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Precisamos falar sobre isso: produtivismo adoecedor na universidade

Nessa semana, um estudante da engenharia foi encontrado morto nas proximidades do prédio da engenharia da UFRGS, dedico essa carta a ele, com profunda solidariedade a sua família, amigos e colegas.

Gabriela MuellerEstudante de História da UFRGS

quarta-feira 16 de agosto de 2023 | Edição do dia

Foto: Camila Hermes/Agência RBS

Não foi o salto que tirou sua vida, mas sim esse sistema que isola, cobra, mutila e aliena. Já é quase impossível entrar na universidade federal, com todos os filtros raciais e sociais que evidenciam qual o lugar que essa sociedade dividida em classes quer para cada setor da juventude. Ao furar esse filtro, chega a batalha para comprovar a própria condição de existência, tendo que comprovar a cor da pele, comprovar inúmeros documentos de parentes que nunca estiveram presentes, tudo isso, muitas vezes, enquanto a família, os amigos, estão em outro Estado. Mas a batalha segue, afinal é muito difícil chegar em uma universidade federal. E como conciliar estudos com trabalho se não houver auxílio permanência, que é cada vez mais difícil de se conseguir? E se houver novamente desligamentos arbitrários por parte da reitoria interventora? A empolgação inicial da chegada é logo esmagada pela realidade da universidade de classes, que deixa muito claro, desde as condições materiais de se manter nela até as condições de acompanhar a carga de estudos, qual o lugar de cada um na academia pensada pela burguesia.

Ainda assim, a batalha por esse sonho tão difícil de atingir, segue. Noites em claro para aprender a matéria que o professor disse ser básica e que todos deveriam ter aprendido na escola. Engenharia é mesmo muito difícil, mas dizem que todo o sacrifício vai valer a pena, mas quando? quando essa cobrança interminável vai parar? Ao deixar a vergonha e medo de repreensão de lado para tirar uma dúvida na sala de aula, o professor responde: “Essa pergunta é horrorosa. Mostra que tu não entende porcaria nenhuma do circuito. Eu expliquei na aula passada, cheguei aos berros a dizer aqui que a fonte é independente, cacete” (trecho real tirado de uma notícia-denúncia na gzh). E os tantos casos de opressão na sala de aula? de machismo, racismo, transfobia, elitismo? E os trabalhadores terceirizados que todos os dias garantem, mesmo com pouquíssimos direitos e com baixos salários, que a universidade siga funcionando? que cada aluno possa se alimentar e que cada professor possa entrar numa sala de aula limpa, em um laboratório limpo? e mesmo assim, têm que se esconder para comer no banheiro porque não tem um espaço digno para isso?

Mais um jovem morreu dentro da universidade, e isso deveria ser o bastante para paramos tudo e refletir por que alguém com todo seu futuro pela frente sofre a tal ponto de perder as esperanças. A indiferença com a qual a universidade responde a esse caso, seguindo com sua programação normal de aulas, pesquisa, produção, provas e trabalhos é uma mostra de que estamos numa sociedade deformada, fruto de um sistema adoecedor para o qual o valor de um indivíduo é medido pelo quanto produz.

“Que tipo de sociedade é esta, em que se encontra a mais profunda solidão no seio de tantos milhões; em que se pode ser tomado por um desejo implacável de matar a si mesmo, sem que ninguém possa prevê-lo? Tal sociedade não é uma sociedade; ela é, como diz Rousseau, uma selva, habitada por feras selvagens” (Karl Marx, Sobre o Suicídio)

Ninguém havia dito que a universidade seria assim, chega momentos que o peito aperta tanto, com tantas cobranças inatingíveis, com um sentimento constante de nunca ser suficiente, que parece impossível suportar tudo, parece que, ao pegar a condução para a universidade, o coração dispara tão forte que vai saltar peito afora, o corpo quase colapsa de ansiedade.

Mas então, quem está doente? Sentimos no nosso corpo e mente os sintomas do apodrecimento de um sistema que já anunciou sua própria falência, que individualiza e embrutece os indivíduos, para que produzam mais tecnologia, mais riqueza e lucro para as empresas, de forma totalmente alienada e à serviço do lucro de empresários, para o qual a vida de um estudante não vale sequer um minuto de silêncio. Nos medicam com antidepressivos, ansiolíticos e estabilizadores de humor, mas não apresentam uma solução para o sistema que nos adoece.

Essa universidade é nossa, é da classe trabalhadora, e, portanto, quem deveria decidir o que e como deve ser ensinado, são os próprios estudantes e trabalhadores que fazem essa universidade existir. Quem deve decidir absolutamente tudo nessa universidade são os alunos e trabalhadores, erguendo uma força capaz de dissolver os órgãos burocráticos como conselhos universitários e reitorias, que desligam e atacam estudantes, que demitem terceirizados. Todo o conhecimento produzido por nós deve estar a serviço de melhorar a vida das maiorias, da classe trabalhadora, para acabar com as contradições e a destruição material e subjetiva que esse sistema miserável impõe, para acabar com todo o parasitismo da classe dominante sobre o que é produzido.

A universidade deve servir para explorar e desenvolver ao máximo nossas potencialidades, e não para sugar nossa vontade de viver. Toda a forma de ensino produtivista e hierárquica, com ordenamentos que punem os estudantes, com currículos que despejam uma carga absurda sobre as costas dos alunos, sobretudo dos que dividem seu tempo entre estudo e trabalho, tudo isso deve ser profundamente revolucionado para que o estudo não seja alienado nem fonte de cobrança e sofrimento, mas para que seja uma forma de libertação, construída pela e para as maiorias sociais.

É possível e necessária uma vida que valha a pena ser vivida, e, por isso, é preciso vingar todos que foram levados por esse sistema que arranca o direito ao futuro, seja com uma bala no peito, seja devastando das profundezas da psique o sonho de uma vida melhor. Arranquemos, com a força imparável da juventude aliada aos trabalhadores, o direito a uma sociedade livre do peso das opressões, livre do trabalho e do estudo alienante, da exploração, onde cada jovem, cada trabalhador possa desenvolver suas potencialidades artísticas e criativas até a milésima potência. Esse não é um sonho distante, e sim, uma necessidade que precisa ser construída desde hoje.

‘Sábios descem aos fundos dos oceanos e fotografam a fauna misteriosa das águas. Para que o pensamento humano desça as profundezas de seu próprio oceano psíquico, deve iluminar as forças motrizes, misteriosas, da alma e submetê-las a razão e a vontade. Quando acabar as forças anárquicas de sua própria sociedade, o homem integrar-se-á nos laboratórios, nas retortas do químico. Pela primeira vez, a humanidade considerar-se-á a si mesma como matéria-prima e, no melhor dos caso, como semi-fabricação física e psíquica. O socialismo significará um salto do reino da necessidade ao reino da liberdade, no sentido de que o homem de hoje, esmagado sob o peso de contradições e sem harmonia, abrirá o caminho a uma nova espécie mais feliz”’ TROTSKY, Leon. A Revolução de Outubro (Conferência) 1932

Batalhamos por uma sociedade em que as relações humanas sejam construídas por laços de confiança e solidariedade mútua, sem ser mediadas por cobranças, posse, sem que a solidão seja um peso individualizante e frio sobre os ombros das pessoas, como disse o poeta da revolução, Maiakovski, para
“[...] que o dia que o sofrimento degrada, não vos seja chorado, mendigado. E que ao primeiro apelo ’camaradas!’
Atenta se volte a terra inteira [...]”




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