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XADREZ | Ding Liren: a guerra e suas artimanhas

domingo 30 de abril de 2023 | Edição do dia

Alguns aspectos de diversidade cultural podem ser melhor observados em momentos de viragem. Sobre a cultura oriental, lembro-me de ter me emocionado ao ler “O mestre de Go”, do gigante da literatura japonesa, Kawabata. Logo nas primeiras páginas de seu livro ele narra a cena da derrota do grande e imbatível até então mestre, uma literatura que narra a realidade, uma vez que o escritor esteve efetivamente acompanhando a partida. De toda a riqueza da narração, chamou-me a atenção um aspecto cultural oriental: o mais jovem, ao derrotar o mestre, envolve-se de um sentimento de confusão, perplexidade. É notável porque pragmatismo americanista no geral levaria a outra reação dos atletas: a explosão de comemoração imbuída do sentimento: “eu sou o melhor”.

Por outros motivos me veio a cena essa passagem diante do resultado do tiebrake do campeonato mundial de xadrez desse ano, com jogo derradeiro nesse domingo. Parecia cena de cinema a reação de jogador Ian Nepomniachtchi diante da incontornável derrota diante da composição que se configurava no tabuleiro. Como disse algum enxadrista, nesse jogo composição e performance caminham juntas, e encontrar-se a cada segundo mais próximo da confirmação da derrota provoca um clímax de sentimentos, como é habitual no esporte. Parecia cena de cinema o chamado “Nepo” virando a cabeça para evitar olhar o tabuleiro, empurrando as peças ao lado e provocando-lhes a queda.

O outro lado dessa cena estava Ding Liren. Sua reação diante da vitória depois de 18 partidas de grande tensão não parecia a do campeão do mundo como estamos habituados. Colocou a mão na cabeça, num segundo momento de relance olhou para Nepo e estendeu as mãos com cordialidade e preocupação, voltou colocar a mão na cabeça olhando pra baixo, levantou-se como que contrariado, tentando entender o que estava acontecendo. Falando de performance e composição, as duas reações numa única cena foram históricas, ao menos para os amantes do esporte (ou da arte).

Agora indo um pouco além das aparências. Numa das colunas que escrevi semanas atrás falando do filme que ganhou o Oscar me aventurei a refletir a obra do ponto de vista geopolítico. “Aventura” porque a complexidade de uma obra de arte nos convida a evitar generalizações ou esquemas de análise. Não é exatamente assim no xadrez.

Um esporte que exige enorme concentração intelectual se tornou, durante a Guerra Fria, um símbolo de desenvolvimento. Daqui que como é conhecido os soviéticos detinham certa hegemonia no xadrez, o que incomodava muito naturalmente a principal potência capitalista, os Estados Unidos. Um momento de grande tensão nesse sentido foi o ano de 1972, uma vez que foi o ano em norteamericano Bobby Fischer ganhou a campeonato do russo Boris Spassky. Foi o único ano que o país naquele contexto (de Guerra Fria) ganhou o mundial, e a campanha em torno disso foi internacional. O xadrez se popularizou. Contava-me uma vez um operário que trabalhava na área de manutenção de máquinas do jornal Estado de São Paulo que foi nesse momento que aprendeu a jogar xadrez, pois na seção os trabalhadores nas horas de pausa ou folga montavam tabuleiros, armavam campeonato e todo mundo começou a jogar. Esse operário que me ensinou a jogar xadrez inclusive.

A definição aqui é sobre que esse esporte em particular já esteve muito entrecortado pela geopolítica. Depois da Guerra Fria isso diminuiu, mas será que agora pode estar voltando esse aspecto, pois estamos em meio a guerra da Ucrânia e todas as consequências nesse sentido. Duas pistas para pensarmos.
A primeira é que o grande campeão de xadrez do último período é Magnus Carlsen, um norueguês. Depois de sucessivas vitórias no mundial, ele disse que esse ano não jogaria. Ele não é americano, japonês ou alemão, ou seja, representante direto das principais potências. Mas, emprestando a expressão de um amigo, “pode estar simbolizando a ‘hegemonia incontestável’ do Ocidente” no contexto geopolítico.
A grande questão é que ao Carlsen sair do campeonato, quais foram os dois finalistas? Um russo e um chinês. Isso acho que habilita a pensar geopoliticamente, não? Risos. O ocidente incontestável olhando a batalha entre China e Rússia.

O outro aspecto é a reação de Ding Liren. Ela cumpre dois papéis bem expressivos: em primeiro lugar, de respeito diante da Rússia e sua inferioridade. Ganharam de forma resiliente, consistente, depois de muitas batalhas. Ganhar nesse caso, para além das particularidades orientais que comentava, significa ganhar da Rússia.

Mas existe algo ainda mais significativo nessa postura “humilde” de Ding Liren: tudo que a burocracia que governa a China menos quer é colocar de maneira efusiva esse “troféu” nos jornais internacionais. A sua emergência estratégica parece ter como norte o acúmulo de forças para estar em melhores condições quando o conflito com demais potências em geral, e com os Estados Unidos em particular, se colocar mais evidente.
O resultado para a principal potência seria desfavorável de todo modo. No meio da guerra um russo ganhar seria ruim. Agora estrategicamente a China ter o campeão não deixa de chamar a atenção.
Daqui que o resultado é esse: a China ganhou o mundial de xadrez. Não ganhou contra o Carlsen, o que teria outro significado, mas fez uma demonstração de forças também razoável. Mas o principal agora é essa demonstração aparecer com os contornos do soft power.

É fácil ver a tensão na Ucrânia. Chamativo também em Taiwan. Num tabuleiro de xadrez essa mesma tensão deve ser analisada com muitas mediações, mas pode ter seus efeitos. É que como diria Clausewitz, na Arte da Guerra, “na estratégia tudo é simples, mas não é fácil”. A guerra tem suas artimanhas.


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