundo do trabalho, só existe a sociedade de consumo. E quando aparece os operários são em duas cenas, uma para serem machistas com a Barbie (os "peões da construção") e outra quando estão construindo um muro e terminam por apanhar.

Não teria nenhuma novidade em um filme de Hollywood que o mundo do trabalho aparecesse só assim, mas teve uma terceira aparição que destoou completamente das anteriores e serve de inspiração para nossa conclusão: a greve dos atores de tela ­– Federação Americana de Artistas de Televisão e Rádio. O questionamento as empresas produtores lucrando milhões com filmes e atores e trabalhadores das artes em condições cada vez mais precárias – claro que as figuronas de Hollywood ganham melhor, mas o cinema não é feito só deles e mesmo eles estão aderindo a greve. A própria distribuição do filme Barbie está sendo afetada. Se outras imagens poderiam dimensionar melhor, basta dizer uma: a atriz Margot Robbie, a protagonista do filme, ao ser questiona três dias atrás se apoiava a greve respondeu sem hesitar que “apoiava absolutamente” e continuou: "apoio totalmente todos os sindicatos e faço parte do SAG (sindicato dos atores de Hollywood), então eu os apoiaria absolutamente". Reflitamos: se os artistas de Hollywood estão falando assim, o que não pode surgir da classe trabalhadora?

O começo da crise existencial da Barbie no filme é quando a personagem pergunta se os demais "já pensaram na morte?". Vindo dela, parece uma pergunta da própria classe dominante norteamericana. Especialmente quando uma geração de jovens naquele país não quer ser Barbie, e a sindicalização nos Estados Unidos passa por setores da juventude trabalhadora, incluindo setores negros, mulheres e LGBTs, das grandes empresas e até chegar em Hollywood - o novo contexto do "mundo real".

Notas

[1] Para os que arranham o espanhol, uma excelente indicação é o podcast de Celeste Murillo, no link a seguir, faz uma exposição histórica excelente sobre a origem e evolução da boneca Barbie: https://www.youtube.com/watch?v=nTaP0XiDZMg&t=11s




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