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FOME NO BRASIL | Quando a fome bate à porta: O Brasil profundo interpretado a partir da leitura de Josué de Castro

Obra de Josué de Castro - Geografia da fome: o dilema brasileiro : pão ou aço - é um clássico do pensamento social e geográfico mundial que, apesar de ser escrito em meados do século XX, se torna atual numa realidade em que o Brasil vivencia o fenômeno da fome em grande escala.

Kleiton NogueiraDoutorando em Ciências Sociais (PPGCS-UFCG)

sexta-feira 21 de maio de 2021 | Edição do dia

Imagem: www.basilio.fundaj.gov.br

Estômago vazio, boca seca e salivação em excesso, dor de cabeça e desânimo. O que muitos poderiam diagnosticar como alguma patologia clínica e estritamente biológica, trata-se de um fenômeno que em pleno século XXI existe e se faz presente no Brasil: a fome. Os dados divulgados pela Rede de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional mediante análise de inquérito domiciliar aplicado no ano de 2020 evidenciam a concretude empírica do fenômeno da fome. De uma amostragem probabilística de 2.180 domicílios com cobertura em todas as regiões do país, os resultados indicaram que mais de 55% dos domicílios investigados tinham pessoas com insegurança alimentar, o que implica no fato de haver escassez de alimentos de forma regular. Essa realidade se torna mais profunda nas áreas rurais em que a indisponibilidade de água para a produção de alimentos, e para a criação de animais é fato concreto.

As desigualdades regionais também são evidenciadas, especificamente no Norte e no Nordeste do Brasil, em que se vive com menos rendimento mensal, quando comparado às demais regiões. Todavia, para além da abstração estatística, os dados demonstram que a fome tem cara, cor e sexo. A pesquisa evidenciou que a insegurança alimentar é mais forte nas mulheres negras, desempregadas ou naquelas que ocupam trabalhos informais e em pessoas com menor escolaridade. Há também o fato de que, em termos nacionais, dos 211,7 milhões de brasileiros(as), um total de 116,8 milhões convivem com algum grau de Insegurança Alimentar e, destes, 43,4 milhões não tinham alimentos em quantidade suficiente e 19 milhões de brasileiros(as) enfrentavam a fome em 2020.

A pandemia de Covid-19 sem dúvida alguma aprofundou esse processo, mas tampouco é a causa exclusiva e única que explica o fenômeno. O estabelecimento de medidas restritivas, o aumento do desemprego que segundo dados oficiais do IBGEatinge um total de praticamente 14% da população brasileira (dados do 4º trimestre de 2020) além dos quase 6 milhões de desalentados (pessoas que já desistiram de procurar emprego), mostram a faceta cruel do regime golpista que vivenciamos com a tutela do STF; legislativo e executivo.

Dessa forma, quando não nos matam pela Covid-19, nos obrigando ao trabalho sem nenhum tipo de segurança, com ônibus lotados, hospitais saturados e sucateados pelos constantes ataques ao SUS, e um mísero auxílio emergencial que não consegue prover nem as condições mínimas de existência, querem nos matar de bala, como vimos a barbárie da chacina do Jacarezinho, no Rio de Janeiro , e também pela fome, como temos evidenciado.

Mesmo diante dessa realidade, Bolsonaro tem apenas o objetivo de realizar ataques contra a classe trabalhadora. Pouco importa o preço do arroz, feijão e da carne. Enquanto o presidente apresenta gastos exorbitantes nas férias, a população é obrigada a sobreviver com um auxílio emergencial no valor de R$ 367,00 enquanto a cesta básica varia do menor valor de 461 reais na Bahia e 633 reais em Santa Catarina. Uma verdadeira piada com as massas trabalhadoras que enfrentam além da pandemia e o desemprego, a carestia e a fome.

Entretanto, como pode haver fome num país como o Brasil, cuja dimensão continental, territorial e de recursos naturais chama atenção em todo o mundo? Qual a chave e o mistério que explica, que em um país com tantas riquezas, seu povo passe tanta fome?

Essa, sem dúvida, não é uma reflexão atual, muito pelo contrário, em 1946 o médico e geógrafio brasileiro Josué de Castro refletia em seu livro - Geografia da fome: o dilema brasileiro : pão ou aço - a dura realidade de um país com recursos naturais em abundância, mas refém de um sistema desigual e concentrador de tais recursos nas mãos de poucos, tomando assim a fome não um fenômeno biológico, mas social.

Josué tinha uma visão internacionalista, para esse intelectual brasileiro, estava claro que as necessidades alimentares dos seres humanos não eram satisfeitas de modo permanente, para grande maioria da população mundial. Longe de ser um revolucionário, elemento que não desmerece suas reflexões e análises científicas, esse autor nos traz grandes ensinamentos sobre a formação social brasileira, contribuindo assim, com a produção de evidências e pesquisas científicas que denunciam a dura realidade dos oprimidos e subalternizados do Brasil e do mundo.

A famosa frase de Josué:

“Enquanto metade da humanidade não come, a outra metade não dorme, com medo da que não come”

Pode ser lida de forma clara numa chave que Marx e Engels já expressavam n ́O manifesto do Partido Comunita: a luta de classes. A burguesia versus o proletariado. A classe dos possuidores dos meios de produção contra a classe daqueles que precisam vender a força de trabalho para sobreviver. É a luta das Marias e Joãos que trabalham de forma árdua na pandemia, mas não possuem a mínima condição de repor suas energias, de ter uma boa alimentação, lazer, moradia, educação e saúde de qualidade, contra os burgueses, donos de grandes empresas e redes de comércio do Brasil, que se ancoram no Estado para fazer valer seus interesses de classe.

Josué de Castro teve a sagacidade de entender que o fenômeno social da fome está bastante vinculado à própria forma como em nosso país, a posse de recursos e principalmente da terra é concentrada. Apesar de ser uma obra do século passado, parece que foi escrita ontem. Não é possível entender o Brasil sem considerar esses elementos, o grande latifúndio e a produção de uma lógica capitalista que trata os alimentos como mercadorias. É a concretude que Marx já falava n´O Capital: ao capitalista não importa se a mercadoria vai atender uma necessidade do estômago, pois a necessidade não é considerada, apenas a sede pela acumulação de capital.

Trazendo essa reflexão para o cenário brasileiro, percebemos que em 2020, o Brasil produziu alimentos que daria para suprir cerca de 10% da população de todo o mundo e mesmo na Pandemia de Covid-19, o setor do agronegócio conseguiu aumentar a produção em 11%. A soja, por exemplo, um dos carros chefe desse negócio, parece ser produzida num Brasil sem pandemia, feito de máquinas, amplos campos e latifúndios a perder de vista. De acordo com os dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) a produção desse grão no Brasil cresceu cerca de 4% em 2021, alcançando 38,5 milhões de hectares. Mas, se engana quem pensa que toda essa produção serve para alimentar o povo brasileiro, pelo contrário, serve exclusivamente para os interesses de exportação. Com esse estímulo à produção de monoculturas em larga extensão ou na lógica do “agro é pop” da rede globo, o país sofre com o aumento de produtos como feijão e arroz, alimentos básicos na mesa da classe trabalhadora brasileira.

Nesse sentido, retomar Josué de Castro é entender que esse intelectual também denunciou essa dura realidade, e apesar de mais de 70 anos da primeira edição de Geografia da fome, o latifúndio e a necessidade de uma reforma agrária ainda estão presentes. Mesmo que os governos do PT, através de políticas como Bolsa Família e fome zero, conseguissem tirar o país do mapa da fome, tais políticas não conseguiram ser duradouras, pois não combateram nenhum problema estrutural. Pelo contrário, vimos como a ampliação de registros em carteira assinada alardeada pelos governos no PT era, na realidade, uma “explosão” do trabalho precário. Em 2011, o número de trabalhadores terceirizados no Brasil chegou a 13 milhões; com o golpe de 2016 vieram todo um conjunto de ataques que cortaram na carne da classe trabalhadora - reforma trabalhista para criar jornadas intermitentes, tirar direitos de gestantes, reduzir tempo de almoço, aumentar jornada de trabalho; a nefasta reforma da previdência para nos fazer trabalhar até morrer.

Esses ataques se aprofundaram com o governo Bolsonaro, em plena pandemia, junto a governadores como João Dória, o Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal, que permitiram as reformas que o governo Temer não conseguiu realizar: desregulamentação das normas vinculadas a segurança do trabalho, suspensão de contratos, redução de salários com a MP 936. Esses ataques ocorreram em silêncio sepulcral das centrais sindicais dirigidas pelo PT e PCdoB, que no lugar de organizar a classe trabalhadora nos locais de trabalho e estudo, juntamente com os movimentos sociais, preferiram o caminho da conciliação com a aposta pela via eleitoral, enquanto o Brasil beira os 500.000 óbitos por Covid-19.

Entretanto, do ponto de vista pragmático,muito pode ser feito para mudar essa realidade, a começar com as centrais sindicais, como a CUT, hegemonizada pelo PT, mas que tem respondido a situação de forma corporativista. Não podemos esperar até 2022 para que uma “solução” seja encontrada nas urnas, o país vivencia a trágica realidade de mil óbitos por Covid-19, chacinas, fome e desemprego, um verdadeiro cenário caótico que tem afligido a classe trabalhadora e os setores oprimidos.

É necessário o questionamento quanto à concentração de renda no país, o “agronegócio” como vetor de “desenvolvimento”, que tem destruído nossos solos e desmatado a natureza. Por isso, se faz necessário uma resposta unificada, numa frente operária única, com independência de classe, e não como faz o PT, que tenta canalizar o sofrimento do povo brasileiro para 2022, e chama FHC para participar de ato em comemoração ao dia do trabalhador, escancarado a faceta mais banal da conciliação de classes.

Veja mais: Ato virtual do 1º de Maio das centrais sindicais escancarou: só pensam em eleição!

De forma unificada, e numa frente operária única, os sindicatos podem organizar comitês centrais de de arrecadação e distribuição de alimentos de forma a convocar toda a classe trabalhadora empregada a tomar parte na linha de frente em defesa dos trabalhadores e das trabalhadoras. Do ponto de vista pragmático, também pode ser construído, em junção a esses comitês, a geração de medidas de políticas sanitárias em cada local de trabalho, escola, bairro.

Nesta pandemia vemos que é a classe trabalhadora que tem feito as coisas funcionarem. Seja na prestação de serviços ou na produção de alimentos, aparelhos, etc. Se ela já faz esse trabalho, a ela pertence o fruto desse trabalho. E assim, não é necessário nenhuma aliança com a burguesia. Essa premissa também nos dá força, para numa frente única de trabalhadores, articular as demandas sociais mais amplas, a exemplo da construção de restaurantes populares, e confisco dos estoques produzidos para o agronegócio. São demandas democráticas que estão conectadas numa totalidade, passam pelo crivo econômico e político. A própria vacinação no Brasil, sob controle dos trabalhadores da saúde, poderia promover a quebra de patentes sem indenização à indústria farmacêutica, que lucra com a dor e o sofrimento das pessoas.

Se ao retomarmos intelectuais como Josué de Castro que nos ajudam a compreender as particularidades regionais e nacionais, podemos mapear os principais elementos estruturais em nosso país, sem dúvida que também podemos pensar de forma dialética, e superar suas contribuições, trazendo elementos que questionem pela raíz a produção das desigualdades sociais. Sua leitura, longe de propor saídas revolucionárias, evidenciou que o problema da fome não pode ser visto apenas pelo viés biológico ou econômico, mas no marco de uma totalidade que envolva também a política, a ecologia e a história social de formação do Brasil. Ao nos mostrar essas fragilidades, também aponta, para os revolucionários, que a superação da opressão e da exploração só pode ser respondida com independência de classe, não apenas para resolver o problema da fome, mas para avançar na destruição das amarras que flagela as trabalhadoras e os trabalhadores.




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