Os militares fora dos quarteis: qual o significado das “aproximações sucessivas”?

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Imagem: Juan Chirioca 

 

Por Thiago Rodrigues e Iuri Tonelo

 

O atentado contra Bolsonaro trouxe mais incertezas e aprofundou o clima de polarização das eleições brasileiras. Foi, ainda, a senha para uma maior politização das forças armadas. O general Mourão, candidato a vice de Bolsonaro – golpista reconhecido pelas suas declarações abertamente em defesa da ditadura durante o governo Dilma, quando era comandante do III Exército – assumiu um papel de destaque enquanto Bolsonaro permanece convalescente. Entre outras declarações, aventou a possibilidade de um “autogolpe”, com as Forças Armadas agindo independentemente da constituição, sob as ordens do “comandante em chefe” e também sobre a possibilidade de uma constituição sem constituinte, feita por notáveis.

Não foi esse, no entanto, o único movimento dos generais e do Estado-Maior nesses últimos dias. O comandante do exército, o general Villas Boas, mais uma vez interveio diretamente no cenário político ao questionar, em entrevista ao Estadão, a legitimidade do próximo governo eleito em função do atentado. O ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), o general Etchegoyen, ao visitar Bolsonaro no hospital, aproveitou para fortalecer a tese do Alto Comando, afirmando que o atentado pode destruir a democracia. Para fechar a lista das movimentações, o novo presidente do STF, o ministro Dias Toffoli, nomeou como seu assessor o general Fernando Azevedo e Silva, chefe do Estado-Maior do exército.

Como parte dessa politização da caserna, o pleito de 2018 vai bater o recorde de participação de militares em eleições desde o fim da ditadura militar. Além de Mourão, vice de Bolsonaro, e dos candidatos da coligação militar PSL/PRTB, o PSDB do Ceará, por exemplo, vai lançar o general Theophilo, ex-comandante militar da Amazônia, como candidato ao governo do estado. Teophilo traz propostas como a militarização da administração das escolas estaduais.

O atentado e as movimentações que o sucederam mostraram também possíveis fissuras na chapa militar. Enquanto o general Mourão, pela via do PRTB, fazia movimentos no TSE para substituir Bolsonaro nos debates, o presidente do PSL e os filhos do candidato, nas redes sociais, desmentiam essa possibilidade.

Diante desse quadro de “politização” cada vez maior das Forças Armadas e da ingerência em instituições centrais da (degradada) democracia brasileira, pode-se perguntar: aonde quer chegar o exército com esse nível de intervenção?

O bonapartismo da toga e da farda

Em uma situação de crise econômica e social como a brasileira, com imenso desemprego, reformas e novas promessas de ataques, a forma de dominação dos capitalistas sobre os trabalhadores sofre abalos e pode até mesmo entrar em crise. Pode-se dizer que é uma crise de hegemonia, em que as instituições, os representantes políticos e o regime de dominação ficam questionados. Abre-se espaço para respostas mais radicais, e é nesse ponto que, como resposta reacionária, o imperialismo e setores pró-imperialistas do capital, apoiados em personalidades políticas ou instituições específicas, tomam medidas arbitrárias – bonapartistas para dizer conceitualmente – contra a constituição e até mesmo buscam constituir governos que têm a aparência de flutuar por cima das classes e atuar em nome dos “interesses da nação”. Na verdade, buscam criar uma nova forma de hegemonia baseada em soluções de força, repressão e em um programa econômico que descarrega a crise nas costas dos trabalhadores.

Essas medidas bonapartistas expressam uma situação de mais polarização da sociedade e de desespero das classes dominantes. No caso brasileiro, foi determinante a entrada em cena do movimento de massas em junho de 2013, com as greves antiburocráticas que se seguiram. Junho foi um divisor de águas decisivo nesse sentido, colocando em xeque elementos fundamentais do equilíbrio capitalista brasileiro reinante até então.

O problema é que com uma correlação de forças mais favorável aos trabalhadores é impossível a consolidação de uma direita tão encorajada a atuar decididamente no sistema político, e também de uma pequena-burguesia como base mais sólida de apoio… nem falar que tenha espaço para a farda verde oliva entrar em cena. Foram necessário anos entre junho de 2013 e a possibilidade de radicalização política e o impeachment de Dilma em 2016, momento no qual os ajustes econômicos do PT em 2014, o que ficou conhecido como “estelionato eleitoral” nas massas e o papel das burocracias sindicais em travar o movimento operário levam a uma experiência e uma ruptura de massas de setores trabalhadores organizados, criando condições para a atuação e encorajamento dos setores da direita.

A crise de hegemonia das classes dominantes, agora que haviam dispensado o PT do seu plano hegemônico, tinha como raiz de fundo a necessidade de aplicar, diante da crise econômica, um nível de ataques ainda maior do que os ajustes de Dilma de 2014. Um verdadeiro choque neoliberal no Brasil que levou a “novos métodos” e um plano mais estruturado de alçar o judiciário como instrumento bonapartista de reformulação do regime brasileiro com base em um golpe institucional.

A operação Lava Jato e as manifestações de rua reacionárias promovidas pela Rede Globo e por uma nova direita aglutinada em torno de grupos como o MBL e financiados por ONGs internacionais promoveram uma escalada das medidas bonapartistas. O judiciário passou a intervir no regime político através de uma série de mecanismos. A Lava Jato, com sua fábrica de delações, divulgação de escutas telefônicas, conduções coercitivas, foi rompendo a legalidade sistematicamente, de forma arbitrária, e se alçando como “principal poder” no país, uma forma de bonapartismo judiciário. O STF, supostamente um tribunal constitucional, acumulou enormes poderes, exercendo tutela sobre o congresso, seja diretamente legislando através dos julgamentos, seja intervindo no congresso, como na ocasião em que abertamente julgaram por fora da constituição na questão da linha sucessória. Em suma, uma escalada que teve como ponto culminante numa primeira fase o golpe institucional. E, mais recentemente, a continuidade do golpe, ao retirarem o direito do povo decidir em quem votar, com o impedimento da candidatura de Lula e sua prisão arbitrária, com outras medidas esdrúxulas do ponto de vista constitucional, como vetar até mesmo seu direito de conceder entrevistas.

Com o judiciário na linha de frente da tutela autoritária sobre o regime político, os militares pareciam estar em um segundo plano, mas o aprofundamento do golpe institucional está mudando esse processo. Agora, de mãos dadas com o bonapartismo de toga, volta à cena abertamente o bonapartismo clássico da farda. Mas onde esteve o ponto de clivagem?

Como dissemos no início deste artigo, são inúmeros os exemplos da intervenção do comandante do exército na cena política, mas talvez setembro de 2017 tenha sido um dos momentos em que essas primeiras intervenções se escancararam, no sentido de uma virada, particularmente em uma fala do ainda general da ativa Mourão. Falando sobre uma reunião do Estado-Maior do exército, afirmou que os militares poderiam ser chamados a intervir caso o judiciário não resolvesse o problema político (corrupção) e que isso não se daria de imediato, mas através de uma série de aproximações sucessivas. Essa foi a senha e, na esteira das declarações do general golpista, várias integrantes da oficialidade se encorajaram a também emitir publicamente suas opiniões. Chamado a televisão para desmentir as declarações golpistas de Mourão, o general Villas Boas fez o contrário, reafirmou e justificou a tese das aproximações sucessivas, pontuando essas eleições de 2018 como uma delas. A atitude no comandante do exército, bem como suas declarações à época e agora mais recentemente, nos fazem ao menos colocar a questão de se não teria sido um movimento coordenado, parte das tais “aproximações sucessivas” de que falavam Mourão e Villas Boas. Mas de que o exército quer se aproximar sucessivamente? Trata-se de um plano único ou com divisões?

Preparam uma solução de força para a crise orgânica?

Ainda que alguns setores da extrema direita levantem a defesa de uma intervenção militar, esse não é o plano imediato que ordenou todo o golpe institucional, as intenções econômicas e políticas por trás dele e a presente atuação  dos militares. Os objetivos imediatos do alto comando se dividiram, especialmente, em duas alas fundamentais dentro da cúpula militar.

Uma primeira força, majoritária e coordenada por Villas Boas, veria como objetivo estrutural ganhar base social para a interpretação que fazem os militares do artigo 142, de garantia da lei e da ordem e dos poderes constituídos, ganhando legitimidade para futuras intervenções se as julgarem necessárias. Os três pilares que, segundo Villas Boas, pautam o exército são reveladores: estabilidade, legalidade e legitimidade, conhecendo a elasticidade da interpretação da Constituição tanto pelo STF como pelo exército, o que vale é a estabilidade da ordem capitalista e a legitimidade para exercer a força se julgarem necessário. Para além disso, no entanto, querem, e já estão conquistando legitimidade para atuar politicamente, tutelar as instituições e defender um programa político e econômico antipopular e pró-imperialista, ou seja, ser a cara repressiva e ostensiva do plano imperialista que originou o golpe institucional. A toga e a farda atuam em consonância contra os interesses da classe trabalhadora e a favor de setores imperialistas.

De outro lado, as declarações golpistas – mais incisiva em generais da reserva como Heleno, que foi comandante no Haiti, ou Mourão, especialmente depois que foi para a reserva e passou a presidir o Clube Militar, um antro de golpistas aposentados – também parecem responder a uma corrente no interior dos generais do exército que vê, com força menor, a princípio, diante do quadro político atual, a necessidade direta da intervenção militar.

Naturalmente, as duas tendências no exército não são marcadas por uma disputa clara entre frações, mas por um espaço forte de intersecção entre as propostas que vão da busca de um candidato que corresponda ao programa lavajatista e, na falta dele, a possibilidade de uma solução de força.

A grande questão é: como os objetivos dessa intervenção se ligam aos cenários eleitorais?

Colocamos três possibilidades para a aplicação do programa econômico-político golpista, que se ligam às tendências dominantes na cúpula do exército: a) a eleição do próprio Bolsonaro, disciplinando o candidato após o atentado, que já tem programa ultraneoliberal e agora estaria bastante suscetível ao controle da cúpula do exército (tendo a emblemática visita de Sérgio Etchegoyen, entrando pela porta dos fundos do hospital como um primeiro emblema disso) – naturalmente uma intervenção mais incisiva durante o segundo turno seria fundamental para driblar a rejeição, o que pode incluir aspectos de fraude; b) Bolsonaro inviabilizado, o que até o primeiro turno levaria a uma mudança abrupta no cenário eleitoral, podendo se fortalecer outro candidato da direita que fosse interessante para vencer o PT ou mesmo a aposta em Mourão seguir a candidatura junto a Paulo Guedes; c) cooptação de Haddad, em oposição a ala lulista no PT, impondo em seu governo um ajuste brutal contra os trabalhadores, tutelado por juízes e militares, levando a uma experiência rápida das massas e criando mecanismos de uma solução bonapartista mais agressiva.

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Se os cenários são esses, de polarização social crescente, crescimento da extrema direita e o avanço a um regime tutelado abertamente pelas cúpulas judiciárias e militares, mais do nunca é necessário colocar de pé um esquerda revolucionária, fortemente arraigada na classe trabalhadora, que denuncie claramente as arbitrariedades do bonapartismo judiciário e agora sua faceta militar, levante demandas democráticas como uma assembleia constituinte livre e soberana em oposição à constituinte dos notáveis que querem os militares e que enfrente os ajustes e privatizações dos golpistas civis e militares com os métodos da luta de classes.

Qualquer programa falsamente desenvolvimentista ou proposta de conciliação está fadada ao completo fracasso.

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