Por Fernanda Montagner
“hoje os americanos gostam mais de socialismo”, essa frase pode espantar todos aqueles que viveram a década de 90, vendo os filmes americanos que exaltavam a vitória do capitalismo e do “jeito de viver americano”, enquanto rechaçavam a ideia de comunismo. Ser socialista era uma heresia, mas nas últimas décadas, no seio do principal imperialismo no mundo, as pessoas voltaram a falar em socialismo. Há um vigor renovado do horizonte socialista – apesar de todas as discussões e polemicas que se abrem, das quais desenvolveremos algumas nesse texto.
A crise de 2008 feriu de morte o neoliberalismo, que hoje vive em estado de agonia uma vez que não existem mais as condições econômicas da época da chamada “globalização” supostamente harmônica, abrindo espaço para a volta de fenômenos mais clássicos como do século 20: o retorno dos nacionalismos econômicos, da extrema direita, do fechamento das fronteiras, campos de concentração, e atos de milhares, greve gerais em vários países. Num pensamento mecânico, poderíamos acreditar que um capitalismo em crise, mais luta de classes, mais interesse pelo socialismo levaria a conclusão do retorno às idéias de revolução, tal como a experiência da Revolução Russa, com seus principais dirigentes, Lenin e Trotski.
Mas esse é o caminho que esse novo socialismo tem se seguido?
O “socialismo” reaparecendo nos Estados Unidos
Na realidade dialética, 2 mais 2 não é igual a 4. A crise do neoliberalismo abriu novas formas de “pensar e sentir”, abriu espaço às idéias de esquerda, mas essas idéias carregam o trauma epistemológico de mais de 30 anos sem revolução e o abandono da estratégia marxista que visa tomar o poder. O novo socialismo americano, que também se expressa em outros países, chamado de socialismo millennial, dos “99% da população contra o 1% mais rico”, é justamente fruto das experiências de luta que se abriram no pós-crise de 2008, mas que ainda carrega concepções herdeiras da restauração burguesa neoliberal.
Nos Estados Unidos, jovens com menos de 30 anos classificaram o socialismo mais positivamente do que o capitalismo – 43% a 32% – em 2016. Em base a esse descontentamento com a política tradicional, a campanha do senador “socialista democrático” Bernie Sanders, ganhou milhões de votos em 2016 com a promessa de uma “revolução política contra a classe de bilionários”. Os Socialistas Democráticos da América (DSA) cresceram de aproximadamente 7.000 membros em 2016 para 46.000 em julho de 2018, tornando-se a maior organização autointitulada socialista desde os anos 50. Esses dados colocam a potencialidade que tem de espaço a esquerda.
O interesse pelo socialismo é um dos legados do Occupy, movimento de juventude que ocorreu em 2011 e questionava o poder dos 1% mais rico, inspirado nos processos revolucionários da Primavera Árabe. O Occcupy mudou a consciência de massas e se transformou numa força social que segue até hoje, tornando-se uma referencia e interlocutor para o desenvolvimento do movimento de mulheres, movimento negro e as lutas que seguiram.
Apesar da grande mídia não falar nada de socialismo, foi a partir do Occupy que essa ideia voltou a atrair as pessoas, mostrando certo exito ideológico, e por outro lado expressão da crise orgânica, para usar os termos de Gramsci, no sentido da falência de um grande empreendimento do capitalismo, que foi o neoliberalismo.
Matriz identitária dos 99% é socialismo?
Talvez um dos debates mais atuais com o socialismo dos 99% é o fato deles pensarem a partir de uma matriz identitária: a interseccionalidade foi uma ideia que convenceu esta geração na qual feminismo é socialismo, anti-racismo é socialismo, LGBT é socialismo, segundo artido de Ben Judah na The New Left Review.
Sobre isso há duas idéias centrais: primeira sobre a interseccionalidade, que se por um lado tem o mérito de ligar os distintos tipos de opressão, por outro justamente confluiu com a falta de sujeito do socialismo dos 99%, ao diluir a questão de classe aos outros tipos de opressão de gênero, sexualidade e raça. Em entrevista, Tithi Bhattacharya teórica que da Reprodução Social, desenvolveu sobre o problema da interseccionalidade, no sentido filosófico e no sentido estratégico, que valem para reflexão, apesar de ela mesma ser parte das feministas que reivindicam a ideia dos 99%.
Ela diz:
“a compreensão marxista da totalidade social é intrinsecamente dinâmica. […] Ele (Marx) escreve como se a sociedade fosse um organismo vivo. A visão “entrelaçada” ou interseccional da sociedade é completamente estática, quase bidimensional. Não existe nem no conceito nem na metáfora, a ideia de que em alguma destas interseções estão mudando ou respondendo a alguma mudança. […] O marxismo mostra esta totalidade social mutável e palpitante atravessada de contradições imanentes e não externas a ela. A interseccionalidade, devido a seu modelo estático, apenas obtém modelos transhistóricos da opressão que estão sempre presentes e são, na melhor das hipóteses, arbitrários no modo como funcionam. Por exemplo, se as opressões sociais são interseccionais, de onde vêm as novas opressões?”
E continua “A teoria e os conceitos não são importantes apenas porque são ferramentas que explicam nosso mundo, mas porque eles deveriam nos dar as formas de como mudá-lo. Aqui, também, a interseccionalidade é um tanto quanto inadequada para esta tarefa. Por exemplo, seguindo a interseccionalidade, é muito fácil de discernir porque nós devemos ser solidários aos mais oprimidos; porque estes são os que portam múltiplas interseções. Mas porque a mais oprimida deveria ser solidária ao trabalhador branco?”.
Pergunta que consegue apresentar a contradição estratégica da interseccionalidade, e como revolucionários devemos ir além, no caso não se trata só de solidariedade num sentido geral, mas da unidade das fileiras operárias, trata-se de uma questão de vida ou morte como romper a divisão das fileiras dos trabalhadores que a burguesia impõem.
Partindo desse problema estratégico, coloco a segunda ideia sobre o problema das identidades. Pois o capitalismo é responsável pela opressão na medida em que ele a reproduz e a usa para aumentar a exploração do trabalho. Frente a uma classe trabalhadora mundializada e gigantesca, o neoliberalismo buscou dividi-la justamente usando do racismo, machismo, xenofobia e LGBTfobia, enquanto por outro lado desenvolve ideologias identitárias que segmentam as lutas. Cada grupo luta pela sua pauta e dessa forma o neoliberalismo consegue dividir a classe operaria entre si mesma e das demandas democráticas e populares, para enfraquecê-la.
Em diálogo com Battacharya, sobre o fato de que os movimentos sociais, como por exemplo o das mulheres e dos negros (com muita importância no Brasil e nos EUA) mantém muitas “interfaces” com o movimento operário, o que abre a possibilidade de forjar frações revolucionárias em seu interior, com a dupla tarefa de impulsionar esses movimentos sociais na medida em que são progressistas, e ao mesmo tempo lutar por sua independência do Estado burguês (combatendo suas burocracias particulares), a fim de atrair para o campo da classe operária a porção mais significativa desses movimentos.
Trata-se de um debate de estratégia a se fazer com o próprio DSA, que atua dentro dos limites permitidos pelo regime burguês, e não para preparar a superação revolucionária da sociedade capitalista, apoiado na classe trabalhadora como sujeito hegemônico sobre os “movimentos”. Ligando assim aquilo que o neoliberalismo burguês dividiu.
Os fantasmas ideológicos da época neoliberal no “novo socialismo”
A crise da política tradicional, dos partidos e figuras do regime foi comprovado à direita com a vitoria de Donald Trump, e a esquerda se expressa nesse interesse pelo socialismo que reemerge entre a juventude nos EUA, e pode ser um passo importante em direção à uma “fusão geracional” com as ideias do marxismo revolucionário. Mas para isso é preciso elucidar algumas confusões na concepção de socialismo que hoje é debatido nestes setores. O que seria esse socialismo dos 99% surgido desde o Occupy?
O slogan dos “99% contra o 1%” expressa a ideia de um socialismo para responder a um capitalismo financeirizado, onde a luta não seria mais dos trabalhadores contra a burguesia, mas sim da população contra os super ricos, nessa ideia de socialismo cria-se uma espécie de nova divisão de classes onde se inclui todos menos o 1% mais rico, ou seja, o definidor não é mais a localização na produção e a necessidade de uma classe ter que vender a sua força de trabalho, enquanto outra detém os meios de produção. Mas sim um critério de renda e de afetados pela crise, que vai desde um micro empresário de classe média ao trabalhador precário.
Sem negar completamente as bases ideológicas do neoliberalismo, como o “fim da história”, fim da classe trabalhadora, fim da época das revoluções operárias, e a manobra de igualar comunismo com stalinismo burocrático, acabam por construir uma ideia de socialismo que ao tentar “dar meia volta, volta ao inicio” confluindo com a negação do sujeito, e com a impossibilidade de revoluções operárias. Se negando a construir um socialismo com independência de classe, que se prepara com uma estratégia insurrecional para combater o capitalismo e suas crises.
Abstraindo o próprio desenvolvimento do capitalismo imperialista, no qual os 1% são justamente resultado da maior concentração de capital e dos monopólios, fenômeno próprio da fase imperialista do capitalismo. No empenho de criar algo novo acabam caindo na velha ideia quase kautskista [1] como se o imperialismo fosse uma política e não uma fase na economia. De forma que bastaria governos mais democráticos e populares para resolver o problema da enorme desigualdade.
Na crise de 2008 as classes médias se viram atacadas pelos “super ricos” e estavam se afogando em dívidas hipotecárias e na piora das condições de vida em um capitalismo totalmente privatizado, onde até na saúde se paga ou se morre. Ao contrario do marxismo revolucionário que, frente a crise e a classe média arruinada, busca construir uma política revolucionária onde os trabalhadores hegemonizem as pautas populares e atraiam as classes médias para a luta contra o capitalismo imperialista. O socialismo dos 99% conseguiu atrair esses setores, não por via da independência de classes, mas por falarem sobre democracia e um sistema “onde ninguém seja pobre demais para viver”, como disse Alexandria Ocasio-Cortez, chamada de rosto do“socialismo democrático” e membro do Socialistas Democráticos da América (Democratic Socialists of America – DSA).
Segundo Ocasio
“A definição de socialismo democrático para mim, de novo, é o fato de que em uma sociedade moderna, moral e rica, nenhum americano deveria ser pobre demais para viver. E para mim, isso significa que todo trabalhador americano nesse país deveria ter acesso a tratamentos de saúde dignos. Deveria de fato ser capaz de ver um medico sem ficar falido. Significa que você deveria ser capaz de mandar seus filhos para a faculdade, e trocar de escola se eles quiserem. E nenhuma pessoa deveria se sentir precária ou instável no seu acesso à habitação conforme nossa economia se desenvolve.”
Mas seria realmente isso o socialismo?
A necessidade de se retomar a ideia da revolução social
Ou seja, a ideia de um governo que garanta saúde, programas sociais, habitação e emprego, algo como uma espécie de New Deal ou um “estado de bem estar-social” que não altere os fundamentos do modo de produção capitalista. O problema que essa ideia nada tem a ver com socialismo na tradição marxista, a “maneira perfeita de desradicalizar e desacreditar o socialismo é esvaziá-lo de todo seu conteúdo revolucionário e torná-lo perfeitamente compatível com o “status quo”. O fato é que as palavras tem significados, e definições importam. Como socialistas e comunistas, é nossa tarefa defender a definição revolucionária de socialismo.” Como diz Doug Grenn colunista no Left Voice (seção americana do Esquerda Diário).
O que seria o socialismo revolucionário? Primeira ideia é que o socialismo não é o fim, mas sim o momento de transição entre as velhas e arcaicas praticas capitalistas, acabando com toda opressão e exploração para criar o comunismo, segundo que para atingir esse estagio é preciso abolir a propriedade privada dos meios de produção, acabar com o lucro e colocar o desenvolvimento das forças produtivas a serviço da sociedade. E por fim, para isso é necessário uma revolução dirigida pela classe trabalhadora, levando atrás de si todos setores oprimidos e a pequena burguesia arruinada, colocando de pé um governo dos trabalhadores.
Essa é uma estratégia genuinamente socialista contra a crise. Os setores de esquerda neoreformista disputam com a extrema direita o espaço anti sistêmico aberto pós crise de 2008, contudo nenhum consegue dar uma alternativa radical a crise, permitindo que a ultra direita dê. A falta de uma política anticapitalista radical, da necessidade da revolução e construção de um estado operário, joga esse neoreformismo novamente nas mãos do regime. A questão é que na política não se trata só de discursos ou boas intenções, as pressões são concretas, e se não se tem uma estratégia clara de rompimento com o capitalismo, o que irá ocorrer será a integração dentro dele. Desse fato decorre a importância desse debate e de construir uma esquerda oposta a toda ofensiva neoliberal que resgate a tradição revolucionária de Lenin, Trotski e do marxismo revolucionário e construam verdadeiros partidos anticapitalistas e com independência de classe, que possam fazer a diferença frente a crise.
[1] – Kautsky acreditava que o imperialismo era uma política específica das grandes potências, que podia ser substituída por outra menos agressiva, a tal ponto em que as potências poderiam “harmonizar-se” dividindo o Globo pacificamente entre si (o “ultraimperialismo”). Trata-se de uma ingenuidade reacionária, já que o imperialismo é uma nova fase da economia capitalista em sua etapa de declínio, que leva a maior concentração da produção e de grandes monopólios.
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