Haddad, Lula e os descaminhos da conciliação

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Ilustração: Alexandre Alves Miguez 

 

Por Iuri Tonelo

 

Diante da grande polarização política que o país está vivendo, com o fortalecimento eleitoral da extrema-direita com Bolsonaro e diante das arbitrariedades do judiciário e da cada vez mais crescente politização das forças armadas, muitos trabalhadores acreditam que o crescimento de Haddad nas eleições, com as contradições que possam ter, expressa uma “alternativa democrática” e que, nesse sentido, mesmo com divergências com alguns dos métodos e o programa do PT, valeria a pena a alternativa Haddad, “apesar dos pesares”.

 

Afinal, como dizia Carlos Nelson Coutinho, um princípio inviolável e unificador desde o início era a “democracia como valor universal”. Recentemente, André Singer explicitou de outra forma esse pressuposto, ao dizer em uma palestra que “no centro da política democrática está a economia e no centro da economia está a luta de classes”. Para uma vertente ou outra, se pudéssemos inverter, poderíamos dizer que “a política democrática está no centro, e a luta de classes deve se submeter aos marcos da ‘democracia’”. Essa é a teoria.

 

Dentro dessa política democrática, também está, segundo Singer, o “paradoxo ético” da conciliação. Em seu livro “Lulismo em Crise”, escreve nas conclusões que “Max Weber escreveu que ‘quem deseje dedicar-se à política’ deveria tomar consciência de certos ‘paradoxos éticos’, pois ‘se compromete com potências diabólicas que atuam com toda violência’. Em outras palavras, lidar com demônios faz parte das obrigações daquele que tem a política como vocação” (p. 295).

 

Acontece que na “política concreta”, em nome de “defender a democracia”, o nível de pacto que Haddad anuncia fazer (particularmente em sua sabatina da UOL, ver aqui) coloca as contradições da política petista em outros marcos: esse pacto inclui não apenas neodesenvolvimentistas e reformistas de variadas vertentes, mas traz como “novidade” sinais para o MDB, o “centrão” e até mesmo o PSDB; além de, do ponto de vista econômico, já ter sido defendido, direta ou indiretamente, por grandes grupos financeiros[1] e até por imprensas imperialistas como Economist, Financial Times ou New York Times[2].  Ou seja, o pacto “republicano” nesse caso se daria, no caso de se consumar, com os golpistas de outrora e com os setores mais espoliadores do capital financeiro no Brasil. Nesse caso, estamos dentro de um questionável “paradoxo ético” ou de um verdadeiro pacto fáustico?

 

Do ponto de vista da “política democrática”, o que está por trás dessa saída pactuada de Haddad (sob as indicações de Lula)? Uma alternativa de resistência democrática ou a consolidação da degradação da democracia brasileira, um regime “pós-golpe”?

 

Jogo democrático no tabuleiro do golpismo?

 

Os defensores do pacto republicano, evidentemente, não se sentem em pacto fáustico, porque supostamente o diabo estaria do outro lado da campanha, na chapa de Bolsonaro. Se a extrema-direita, incluindo o general golpista Mourão, está na chapa do PSL, então “tudo seria permitido” na chapa de Haddad ou, ao menos, tapar o nariz seria aceitável em se tratando de um “pacto republicano”.

 

A primeira coisa a se constatar, no entanto, é de que “república” estamos tratando. Desde 2016, vivenciamos um momento de fissura na ordem constitucional de 1988. Mas isso se deu de uma forma especial: vivenciamos uma nova experiência de golpe não como o golpe militar de 1964 que acometeu o Brasil e vários países da América Latina, e sim por meio de uma forma de golpe institucional em que monopólios imperialistas influenciam o regime político brasileiro pela via de apoiar o protagonismo exacerbado do judiciário, rompendo de forma arbitrária e de distintas formas parciais com a constituição, e apoiados pela farda militar verde-oliva. 

 

Foi assim que influenciaram decisivamente a reorganização do sistema político ao, com arbitrárias medidas jurídicas e um “julgamento” completamente manipulado, derrubar Dilma Rousseff da presidência com um impeachment e consumar um golpe institucional. A segunda fase do golpe foi retirar o direito ao sufrágio universal e inviabilizar a própria candidatura de Lula, um novo ataque bonapartista do judiciário – ou seja, nova arbitrariedade de um dos poderes contra os direitos democráticos da população.

 

Qual a ironia da candidatura de Haddad? Em nome de defender o “regime democrático”, anunciam estar dispostos a se aliar com os setores mais declaradamente golpistas em 2016 (não só na presidência, mas como política do petismo em vários estados também), legitimando e consumando esse “novo regime” pós-golpe institucional, “um regime em ponto de mutação”.

 

Ingmar Bergman, em seu clássico filme O Sétimo Selo, coloca uma personagem jogando xadrez com a morte. Os apologistas da política petista podem se sentir estrategistas como a personagem de Bergman, mas o problema não está apenas no adversário que se enfrenta – que efetivamente é expressão da reacionária extrema-direita golpista –, o problema real está em que o tabuleiro em que se dá o jogo já é o tabuleiro do golpe institucional, para o qual a política Haddad-Lula já parece ter aceitado as regras do novo jogo. Um jogo que passa por legitimar o regime pós-golpe e defrontar-se com um país, no próximo governo, de maiores crises e maiores pressões para consumar um ajuste neoliberal ainda mais brutal contra os trabalhadores.

 

Os descaminhos da conciliação

 

Em seu livro “A Verdade Vencerá”, Lula pinta com cores benévolas sua política de conciliação, chamando-a de “começo de uma revolução”:

 

muitas vezes, companheiros do próprio PT [Partido dos Trabalhadores], companheiros ideologicamente mais refinados, achavam que era um governo de conciliação. Eu sempre entendi que um governo de conciliação é quando você pode fazer mais e não quer fazer. Agora, quando você só pode fazer menos e acaba fazendo mais, é quase que o começo de uma revolução – e foi o que fizemos neste país.

 

Lula, que é um político habilidoso, consegue sempre dar uma forma palatável para uma política muitas vezes intragável: se olharmos com quem o PT se propõe a conciliar e quais as consequências (vide golpe institucional) – mas naturalmente ele não coloca nesses termos, não existe os sujeitos com quem se pactua. O problema é que na atual situação do país, diante da crise econômica, do desemprego e da sanha imparável do grande capital de atacar os trabalhadores, fica difícil imaginar que do pacto se acabará “fazendo mais”, como promete Lula.

 

E o que está acontecendo agora e o que aconteceu no impeachment não é um desvio no caminho do PT. É, isso sim, levar às últimas consequências os erros e as concepções que estão colocadas desde a fundação do partido, de como participar da democracia dos ricos. Lula, no mesmo livro, em dado momento, comenta os fundamentos da política, agora mais claros:

 

Ô, companheiro, você sabe como se ganha uma eleição? Com adversários e aliados. Na hora que vai governar, você chama os aliados para montar o governo. Então, cada partido que esteve na campanha tem direito a participar do governo, tem direito a indicar um ministro, o ministro tem direito a montar sua equipe”. É assim no mundo inteiro, é assim na França, na Alemanha. Só nos Estados Unidos que não, porque são só dois partidos. Mesmo assim, de vez em quando, o Partido Republicano precisa de uma traiçãozinha dos democratas, e vice-versa. Isso se chama política, po-lí-ti-ca..

 

Mais claro como a água, para Lula, a conciliação com aliados e também um pouco com adversários é “fazer política”. A pergunta que fica é: “de quem estamos falando entre aliados e adversários?”; se nos lembramos de que o “aliado”, aqui, no passado foi, por exemplo, Michel Temer, imaginem de quem estamos falando com “adversários”? A verdade é que aliados e adversários são escolhidos entre os membros da mesma classe dominante e são, em geral, personalidades da elite escravocrata latifundiária, banqueira, empresarial, o conjunto dos capitalistas.

 

Não por acaso, o PT não tem um programa de reformas estruturais do país e, a rigor, nem mesmo um projeto neodesenvolvimentista apresenta efetivamente: a política do PT sempre foi de, pactuando com esse regime de democracia degradada, aceitando suas degradações, buscar algo entre um neodesenvolvimentismo e o social-liberalismo.

 

Ou seja, não se pode separar essa conciliação, o que se busca em termos democráticos e as consequências no projeto político. Indo além, poderíamos dizer que existe uma dialética muito importante nesse momento de degradação da democracia: é preciso defender as liberdades e as conquistas democráticas contra os ataques fascistas ou bonapartistas de todo tipo, que querem apodrecer ainda mais o regime democrático. No entanto, responder ao golpe apenas com a ode à Nova República, à Constituição de 1988, esconde que já desde antes havia “algo de podre no reino da Dinamarca”…

 

De volta à Nova República? O pecado original da transição pactuada

 

Desde suas origens, o PT virou um pilar fundamental da conciliação da Nova República, ou seja, um pilar de levar os sindicatos e parcelas da população a aceitar uma “democracia” que nasceu e se consolidou na Constituição de 1988.

 

Acontece que a correlação de forças em que se deu a transição “lenta, gradual e segura” era advinda do maior ascenso operário da história do país, entre 1978-1980. A crise do petróleo de 1973 e 1978 golpeou em cheio a ditadura, o ascenso operário a feriu de morte. Era imprevisível o que surgiria sobre seus escombros, mas a tentativa, nesse caso, “preferiram um penoso acordo conservador”, para usar os termos de Florestan Fernandes; literalmente, conservando a estrutura partidário-política (ressignificando os velhos políticos do Arena e outros quadros políticos da ditadura, incorporando seus partidos e suas personalidades no novo regime) e também a militar, mantendo todo o aparato de repressão, ou seja, um pacto com os militares, torturadores, incluindo sua polícia, esquadrões da morte, sua política de violência sistemática contra a população pobre e negra etc.

 

Embora o PT, nas palavras, pressionasse, advindo da correlação de forças proveniente do ascenso, o questionamento da ditadura e dos militares, a conciliação com o “antigo regime” foi o pecado original da conformação de uma democracia tutelada pelos militares. Essa foi a “arte de Lula”, a arte da conciliação e de ser em todas as crises da república o grande sustentáculo da democracia dos ricos… uma conciliação que levou, na constituinte, a manter na nossa Constituição o famigerado artigo 142, que de forma ambígua deixa aberta a possibilidade da intervenção das Forças Armadas em caso de “garantia da lei e da ordem”.

 

Olhando desse ângulo, por mais sem sentido que pareça uma estratégia que chega ao ponto de conciliar com quem incentivou um golpe institucional contra seu próprio presidente, encontra-se alguma continuidade no modus operandi petista. Ou seja, falando em “salvar a democracia”, o PT agora com Haddad dá o seu passo derradeiro em termos de conciliação: conciliar com os golpistas que atuaram contra seu próprio governo.

 

É como, justificando o perigo das hienas, colocar as raposas para vigiarem o galinheiro. É claro, galinhas atacadas por raposas é um “mal menor” que atacadas por hienas, aqui reside a armadilha. E a bela arte de se conciliar com as raposas é a verdadeira obra de tragédia política do PT.

 

Apontando outro caminho

 

Qual deveria ser o caminho a se seguir? A partir da classe trabalhadora como sujeito, dos sindicatos e das organizações de massa, impor uma constituinte livre e soberana, que reverta o golpe institucional, a tutela dos juízes, a crescente atuação política das Forças Armadas. Mas não para voltar ao velho pacto de 1988, e sim para questionar mais de conjunto essa degradação da democracia e que colocasse no centro do debate as grandes questões nacionais, como a dívida pública, a reforma agrária radical, a questão da Petrobrás, demandas das mulheres como a legalização do aborto, entre outras demandas. Criar as condições para, definitivamente, avançarmos para uma resposta mais de fundo para os rumos do país: um governo dos trabalhadores que rompa com o capitalismo e abra caminho para uma verdadeira revolução social.

 

Notas:

[1] Particularmente chama a atenção as observações de Zeina Latif, do grupo XP investimentos, em: https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/politica/2018/09/21/interna_politica,707309/mercado-financeiro-desconfia-das-equipes-economicas-haddad-e-bolsonaro.shtml

[2] https://www1.folha.uol.com.br/colunas/patriciacamposmello/2018/09/biblias-do-mercado-comecam-a-abandonar-bolsonaro.shtml?

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