Debate com Safatle: o que é o “golpe em marcha” e como podemos pará-lo?

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imagem: Juan Chirioca

Por Fernando Pardal

Está tendo grande repercussão a intervenção feita pelo professor Vladimir Safatle no debate “O fim da era dos pactos: violência política e novas estratégias”, organizado na USP pela Boitempo. Em sua fala, Safatle expressa questões fundamentais para compreender como chegamos à atual situação, em que a candidatura de extrema-direita de Bolsonaro tem 28% das intenções de voto.

O aspecto fundamental, e em que coincidimos com sua análise, é o que Safatle sintetiza assim: “(…) sempre é bom a gente perguntar, quando você tem uma extrema-direita em ascensão, onde a esquerda traiu?”. E, analisando a história recente do país, salta aos olhos os episódios de traição do PT, como os ataques do segundo governo Dilma ou a ausência de combate às reformas de Temer, que pavimentaram o caminho para a ascensão e consolidação do “bolsonarismo” como a versão brasileira da extrema direita nos moldes da “tradição Pinochet” que aponta Safatle, com um programa neoliberal ao extremo se combinando com a ideologia autoritária anti-esquerda, anti-mulheres, anti-negros, anti-LGBTs, etc.

Como aponta precisamente o professor, o ponto de inflexão na política nacional está em junho de 2013, quando começam a se mostrar evidentes rachaduras na muralha do pacto de conciliação de classes do qual o PT havia se tornado o mais eficaz guardião. Os ecos das mobilizações de massas no mundo, da Primavera Árabe – que ainda não havia sido afogada em sangue e golpes militares – ao levante estudantil chileno, inspiravam as massas que haviam conseguido concessões reais, porém precárias, durante os governos petistas, a sair às ruas por mais, indignadas ao verem escolas e hospitais públicos precarizados em contraste com os suntuosos estádios dos megaeventos. A direita “foi pras ruas” se travestindo de movimento popular, com financiamento de George Soros, por meio do MBL. Criou sua simbologia com o pato de Skaf e as camisetas da seleção. Paralelamente, Safatle aponta que “desde 2013 o discurso da esquerda deveria ter sido um discurso de radicalização (…) e não foi isso que aconteceu”. Pelo contrário. A postura do PT, inclusive, foi – e ainda é – jogar de bandeja o mérito das manifestações no colo da direita, e identificar ali o “início do golpe”.

Mas a direita (não apenas a “bolsonarista”) só conseguiu hegemonia política suficiente para assentar um duro golpe ao PT quando se consagrou a traição aberta de Dilma em seu segundo mandato, quando cortes e ajustes passaram a ser a regra, e as concessões precárias saíram de cena. Criou-se a base de apoio popular – ainda que passivo – para o golpe. As eleições em 2016 mostraram até que ponto o PT havia pagado o preço.

A outra traição decisiva foi o freio imposto pelas direções sindicais petistas diante do repúdio massivo contra as reformas do Temer. Um após o outro, os ataques passaram, com o 28 de abril pairando como a sombra do que poderia ter sido a classe operária impondo um limite ao programa neoliberal extremo que Temer procurava – e em quase tudo conseguia – aplicar.

Mais uma vez de forma cirúrgica, Safatle aponta o limite à esquerda: o PSOL, único partido à esquerda do PT que teria a localização necessária para se colocar como o “anti-Bolsonaro”, apresentando uma saída radical à esquerda, se mostrou uma nulidade – na melhor das hipóteses, pois havia ainda os setores do partido que embarcavam no golpe com a esperança de parecerem “radicais” ao apoiar a medida mais brutal de ataque da burguesia. A “bem comportada” candidatura de Boulos, que programática e estrategicamente reproduz o “PT da origens” é uma continuidade desse fracasso. Safatle aponta como até mesmo Corbin e o Partido Trabalhista inglês apresentam um programa mais radical. Voltaremos a esse debate adiante.

O “golpe em curso” e o fortalecimento de um “reformismo senil”

Contudo, a fala de Safatle viralizou nas redes não por essa análise que coloca no centro a forma como o petismo abriu alas para o bolsonarismo passar e chegar às massas. É sem dúvida no seu título, “Há um golpe militar em marcha no Brasil hoje”, que se encontra um imenso interesse. Aqui, há uma espécie de “dupla mensagem” facilmente apreensível no discurso.

Por um lado, Safatle dá continuidade à análise da direitização do regime político e o papel que a crescente politização das forças armadas tem nisso, que já no ano passado ele fazia, e com a qual Iuri Tonelo debateu aqui. Quando Safatle afirmava que “não haveria eleições em 2018”, ele se referia não apenas à possibilidade de um impedimento do pleito pela força das baionetas, mas colocava em jogo possibilidades mais amplas, como as que efetivamente ocorreram: o impedimento da principal candidatura, de Lula, e outras medidas de força, como a que acabamos de ver o STF consolidar, com o sequestro de 3,4 milhões de votos por meio do argumento da biometria.

Agora, quando ele fala em “golpe militar”, é bastante fácil deduzirmos que o desespero de muitos – em particular da base eleitoral petista, da intelectualidade, etc. – leia imediatamente como indicação de um efetivo golpe por força das armas, com o Estado tomado de assalto pelos testa-de-ferro verde-oliva. Isso porque, como expressa Safatle, “esse programa neoliberal, tal como ele foi abraçado, ele só pode ser implementado no Brasil à bala. Não tem outra saída, ele nunca vai ganhar uma eleição”. E, efetivamente, o começo de sua implementação por Temer, via golpe institucional, bem como sua aprovação de 4% (e o índice de intenção de votos de seus dois herdeiros marcados, Alckmin e Meirelles) são uma demonstração expressiva da impossibilidade de consagrar nas urnas a agenda de ajustes, ataques e privatizações.

Mas as “balas” que podem implementar o golpe têm muitas formas: começaram com o golpe institucional que colocou Temer no governo e seguiram com a prisão e impugnação de Lula. Agora, setores expressivos dos militares já dizem não reconhecer o resultado das urnas, de forma mais ou menos velada, e sem dúvida há setores que, dentro do exército, já veem no golpe direto a saída necessária. Mas, como o próprio Safatle coloca, “ganhando ou não ganhando eles vão empurrar goela abaixo da sociedade brasileira este programa. De uma forma ou de outra. Ou com um golpe militar explícito, ou com um Estado tutelado, uma espécie de Turquia mais ou menos soft”.

Que os “cinco atores” do golpe civil-militar citados por Safatle (agronegócio, igrejas conservadoras, imprensa conservadora, Forças Armadas, empresariado/setor financeiro, aos quais seria necessário como mínimo agregar o imperialismo norte-americano) estejam prontos para tentar todos os recursos possíveis para implementar seus ajustes, disso ninguém pode duvidar. Mas um fator decisivo da equação que Safatle deixa de fora é o impressionante fortalecimento do petismo, sob a forma de um “reformismo senil”. Como dissemos anteriormente, o fato do PT ter sido paradoxalmente poupado pelo golpe de ser o agente dos ataques mais duros permite a ele hoje retomar o discurso de “fazer o Brasil feliz de novo”, e se reabilitar diante das massas comparando o período lulista ao tenebroso governo Temer. Não é um detalhe que, na propaganda de Haddad, Lula tenha dito que “Eles [o povo] sabem que nós fizemos um Brasil melhor durante doze anos”, e Haddad: “Você se lembra, foram doze anos de prosperidade”. A conta do segundo governo Dilma o PT pagou em 2016, e agora quer manter longe de si.

Os 40% de intenção de votos em Lula, e a impressionantemente bem sucedida transferência de votos para Haddad expressam o que Safatle deixou de fora das contas: não é apenas nas urnas que o programa de ajustes não ganha, mas, de forma distorcida, essa intenção de votos expressa um rechaço massivo ao golpe, e significa que no horizonte de sua implementação há um obstáculo para a burguesia e o imperialismo chamado luta de classes.

O custo político de um golpe nessas circunstâncias seria altíssimo, um custo que em 2016 era muito menor, mas que hoje em dia não parece, se não para alguns militares mais “esquentados”, a melhor saída. Historicamente, os golpes militares “clássicos” são a última cartada na manga, utilizada apenas para combater em momentos de grande ascenso dos setores explorados e oprimidos, como foi em 1964 com a explosiva combinação da organização na base das Forças Armadas, as Ligas Camponesas e as greves operárias. Esse claro inimigo em comum para as classes dominantes, o “perigo vermelho”, não existe concretamente, mas apenas na imaginação delirante dos bolsonaristas. Haddad, não à toa recebendo apoio indireto da Economist, Financial Times e até mesmo FHC, serve muito melhor, nesse momento, como “garoto de recados” dos capitalistas do que um general Mourão ou um Villas Boas. Sobre essa questão, aprofundamos aqui o debate.

Ao não considerar o imenso fortalecimento do “reformismo senil” do PT como uma alternativa muito mais viável e menos custosa para burguesia como uma forma de evitar a emergência de uma saída à esquerda, e ir procurando mediações necessárias para negociar com o petismo a implementação possível dos golpes – numa delicada equação com resultados obviamente nada garantidos em relação a necessidade de aplicar seus ajustes X a possibilidade de implementá-los a seu contento – Safatle acaba de forma involuntária cumprindo um papel funcional ao petismo, pois não apresenta nenhuma alternativa concreta ao golpe militar e, por essa via, embeleza o petismo como única alternativa, ainda que precária para se contrapor ao que, em sua análise, surge como a certeza de um golpe.

Sobre o “equilíbrio de forças”

A tese central de Safatle sobre o balanço da esquerda, que com sua falta de radicalismo abriu caminho à extrema-direita, é absolutamente pertinente. Mas, em que medida a radicalidade pode apontar para a superação tanto da extrema-direita quanto da “esquerda legalista” que lhe serve de apoio involuntário?

Ao final de sua fala, Safatle utiliza a analogia da Guerra Fria para esboçar essa estratégia, em que o inimigo não poderia avançar por não poder dispor de forças suficientes para o ataque. Essa ideia se reconecta com o início de sua fala, em que trata da Constituinte de 88 como um “sistema de freios duplos”, em que se estabeleceu um pacto, que, como ele diz “parecia astuto” de incorporar atores da ditadura e, por um lado, não mexer no processo de concentração de renda e nenhum aspecto econômico estrutural, e, por outro, não avançar numa devastação neoliberal “à la Pinochet” ou Thatcher. Esse “pacto da Nova República” teve como ator central justamente o PT, a “esquerda legalista”, que, por ir se tornando cada vez mais o gestor estatal desse pacto, foi procurando “esticar a corda” até o limite, “abraçando o capeta” nos seus governos e tentando ampliar concessões populares que não tocassem nas estruturas. Mas não é à toa que o pacto se rompe, mas sim pela crise. E quem sai por cima é a classe dominante.

Dos exemplos que Safatle cita, não por acaso fica de fora o que seria o maior deles há alguns anos, mas que foi abandonado justamente por ter sido o que melhor mostrou onde isso vai dar: o Syriza grego. “Radical” no discurso, quando chegou à frente do governo com sua “estratégia plebiscitária” mostrou sua impotência. Como Corbin, Sanders, Podemos ou Front de Gauche, são esquerdas que por vezes são “radicais” na retórica, mas incorrem no mesmo legalismo que Safatle apontou corretamente como um beco sem saída. E, por isso mesmo, não procuram o potencial de resistência ali onde ele existe: fora das urnas e parlamentos, na organização ativa dos trabalhadores – sendo os parlamentares socialistas eleitos a serviço dessas lutas. Se teve um momento que o plano de Temer pareceu ameaçado, foi no 28 de abril quando a classe trabalhadora parou o país. Freada pelas suas direções “legalistas”, a luta ficou a meio caminho. O problema fundamental da perspectiva política que Safatle indica em sua fala é justamente que o pacto que “parecia astuto” em 88, e que a experiência das últimas décadas nos mostra justamente o quanto não era, é em grande medida o que ele procura recriar sob novos termos, mais “radicais” à esquerda e à direita para recriar um novo equilíbrio “republicano”. Não se trata de pensar um “radicalismo” que possa avançar no sentido revolucionário e impor uma solução de forças no sentido à esquerda, de emancipar os explorados e conduzir a uma superação do capitalismo, mas sim de meramente impor um medo suficiente para que o inimigo não ouse avançar além dos limites atuais, em que seguimos vivendo em um dos países de maior desigualdade social do mundo e no qual um punhado de capitalistas detém a mesma riqueza que dezenas de milhões.

O programa e a política radicais são imprescindíveis para ganhar as massas, mas sem uma estratégia capaz de levar o embate ao local onde podemos derrotá-los, nas ruas, sempre seremos vítimas de um “equilíbrio instável” que se decide pela força. Lutando no campo deles, eles sempre serão mais fortes. Para retomar a analogia, a Guerra Fria se decidiu, e foi o início do neoliberalismo selvagem. O caminho que procuramos é o de outra esquerda radical, ou mais que radical, revolucionária, que aposte no terreno da luta de classes, o único campo de batalha em que podemos vencer.

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