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Crise Ambiental | Os três “Estados paralelos” na crise do Rio Grande do Sul

Três vetores hoje disputam a hegemonia da crise instaurada no Rio Grande do Sul. O Estado tradicional colapsa e evidencia seu esgotamento, o negacionismo cava seu espaço e as iniciativas auto-organizadas apontam um caminho alternativo.

quinta-feira 9 de maio | Edição do dia
Foto: Cenas de voluntários no resgate em Canoas, RS / Getty Imagens

Difícil expressar para fora, em toda a sua dimensão, as proporções da crise vivida pelo Rio Grande do Sul. O cenário de guerra que tanto se fala na mídia não está apenas nas imagens das cidades destruídas, mas sobretudo no cotidiano de quem sobreviveu. Difícil encontrar algum morador da zona metropolitana de Porto Alegre, por exemplo, que não teve que sair de sua casa, não está abrigando alguém em sua casa ou não esteja ajudando em algum abrigo. Em dado momento dessa semana, 80% das casas estavam sem luz ou sem água, numa região que compreende cerca de 3 milhões de habitantes. Notícias de saques, assaltos e assédios não param de crescer. São mais de 60 mil pessoas em abrigos improvisados e mais de 200 mil desalojados de alguma forma. A noção de “refugiado climático” passa a ser uma realidade dolorosa para muitos. Ocorre hoje, no Rio Grande do Sul, uma severa decomposição do tecido social, mostrando como a crise climática é, sobretudo, uma crise civilizacional – indiscutivelmente capitalista.

Em meio a essa situação desesperadora, três grandes vetores entram em cena e disputam a hegemonia do processo e da narrativa da crise. Um deles é representado pelo Estado e suas instituições tradicionais, os governos, o Exército, a Brigada, os bombeiros, a Defesa Civil, o judiciário, o legislativo, etc. O segundo não existe propriamente como Estado ainda, mas vem sendo fabricado em base a um discurso notadamente populista, de extrema-direita, voluntarista, radicalmente “anti-Estado”, financiado por setores como Pablo Marçal, Luciano Hang, igrejas evangélicas e representado por figuras como Nego Di, Delegado Zucco, bandos de justiceiros, negacionistas climáticos e outros influencers e políticos. O terceiro emerge debaixo, dos abrigos auto-organizados, dos sindicatos, dos quilombos e ocupações, das pesquisas de estudantes de universidades, de tantos trabalhadores e trabalhadoras que se desdobram para ajudar em triagens, produção de alimentos, doações, resgates, divisões de tarefas das mais variadas. Os dois primeiros constituem parte integral do Estado burguês, apesar dos discursos e dos bandos negacionistas que inclusive se enfrentam com setores do exército e da polícia. O terceiro não existe enquanto Estado, mas persiste em germe na colossal solidariedade coletiva que estamos vendo, na enorme energia depositada por milhares de jovens e trabalhadores das cidades afetadas e também nas ações de auxílio nacionais e internacionais.

O Estado tradicional vem se mostrando absolutamente incapaz de lidar com a crise. Além de ter ignorado as incontáveis previsões de enchentes, os governos estadual e municipais evidenciam sua inoperância frente às cidades submersas e a descomunal crise social da última semana. Em algumas cidades, as prefeituras e as câmaras municipais simplesmente deixaram de existir (Porto Alegre, por exemplo, o legislativo municipal está debaixo da água. Cidades do Vale do Taquari não possuem mais um local físico para a prefeitura e secretarias. A infra-estrutura do executivo em diversos lugares simplesmente desapareceu). A nível nacional, o governo Lula e o Congresso estão há uma semana discutindo se os recursos que podem salvar e reconstruir vidas irão comprometer o marco fiscal do Haddad, afetar a dívida pública ou farão tudo isso sem precisar furar o Arcabouço Fiscal e criar um precedente considerado "danoso" para outros estados. Enquanto discutem, a marca de mortos e desabrigados só cresce. A Brigada Militar e o Exército não conseguem dar conta do caos e, em diversas ocasiões, vem se chocando com a própria população e equipes populares de resgate. Não são poucos os vídeos que mostram militares se negando a ajudar em resgates ou sendo negligentes frente às demandas de suprimentos. A Defesa Civil, enxugada pelos orçamentos neoliberais, é incapaz de atender minimamente à demanda. A crise de abastecimento das cidades afeta inclusive as equipes de resgate, que há dias reclamam com falta de lanternas, água potável, combustíveis, barcos e questões básicas para adentrar os rios que invadem o que antes eram ruas e avenidas. Chama a atenção a quantidade de alimento e água sendo retidos em galpões controlados pelas autoridades estatais, quando milhares estão sofrendo com a escassez. Institutos de meteorologia parecem ter mais credibilidade que qualquer autoridade estatal nesse momento. Vivemos um verdadeiro colapso do Estado “normal”, uma falência sem precedentes que evidencia o esgotamento do Estado burguês frente a crises climáticas, que tendem a ser cada vez mais frequentes.

Diante desse colapso, crescem os bandos ligados a empresários como Pablo Marçal e Luciano Hang. Na narrativa desse setor, o exército se corrompeu desde o 8 de janeiro, a grande mídia quer esconder o que ocorre no RS para mostrar apenas a pornografia da Madonna em Copacabana e, carregados de uma verborragia populista de alta intensidade, “só o povo salva o povo” (propositalmente escondendo que por trás deles estão setores do agronegócio e empresários endinheirados que estão lucrando com engajamento). Leite e Lula são um dos principais alvos, mas curiosamente políticos como Melo, Bolsonaro e outros prefeitos ligados à extrema-direita são poupados. Policiais como o Delegado Zucco (que também é o deputado federal mais votado do RS na última eleição) estão aproveitando o caos para acertar contas com facções criminosas e, de quebra, prender “uns vagabundos” que estão entrando nos mercados debaixo d’água. Empresários e influencers neoliberais são glorificados. O Brasil Paralelo, empresa negacionista na qual o vice-prefeito de Porto Alegre atua, se transformou na bússola ideológica dessa malta. Pablo Marçal, por exemplo, divide seu tempo entre fazer cenas no meio da enchente, propagandas dos seus produtos e discursos conspirativos como o desse vídeo grotesco. Valem-se de elementos reais da realidade para fantasiar teorias da conspiração, tudo embalado em uma oratória fervorosamente religiosa e profética. Afinal, após quarenta dias e quarenta noites de chuva, “exterminarei da face da Terra todas as criaturas que fiz”, disse Deus no velho testamento, e apenas Noé e sua família foram poupados do dilúvio por causa de sua retidão moral. Esses homens e mulheres de bem, que não hesitam em atirar no primeiro desafortunado que pisar dentro do Atacadão, acreditam piamente estarem preparando a arca que salvará a humanidade de todo o mal. E dá-lhe fake news, negacionismo, militarismo e altas doses de neoliberalismo nessa arca!

A verdade é que ambos são responsáveis pela tragédia que vivemos, tanto o Estado tradicional quanto esse protótipo de “Estado paralelo” negacionista. Essa combinação entre neoliberalismo agressivo e negacionismo climático, presente em ambos, gera um combo destrutivo cujos efeitos estamos vendo nesse momento. Ao mesmo tempo, frente à onda de solidariedade que está atravessando o país, dissipam-se as dúvidas sobre o gigantesco potencial coletivo que as populações, e a classe trabalhadora em especial, possuem quando se organizam. É impressionante como as pessoas estão sendo tocadas pela tragédia no RS e estão se desdobrando para salvar vidas, para ajudar em resgates, para alimentar o próximo, para ajudar na limpeza de um abrigo, para resgatar animais abandonados, para doar o pouco que tem em benefício dos refugiados. Em Canoas, Eldorado do Sul, Novo Hamburgo e outras cidades submersas ficou evidente como as brigadas auto-organizadas literalmente salvaram as vidas de milhares de pessoas, que sem eles estaríamos vendo um número de mortos e desaparecidos ainda maior. Essa impressionante força de baixo, em grande medida auto-organizada, é o principal ponto de apoio para reconstruir as vidas que estão desestruturadas nesse momento e, na medida do possível, as cidades devastadas.

Para esse potencial se desenvolver plenamente, seria necessário que houvesse uma coordenação de todas essas iniciativas de abrigos e brigadas solidárias de forma independente do Estado, auto-organizada. Um comando geral das cidades poderia ser conformado, com representantes eleitos de cada abrigo, cada centro solidário, cada assembleia de bairro e cada brigada de resgate para coordenar as iniciativas de acordo com as demandas de mantimentos, salvamento e trabalho. Grandes supermercados deveriam ser expropriados nesse momento e controlados pelos trabalhadores para suprir a população de acordo com a demanda – é um crime que Zaffari, Carrefour e Cia. sigam lucrando milhões enquanto o povo gaúcho morre, adoece e perde suas casas. Ao mesmo tempo, os sindicatos, as centrais sindicais e movimentos sociais deveriam colocar seu peso para posicionar a classe trabalhadora organizada em cena, disputar a hegemonia do processo e da crise com uma delimitação de classe, para fazer com que os capitalistas sejam os que paguem pela crise, não a maioria da população. Para girar a produção da sociedade em função de salvar e reconstruir vidas, não dos interesses de mercado. Para reorganizar a forma como as cidades e o campo se relacionam com o seu entorno, com os rios e as florestas, de forma sustentável e não predatória. Essa liga é o gérmen que pode florescer um outro tipo de sociedade na qual a vida e a natureza estejam de fato, e não só em palavras, acima do lucro.




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