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XII CONGRESSO DE ESTUDANTES DA USP | 3 horas na pele de um trabalhador do bandejão

Relato sobre a ocupação do bandejão central da USP por estudantes durante o XII Congresso de Estudantes da USP e a necessidade de uma profunda aliança entre a juventude e a classe trabalhadora.

Flávia ToledoSão Paulo

quarta-feira 7 de outubro de 2015 | 23:39

Era sexta-feira, dia 2 de outubro, horário da janta, no bandejão central da USP. Pela segunda vez em 2015 ocupávamos o restaurante em apoio aos trabalhadores, liberando as catracas e ocupando seus postos de trabalho. Dessa vez não estávamos nas mesas, mas atrás das enormes bandejas de comida, servindo a grande fila que engrossamos todos os dias.

Quando eu fui servir o arroz, substituindo um companheiro que ainda não tinha comido, ouvi uma das trabalhadoras do bandejão dando uma risada e dizendo que se todo dia fosse daquele jeito, tudo seria mais fácil: naquela noite não havia sobrecarga de trabalho. Eu servia o arroz, uma companheira servia o feijão, logo ao lado um outro estudante servia o frango, um outro fazia piada porque nem todos queriam o chuchu que ele estava servindo, enquanto na ponta uma moça incentivava todo mundo a pegar a salada “dela” - e enquanto tinha gente entregando as bandejas e talheres pra cada um que passava, tinha mais dois servindo o arroz integral e o PVT dos vegetarianos. O mesmo acontecia na outra estação, e pelo menos uns 15 estudantes estavam por perto se propondo a trocar de lugar com quem servia. Nada poderia ser mais diferente do que o habitual.

As condições de trabalho

Para manter a comida quente, as bandejas ficam dentro de uma água fervente. Quando foi preciso trocar a bandeja do arroz, que estava acabando, um trabalhador que estava por lá nos ajudando pediu que nos afastássemos, ou o vapor quente acabaria nos queimando. O calor ali é enorme, o que não percebemos quando vamos almoçar ou jantar e passamos rapidamente para pegar nossa comida.

Todo cuidado é pouco. O chão fica molhado por conta da água do suporte da comida, e não é difícil escorregar. Uma queda ali pode machucar seriamente uma pessoa, assim como dentro da cozinha, que além de escorregadia é extremamente barulhenta, o que é prejudicial para a saúde. A correria para dar conta de todo o trabalho exaustivo do restaurante universitário em um número insuficiente de trabalhadores pode levar a acidentes sérios ali.

Não faço ideia de quantas pessoas eu servi. Sei que eu comecei a servir cerca de uma hora depois de o bandejão abrir, e como havia gente suficiente trabalhando, tive de cuidar apenas de uma bandeja de comida – normalmente, o mesmo trabalhador serve duas bandejas ao mesmo tempo. Eu acabei servindo o arroz e o feijão sozinha por uns cinco minutos, e a minha completa falta de habilidade em realizar aquilo me fez refletir a respeito do assédio moral no trabalho.

Eu, estudante, ocupando o bandejão por uma posição política de apoio aos trabalhadores da universidade, atualmente se enfrentando com a reitoria por conta da sobrecarga de trabalho, não seria cobrada pelo que estava realizando. O fato de eu estar atrapalhada para servir o arroz com uma mão, o feijão com a outra, num baita calor – e ainda precisando explicar o que fazíamos ali para os estudantes – não seria motivo de xingamentos, nem por parte dos estudantes, nem por parte de uma chefia. Mas se eu estivesse ali de uniforme, cumprindo o meu trabalho, qualquer falta de destreza na realização daquela função, principalmente se alterasse o ritmo da fila, seria motivo para ouvir xingamentos e cobranças. Conhecendo o histórico de assédio moral que existe nos bandejões da universidade, não tenho dúvidas de que isso aconteceria. E essa prática absolutamente humilhante pode, inclusive, acarretar em acidentes ali dentro – como quedas por conta do piso escorregadio, que comentei acima, ao correr pra atender alguma ordem, por exemplo.

Com certeza em servi muito menos pessoas do que um trabalhador do bandejão normalmente serve. Mesmo assim, saí de lá extremamente cansada. O vapor quente causava um enorme desconforto, e o movimento repetitivo de servir as centenas de bandejas por menos de duas horas deixou lembranças por um bom tempo no pulso, ombro e costas.

Além do esforço físico, chamava atenção a maneira como éramos tratados pelos demais estudantes. Poucos passaram pela estação sem agradecer a cada um que servia a sua bandeja. Isso não acontece normalmente. Conversando com os outros estudantes que estavam servindo, todos ressaltavam isso como algo estranho. O fato de não estarmos uniformizados nos tornou visíveis. O fato de estarmos lá, como iguais, cumprindo uma função não acadêmica na universidade chamou atenção.

Depois de fechada a fila, esperamos os estudantes terminarem sua refeição para começarmos a limpeza do salão. Apenas metade dele é usado na hora da janta, e estávamos em cerca de 15 estudantes, com seus 20 e poucos anos, para limpar o espaço. Vassouras em mãos, cadeiras em cima das mesas, começamos a varrer o salão, principalmente embaixo das mesas. Não é segredo pra ninguém que varrer é uma das piores coisas para as costas. A posição em que se fica para realizar essa atividade, curvado para frente e jogando o peso em um lado do corpo, é a pior que existe para a coluna – e é por isso que todo mundo sente uma pontada nas costas depois de 10 minutos varrendo.

Perguntei a uma trabalhadora em quantas pessoas elas geralmente realizavam a limpeza, e ela me respondeu que eram poucas, e que em alguns dias só havia duas pessoas pra esse serviço. Duas pessoas para limpar um enorme salão, cheio de mesas – o que faz com que elas fiquem um bom tempo curvadas -, colocando todas as cadeiras em cima das mesas, depois retornando-as pro chão, passando um pano com álcool em cada mesa, o que pode causar ressecamento da pele e alergias…

A universidade de excelência e a exploração

Passei cerca de 3 horas no bandejão. Durante esse tempo, eu e os demais estudantes que estavam no ato realizamos um pouco das funções que os trabalhadores do bandejão realizam todos os dias, por muito mais tempo do que nós. Saí cansada, com dor nas costas e no pulso. Em pouco tempo essa dor passou. Mas a indignação com a situação dos trabalhadores da USP não vai passar tão fácil.

A política privatista do reitor Zago, que joga nas costas dos trabalhadores a tal da “crise orçamentária” por meio de demissões e precarização, está transformando a universidade em um cenário absolutamente desumano. Os bandejões são máquinas de moer gente. Quando dizemos que os trabalhadores deixam sua saúde no local de trabalho, não estamos exagerando. Suas mentes são consumidas pela prática absurda e humilhante do assédio moral. Seus corpos são triturados porque há uma excessiva carga de trabalho para um número insuficiente de trabalhadores.

São muitos os casos de doenças ocupacionais, por esforço repetitivo, tomando os corpos de homens e mulheres que trabalham na maior universidade da América Latina. Por uma universidade elitista, fechada, que se recusa a receber os filhos da classe trabalhadora e a devolver para a população respostas para suas necessidades, os trabalhadores se submetem a um trabalho desumano e exaustivo, comprometendo funções biológicas, perdendo a capacidade de realizar tarefas simples, como levantar uma jarra, pelas doenças que desenvolvem, se expondo a produtos químicos nocivos à saúde.

Um trabalho assim consome a vida das pessoas. Exaustos, a que outras ocupações esses trabalhadores podem se dedicar? Há energia física e mental que permita que esses trabalhadores pratiquem esportes, aproveitem e desenvolvam arte, estudem? O quadro é ainda mais grave se pensarmos nas mulheres, já que ao chegar em casa têm de realizar todo o trabalho doméstico.

É inaceitável que isso siga acontecendo, principalmente na Universidade de São Paulo, a maior do Brasil, considerada de excelência. É urgente que se contrate um número suficiente de trabalhadores, acabando com a sobrecarga de trabalho – e que sejam efetivos, pois a principal resposta que Zago dá para a questão do quadro de funcionários é a terceirização, um método de precarização absoluta do trabalho. Também precisamos cobrar para que haja condições seguras de trabalho para prevenir acidentes e o desenvolvimento de doenças. É fundamental um acompanhamento médico constante para minimizar o desgaste físico, principalmente pela prevenção de lesões.

Mas tudo isso, ainda que necessário e fundamental, é ainda pouco. Se são essas as condições de trabalho na maior universidade do país, que conta com um sindicato dos mais combativos, quais as condições Brasil afora, onde não há nenhum tipo de fiscalização, onde não há uma resistência organizada?

Não se trata apenas de belos discursos: também o corpo clama pelo fim desse sistema de exploração e miséria. O trabalho no capitalismo, estando voltado para a produção incessante de lucro para uma minoria, destrói o corpo humano e impede que a maioria esmagadora da população, a classe trabalhadora, possa desenvolver suas potencialidades. A exploração do homem sobre o homem, que cresce ainda mais em tempos de crise como o que vivemos, impede que se viva plenamente. É urgente que se ponha um fim a isso.

Aliança revolucionária é da juventude com a classe operária

“As vestes poeirentas de nossos dias, cabe a ti, juventude, sacudi-las.” A potente frase de Maiakóvski me veio à cabeça quando, durante a limpeza do salão, alguém começou a cantarolar a Internacional, sendo seguido pelos demais. Alguém poderia dizer que só estávamos cantando enquanto varríamos o chão porque no dia seguinte não estaríamos ali de novo. De fato… Mas tendo a pensar nessa cena de outra maneira.

A juventude não traz sobre suas costas as derrotas pelas quais a classe trabalhadora passou. Jovens militantes têm mais sonhos e esperança do que derrotas contundentes pra contar. E também seus corpos, aos 20 e poucos anos, não foram ainda totalmente castigados pelo trabalho. Por isso o canto. Porque estar ali naquele momento, literalmente de corpo e convicção, era uma maneira de tentar sacudir as vestes poeirentas dos nossos dias.

Quando dizemos que aliança da juventude com a classe operária é revolucionária, é porque acreditamos que os sonhos e corpos da juventude devem estar ao lado de cada trabalhador que está em luta nesse país, com a pretensão de vencer cada batalha. Dar tudo de si em cada pequeno enfrentamento, como no bandejão da universidade, mas com o desejo ambicioso de tomar o céu por assalto. Porque, como disse Trotsky, “Apenas o fresco entusiasmo e o espírito ofensivo da juventude podem assegurar os primeiros sucessos na luta; apenas esses sucessos podem fazer voltar ao caminho da revolução os melhores elementos da velha geração. Sempre foi assim. Continuará sendo assim.”




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