Bolsonaro, Bannon, judiciário e mídia: uma “guerra híbrida” para ganhar as eleições

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Ilustração: Bernardo Glogowski

Por Fernando Pardal

O Brasil vive sua eleição mais polarizada e “atípica” desde o fim do regime militar, com a expressão profunda do que viemos chamando, retomando o conceito do revolucionário italiano Antonio Gramsci, de crise orgânica. A falência da empreitada neoliberal – e, no Brasil em particular, da sustentação do governo de conciliação de classes petista que veio com a crise econômica – causou uma imensa fratura no regime de 1988, sustentado sobre um pacto delineado no fim da ditadura entre militares e a burguesia, com o PT atuando como “ala esquerda” e sua direção atuando de forma consciente e bem sucedida para separar as poderosas greves operárias da luta política pela queda da ditadura. Em meio a isso, a aberta manipulação do judiciário tirou do páreo o candidato que poderia vencer ainda em primeiro turno, Lula, distorcendo o resultado a tal ponto que o mais provável vencedor se torna o fascistóide Bolsonaro.

Uma das características fundamentais da crise orgânica é a falência dos partidos tradicionais ligados às classes: por um lado, vemos isso expresso muito claramente no patente naufrágio do PSDB – a despeito de todo o esforço feito por setores hegemônicos como Globo e o judiciário para deslanchar a candidatura de Alckmin. Por outro, na crise do PT, que, se ainda se mantém com muita força, é o principal catalisador do ódio popular que encontrou na via da extrema-direita um porta-voz “anti-PT”.

Mas esse processo não se delineia “naturalmente”: ele é movido também por uma poderosa manipulação feita em diversos níveis, uma guerra que, se superficialmente aparece como “anti-PT”, em seu conteúdo tem como alvo real os trabalhadores e os setores oprimidos da sociedade. Como apontamos desde o início das eleições, uma parte decisiva dessa operação de guerra foi movida pelo judiciário, que, há anos agindo em estreita ligação com o Departamento de Estado norte-americano e sob a doutrina de manipular o regime político sob o disfarce do “combate à corrupção”, prendeu arbitrariamente o candidato favorito na corrida presidencial, Lula, e o silenciou; isso sem falar no sequestro de quase 3,5 milhões de votos com o pretexto da “biometria”.

Por outro lado, outro fator de peso do “poder real”, o império midiático da Globo – peça-chave no desenrolar do golpe institucional e na criação do mito de que o PT arquitetou “o maior escândalo de corrupção da história do país” – passou decididamente para o lado de Bolsonaro ao ver seu filho predileto, o tucano Alckmin, afundar nas pesquisas. Quando esse processo incipiente se iniciou o debatemos aqui. Além disso, as igrejas evangélicas desempenharam um papel de grande relevo na reta final do primeiro turno ao aderir a Bolsonaro. Esses atores de peso na política nacional são exemplos de como “por cima”, a campanha de Bolsonaro vem ganhando terreno.

 

A guerra híbrida e a combinação das forças “regulares” e “irregulares”

 

O conceito de “guerra híbrida”, que vem sendo tratado por diversos analistas militares como um desdobramento daqueles de guerra irregular, guerra composta ou conflito assimétrico ajuda a compreender os meios por onde Bolsonaro avança com mais força, inclusive em como conseguiu ganhar suficiente musculatura para que desbancasse concorrentes tradicionais como Alckmin e passasse a ser a grande aposta de setores burgueses concentrados, não apenas da mídia, mas do capital financeiro e industrial.

O conceito de guerra composta “foi definido pelo historiador Thomas H. Huber em 1996 para explicar o emprego simultâneo, sob um mesmo comando e direção estratégica e com uma certa coordenação a nível tático e operacional de forças regulares e irregulares. Dessa forma, enquanto o elemento irregular emprega táticas de guerrilha para obrigar o oponente a dispersar suas forças, o componente regular combate para obrigar o adversário a concentrá-las.”[1] Já a guerra híbrida é definida como “(…) uma sofisticada forma de luta característica da Era da Informação que, fundamentada nas possibilidades que brinda a globalização e o livre acesso às tecnologias avançadas, se distingue pela combinação, em todos os níveis e fases da operação, de ações convencionais e irregulares, estas últimas mescladas com atos terroristas, propaganda e conexão com o crime organizado.”[2]

Nas últimas décadas, cada vez mais veio ganhando peso o aspecto de instrumentalizar as massas ideologicamente com o a finalidade de atingir fins políticos “ocultos” por atores que pareciam estar “fora de cena”. Um exemplo emblemático é o das chamadas “revoluções coloridas” após o fim da URSS, que, com financiamento e apoio do imperialismo americano, como George Soros e CIA, conseguiu derrubar os regimes pró-Rússia no Leste Europeu e os substituir por outros diretamente alinhados com os EUA. Por outro lado, vimos como em mobilizações de massa contra regimes direitistas, como na Primavera Árabe, ganhou peso também a organização pelas redes. No Brasil, também Soros e o imperialismo procuraram aprender rapidamente como influenciar as massas por essa via. Não à toa, na esteira das mobilizações de junho de 2013 surgiram movimentos “populares” como o MBL e o Vem Pra Rua, diretamente financiados pelo imperialismo e com foco na agitação pelas redes. Hoje, o MBL fez, com Kim Kataguiri, seu primeiro deputado federal, sendo o quarto mais votado de SP.

 

Bolsonaro e seu novo aliado no terreno da “guerrilha”

 

Sem ganhar projeção, circulou quase discretamente a notícia de que em Eduardo Bolsonaro teve um encontro em agosto com Steve Bannon, coordenador da campanha de Donald Trump que, utilizando a obtenção ilegal de dados obtidos pela Cambridge Analytica, foi responsável pela manipulação em larga escala dos resultados eleitorais que levaram o republicano xenófobo e direitista à presidência dos EUA.

Em seu tweet, o filho de Bolsonaro diz: “Foi um prazer encontrar Steve Bannon, estrategista da campanha presidencial de Donald Trump. Nós tivemos uma grande conversa e compartilhamos a mesma visão de mundo. Ele disse é (sic) um entusiasta da campanha de Bolsonaro e nós estamos certamento em contato para somar forças, especialmente contra o marxismo cultural.” Ridiculamente, depois Jair Bolsonaro tentou negar a aliança com Bannon, afirmando que ele “não teria recursos para pagar pela campanha”. Mas, como seu filho havia afirmado, Bannon concordou em prestar consultoria gratuita. Segundo Eduardo Bolsonaro, Bannon se ofereceu para dar “dicas de internet, às vezes uma análise, interpretação de dados, esse tipo de coisa”.

Em recente entrevista à Bloomberg, empresa americana do mercado e agência de notícias que já aderiu a Bolsonaro, Bannon afirmou “eu vejo o que está acontecendo no Brasil, é parte desse movimento populista”, referindo-se ao candidato da extrema-direita como parte de um movimento internacional de ascenso de governos populistas, nacionalistas e xenófobos (ver artigo nessa edição sobre a comparação entre Bolsonaro e outros governos de direita). Bannon declara abertamente ser um fomentador desses movimentos de extrema-direita ao redor do mundo, tendo ajudado não apenas Trump mas também influindo na Europa – e agora no Brasil.

Como o mundo soube, a influência de Bannon e da Cambridge Analytica na eleição americana foi baseada na manipulação de eleitores por meio do Facebook, direcionando interesses e veiculando notícias falsas, as famosas “fake News”. No Brasil, cerca de 60% da população (161 milhões) são usuários da internet. O Whatsapp é uma das ferramentas em rede mais utilizadas pela população, e fornece o terreno perfeito para a “guerrilha comunicacional” de Bannon e Bolsonaro. Nesse terreno, sem poder rastrear de onde vem a informação e sendo difundida rapidamente a partir de pequenos grupos familiares, de amigos, de colegas de trabalho, as Fake News ganham proporções imensas.

Como vem ressaltando o filósofo Vladimir Safatle, em grande medida a mobilização política se faz por meio dos afetos, e não de argumentos. O medo do desemprego, da violência, dos efeitos da crise econômica, apoiados sobre a imensa campanha já feita pela grande imprensa para sustentar o golpe institucional em 2016 de que seria o PT o único e grande responsável pela catástrofe econômica no país, vem sendo habilmente manipulados pela estratégia de guerrilha em rede. Somado a isso, valores morais conservadores vem sendo colocados em jogo, e se utiliza, por exemplo, o argumento de que o candidato petista Fernando Haddad defenderia “ensinar as crianças a serem homossexuais” nas escolas.

Somado e esse trabalho de manipulação e desinformação nas redes, outra frente de campanha “por baixo” se dá nas igrejas evangélicas conservadoras. Após sua adesão maciça ao fim do primeiro turno, a imensa capilaridade de instituições como as igrejas de Edir Macedo, Marco Feliciano e RR Soares em cada recanto do país passaram a atuar como corrente de transmissão das notícias falsas a favor da propaganda eleitoral bolsonarista. Sem dúvida, esse fator desempenhou grande papel em fazer com que o candidato do PSL atingisse a supreendente votação de 46% no primeiro turno, surpreendendo todos os analistas e institutos de pesquisa.

Por fim, mas não menos relevante, são os atos “terroristas” de dezenas de ataques a negros, mulheres, LGBTs e pessoas de esquerda que vem sendo protagonizados pelos grupos de extrema-direita que apoiam Bolsonaro. São uma forma de moralizar as suas tropas e amedrontar opositores, preparando terreno para a vitória eleitoral.

 

A campanha “por cima” ganha peso no segundo turno

 

A “guerrilha comunicacional” nas redes, com a orientação de Bannon e o grande peso de ativismo virtual que era um capital político do bolsonarismo adquirido ao longo dos anos anteriores, foi decisiva para contrapesar a sua falta de peso na comunicação institucional. Com oito segundos de propaganda eleitoral, um partido pequeno e a falta de adesão de setores burgueses importantes no início da eleição, esse aspecto era decisivo. Essa ausência de peso no próprio regime político também permitiu a Bolsonaro construir uma imagem de “candidato anti-sistema”, propagando a ideologia de que estaria disposto a enfrentar todos os corruptos, os políticos tradicionais e defender o “povo” contra os “comunistas”, que passavam a ser todos os seus adversários ou não-aliados, desde o PT até a Globo, Rachel Sherazade, e até mesmo Francis Fukuyama ou a ultra-direitista Marine Le Pen.

Entretanto, ao passar para o segundo turno, Bolsonaro passa a ter grande peso não apenas nas táticas de guerrilha comunicacional, mas também nos grandes meios. E, enquanto no whatsapp a campanha virulenta dissemina todo tipo de calúnia e apela ao reacionarismo fascista da ideologia de Bolsonaro, tendo a liberdade de adequar o discurso conforme o grupo que se procure atingir, na televisão a propaganda faz um trabalho em certo sentido oposto e complementar. Se Bolsonaro é corretamente percebido por setores de massas como um misógino, racista, LGBTfóbico, o que pode lhe custar importantes votos, a sua primeira propaganda eleitoral nesse segundo turno foi dedicada a construir uma “imagem humanizada” do candidato. Na primeira metade do programa o discurso anti-comunista e anti-petista é ressaltado com o combate ao “foro de São Paulo” – ao qual é conferido um caráter de “conspiração esquerdista” para dominação da América Latina – e, na segunda metade, Bolsonaro aparece abraçando a filha e – pasmem – chorando ao falar dela. A peça de propaganda serve ao fim muito claro de tentar minimizar o efeito de todas as barbáries misóginas e machistas proferidas pelo candidato e, em particular, sua famigerada frase sobre ter dado uma “fraquejada” ao conceber uma criança do sexo feminino.

É nessa combinação das duas formas de campanha que reside o segredo decisivo da chamada “guerra híbrida”. Por cima, Bolsonaro mira agora ao centro, tentando se mostrar como um candidato “moderado” e desprovido de valores de extrema-direita. Nega ser um extremista e pode chegar a setores anti-petistas que repudiam sua ideologia fascista. Por baixo, prossegue com a guerrilha de mentiras, forjando as chamadas “Deep News”, notícias falsas que “criam realidade”, mudando o jogo eleitoral a seu favor, bem como as dezenas de agressões e intimidações que vão preparando suas “tropas de choque” para embates muito mais importantes contra o inimigo maior: o movimento operário – enquanto por cima Bolsonaro segue negando seu aval a tais medidas, bem como às Fake News de seus apoiadores. Assim, Bolsonaro pode seguir dispensando a sua presença em debates eleitorais, o tradicional ringue onde se travavam até hoje embates decisivos para decidir o resultado das urnas.

Lembremos que uma das mais importantes manipulações eleitorais da história recente no Brasil só pode ser feita porque a Globo havia aderido a outro “messiânico” político da direita, Fernando Collor, e, com uma cuidadosa e descarada edição das imagens do debate eleitoral entre ele e Lula na eleição de 1989, obteve um efeito decisivo em favor do candidato da direita. Em outro caso de “Deep News” que jogou com a mentira e o medo, podemos lembrar do famigerado “Plano Cohen” forjado pelo capitão integralista Olímpio Mourão Filho, em que forjava uma “conspiração judaico-comunista” para tomar o poder no país contra o governo de Vargas. A farsa conspiratória foi levada a público em cadeia nacional de rádio no programa “A hora do Brasil” e serviu de pretexto para o “auto-golpe” – para usarmos o termo popularizado por Mourão – e instituir o Estado Novo varguista, com perseguição, prisão e tortura de comunistas e opositores em geral. Outro exemplo clássico de uma farsa forjada pela extrema-direita para apoiar seus golpes foi o incêndio no Reichstag alemão em 1933, feito pelos nazistas para incriminar os comunistas e que serviu como justificativa para o aumento de poderes do chanceler recém-empossado Adolf Hitler. Outros exemplos frustrados são mais próximos do candidato do PSL: o frustrado atentado no Riocentro em 1981, em que militares pretendiam mandar pelos ares uma casa de show, matando centenas de inocentes para incriminar a esquerda em plena ditadura; e, inspirado por esse episódio, a fracassada tentativa de Bolsonaro de colocar bombas nos banheiros da Vila Militar dos Agulhas Negras exigindo maiores reajustes salariais feita por ninguém menos que o próprio Bolsonaro.

Hoje, no entanto, as Deep News possuem um meio muito mais rápido e com igual ou superior eficácia em relação à Globo ou a “hora do Brasil”: as comunidades de whatsapp. Combinado ao apoio dos “poderes de fato” do regime, Bolsonaro ganha terreno em meio à revolta da população contra o estado atual de coisas, difundindo centenas de farsas a serviço de uma resposta pela extrema-direita.

 

Os “pés de barro” da guerra híbrida bolsonarista

 

Se a probabilidade de que Bolsonaro seja bem sucedido em ganhar as eleições, capitalizando uma imagem de candidato “anti-sistema”, e fortalecendo em muito os grupos diretamente fascistas que estão com ele, seria um erro considerar um triunfo nas urnas como uma vitória consolidada.

Grande parte de seu eleitorado, atraído pelas fake News e por aspectos parciais de sua campanha – seja o moralismo ou a promessa de acabar com a corrupção ou a criminalidade – irá rapidamente ver suas expecativas se chocarem no período pós-eleitoral com o fato de que o governo Bolsonaro tem uma missão para a burguesia: impor pela força o que Temer não foi capaz de implementar das reformas estruturais contra nossos direitos, principalmente a reforma da previdência, que é repudiada massivamente, e inclusive entre as massas que votarão em Bolsonaro. Assim, a entrada em cena da classe trabalhadora, com greves e lutas contra os ataques de Bolsonaro, poderá ser quem irá destruir em mil pedaços esse bloco pouco coeso construído ao redor da candidatura do PSL, e baseado no medo e nas mentiras. É nessa perspectiva que temos que apostar.

 

[1] Guillem Colom, http://www.scielo.org.co/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1900-65862012000200004&lng=en&nrm=iso&tlng=es

[2] Idem.

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