Entre pactos e ameaças

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imagem: Juan Chirioca

 

Por Edison Urbano

 

Um ‘pacto’ que não dissipa, mas antes aguça contradições

 

A uma semana do primeiro turno, algumas tendências políticas imediatas parecem se delinear mais nitidamente. As contradições de um regime “em ponto de mutação” seguem, contudo, operando com toda força.

Exemplos não faltam: o último entrevero entre ministros do STF, com desfecho por ora no sentido autoritário, sobre a possibilidade de entrevistar o líder popular preso sem provas é só uma imagem do que estamos dizendo;

A troca de “fogo amigo” entre candidato e vice na chapa da ultradireita, o curso à centro-direita do pretenso herdeiro de Brizola, que há poucos dias ainda encantava muitos desiludidos da base petista, são outros tantos lances, cuja multiplicação aqui poderia seguir ao infinito, sem necessariamente representar um ganho real para o leitor. A única coisa que parece firme é o crescimento eleitoral do substituto de Lula, e a aceitação de seu favoritismo por grande parte dos detratores do seu partido. Mas mesmo a consolidação e eventual vitória eleitoral do pacto de reconciliação expresso por sua candidatura, apenas lança mais e mais contradições e incertezas sobre o horizonte do país. A começar pela relação entre a própria realidade criada pelo pacto, e lugar ocupado dentro dela pelo seu principal arquiteto e artífice, atualmente impedido sequer de falar ao público.O que nos faz lembrar de um alerta: que não se identifique imediatamente a crise (terminal?) do regime de 88, com a crise orgânica da ordem capitalista no Brasil, que inclui aquela mas a ultrapassa.

Lembrando Gramsci, a crise orgânica da dominação burguesa só pode encontrar saída se encontrar bases materiais para uma renovação da sua hegemonia. Na falta disso, abre-se o espaço para as “soluções de força”, pela direita ou pela esquerda.

Por ora o caminho adotado é o da degradação autoritária do regime político, com o bonapartismo judiciário à frente. Em meio a ele, dentro de todas as instituições, civis e militares, assistimos agora a disputas e rearranjos entre os setores que se inclinam a reforçar um novo pacto pós-golpe, e as alas que ainda sonham como um “golpismo até o final”.

Mesmo correndo o risco de errar, caso a incerteza do cenário político  se reafirme mais uma vez, se sobrepondo à dinâmica eleitoral agora já previsível, nos parece mais útil lançar o pensamento ao futuro, partindo de apenas um dos cenários atuais, com a vitória (provável) do candidato de um “PT pós-golpe”. Em caso contrário, os elementos aqui apontados teriam que ser reequacionados, é certo, mas nem por isso perderiam validade.

O importante a reter aqui é que todo pacto é feito também daqueles que, aparentemente de fora, “marcam posição” às margens, estabelecendo assim os seus contornos. Uma lição que as classes dominantes de todos os tempos jamais esqueceriam, e que nunca deixaram de exercitar na prática. Daí que as ameaças de uso da força sejam uma parte essencial de todos os pactos.

Mas antes de retornar a esse ponto, precisamos voltar ao debate que estabelecemos anteriormente com André Singer, ainda mais relevante quando seu partido parece se preparar para reassumir a presidência do país.

 

Um ausente na explicação do Brasil pré-64

Dissemos recentemente que a eleição atual se situa em um “não-lugar”, entre ser a última de um regime de 88 em agonia, ou a primeira já de um regime pós-88, declarado ou implícito. Um regime político em ponto de mutação, sintoma de uma sociedade em crise e prenhe de grandes conflitos sociais, que mais cedo ou mais tarde se expressarão em luta de classes aberta.

Ao mesmo tempo, ressaltávamos que a candidatura de Guilherme Boulos pelo PSOL, em que pese o mérito de ser a única à esquerda do PT, que não se conciliou com a burguesia nem apoiou o golpismo da direita, desperdiçou ainda assim a oportunidade de se apresentar perante as massas como um contraponto radical à reação bolsonarista, com um programa anti-imperialista e à altura da enorme força social do proletariado brasileiro. Nesse sentido, e levando em conta que o substituto de Lula foi escolhido por este, entre outras razões, pela qualidade específica do bom trânsito com a direita, os tucanos e o mercado, tudo isso reafirma que o grande ausente, do ponto de vista político, é a figura de uma esquerda radical, socialista e revolucionária, que se apresente abertamente como conclusão necessária da experiência petista de conciliação com o andar de cima.

Para pensar esse problema, cabe voltar à tese de André Singer que expusemos brevemente no artigo já citado.

Sintetizando, Singer estabelece um paralelo entre o sistema de partidos que operou durante o período de 1945-64 e o atual, mostrando que os três principais partidos de então, o PTB, a UDN e o PSD respondiam a um alinhamento de classe semelhante ao atualmente desempenhado por PT, PSDB e PMDB, respectivamente. Um partido “popular”, um “da classe média”, e outro “do interior”.

Pois bem, cabe aí um reparo.

Em sua explicação do funcionamento da democracia de 45-64, explicitamente focada na dinâmica institucional e eleitoral, Singer deixa de lado, contudo, o papel do Partido Comunista Brasileiro, o PCB. Porém essa escolha metodológica do cientista político uspiano não passa sem consequências. É que apesar de não ter legalidade durante quase todo o período, devido ao alinhamento do Brasil à Guerra Fria lançada pelos EUA contra URSS, o PCB foi de fato um partido em todo o sentido da palavra, tendo à frente a figura de Luis Carlos Prestes, o principal líder popular até a aparição de Lula, que enchia estádios de futebol em seus comícios e foi o deputado mais votado em todo o país para a Constituinte de 1946 (aproveitando seu breve interregno legal entre 1945-1947), e que depois, mesmo na ilegalidade (uma ilegalidade à italiana, poderíamos dizer), dividiu com o PTB varguista a direção do movimento operário e sindical, durante aqueles anos decisivos de nossa história.

Sem entender tanto o prestígio quanto o papel central de contenção das massas pelo PCB, apelidado como o “Partidão” por adeptos e detratores, é impossível explicar as contradições daquele período, a dinâmica do movimento de massas e os impasses que levaram ao golpe de 64.

Ao apagar o PCB do seu esquema explicativo do regime de 45-64, Singer oculta, de forma intencional ou não, aquilo que pode vir a ser um elemento central nos desenvolvimentos futuros da situação brasileira: esse espaço então ocupado pelo PCB, que era um fiel instrumento da burocracia da URSS, mas aparecia como “comunismo” para as massas… pode esse espaço ser agora preenchido por um autêntico partido revolucionário e internacionalista?

É evidente que não podemos tratar a realidade como se coubesse dentro de esquemas, e que a estrutura atual não é a mesma de décadas atrás. Mas é significativo que tenha vindo do próprio Singer a associação entre o PT, que teve nos anos 80 uma raiz operária popular muito mais “orgânica” do que o atual paternalismo lulista, e o velho PTB, criado pelo alto por um Getúlio Vargas burguês e autoritário.

 

Contra quem se deu o golpe militar?

Mas não é somente o papel do PCB que fica de fora da análise que Singer oferece do regime pré-64. Se queremos aproveitar a analogia histórica para pensar o futuro, vale a pena retomar o tema em maior profundidade.

É que, visto de perto, seu grande argumento para explicar o golpe militar, da “radicalização antidemocrática” das classes médias representadas por uma UDN incapaz de ganhar eleições, se mostra insuficiente para dar conta de tudo o que estava em jogo em 1964.

Por trás da fachada institucional e do jogo dos três grandes partidos legais, duas ordens de problemas fundamentais davam o contorno dramático da situação:

Existia em curso no país um potente ascenso de massas, expresso no surgimento das Ligas Camponesas, a tomar latifúndios país afora e exigir a reforma agrária “na lei ou na marra”, assim como no crescente número de greves operárias massivas e com tendências à unificação nacional, e em expressões categóricas de insubordinação na base das Forças Armadas, como nada menos do que os marinheiros amotinados no RJ que se refugiaram no sindicato de metalúrgicos contra a repressão da alta oficialidade, entre outros exemplos.

Sob o signo da então recente revolução cubana de 1959, o processo interno no Brasil foi lido desde cedo como uma grande ameaça pelo imperialismo estadunidense, que tinha grande interesse em impor um “dique de contenção” a um possível descontrole revolucionário da América do Sul. Tamanho era o potencial revolucionário da situação então existente, obviamente hoje apagados na narrativa histórica dos vencedores, e pouco lembrado por uma esquerda tradicional que se tornou cética e ordeira, que os documentos oficiais da diplomacia embaralhavam não uma, mas ao menos duas hipóteses de revolução no Brasil: ao lado da “clássica”hegemonizada pelo proletariado urbano do sudeste, também vislumbravam a chance de uma revolução a partir do Nordeste agrário, podendo resultar numa divisão do país à semelhança de outros processos do pós segunda guerra, como o do Vietnã.

Lembrar esse contexto não é de pouca importância, se queremos pensar a fundo os rumos que o Brasil, e em certo sentido toda a região sul-americana, pode tomar.

Hoje o cenário é distinto em muitos aspectos, mas temos uma crise internacional do capitalismo que desde 2008 não teve mais que uma “recuperação estagnante”, e que segundo muitos analistas pode ter uma nova quebra em um par de anos. Uma débil hegemonia estadunidense, coroada por um personagem como Trump.

 

Aonde vamos então?

No Brasil existe hoje um movimento de massas momentaneamente paralisado, mas que acumulou experiências nos últimos anos, desde os levantamento de juventude de junho de 2013 (por ora capitalizados sobretudo pela direita), passando pelo consistente aumento da quantidade de greves econômicas (interrompido e represado pelo golpe institucional, mas que pode voltar a se expressar), e por duas paralisações nacionais, em 15 de março e 28 de abril de 2017, que nada menos do que barraram a reforma da previdência planejada pelo governo golpista.

Esse potencial combativo foi em seguida bloqueado pela burocracia sindical, com destaque para a CUT/PT, permitindo a aprovação de uma reforma trabalhista reacionária, que passou sem resistência no segundo semestre do mesmo ano.

Toda uma mostra do grande poder de contenção que esse partido ainda possui frente ao movimento de massas, e que ajuda a explicar a capacidade de barganha que ostenta uma vez mais, frente a uma classe dominante que viu frustrados os seus “planos de máxima” elaborados em meio à euforia golpista.

Pelo momento, tudo parece canalizado no espírito do “mal menor” que se expressa na candidatura de Haddad frente à extrema direita. Porém, se é que a candidatura petista e sua proposta de “pacto nacional” realmente ganham, o processo de experiência das masas com aquela que é sua direção histórica há mais de uma geração, poderá seguir adiante.

(É claro que mesmo no eventual cenário de uma vitória de Bolsonaro, a experiência com o PT, como partido de oposição institucional e pouco combativa, também poderia seguir, mas nesse caso teríamos outros ritmos, e outros fenômenos políticos no caminho).

De todas as maneiras, é preciso recordar que no último capítulo da experiência das massas com os governos petistas, bruscamente interrompido pelo golpe de 2016, a classe operária havia já começado a protagonizar “greves selvagens” nas margens do domínio da burocracia sindical, nos setores mais precários da classe como os operários da construção civil no Norte e Nordeste, os garis no Rio de Janeiro ou mesmo os rodoviários em Porto Alegre.

Não está dado, de nenhuma maneira, que a decepção popular por um eventual governo Haddad moderado e ajustador (em maior ou menor grau, de acordo com a pressão de uma economia internacional volátil), não está dado que tenha que terminar em desmoralização. Ao contrário, está no horizonte que uma experiência assim possa abrir, em maior escala, o espaço para um grande processo de radicalização política dos trabalhadores e da juventude.

Os atos do dia 29/09, chamados como “Mulheres contra Bolsonaro”, expressam à sua maneira toda a ambiguidade do momento, com as aberturas para o futuro que comportam.

De imediato, não foram radicais o suficiente para escapar da operação política em curso, que busca dar uma saída eleitoral e pacífica, acima de tudo por dentro da ordem, para o ódio anti-direita que a candidatura do ex-capitão desperta.

Por outro lado, as manifestações massivas de mulheres expressam uma indignação que pode ser um ingrediente contagiante e até explosivo, dentro da experiência política do movimento de massas, passadas as eleições, e seja qual for o resultado. Lembrando que não se trata apenas de “mulheres” soltas no ar: são trabalhadoras, são estudantes, estão em todos os lugares decisivos da produção e reprodução social.

Se essa experiência política avança, pode dar lugar a processos mais amplos de gestação de uma verdadeira resposta de combate à extrema direita, que se combine à resistência contra os planos de ajuste, e que passe pela retomada e renovação geral das entidades de massas, a começar dos sindicatos e entidades estudantis, a exemplo do que se deu na base do velho peleguismo da ditadura como preâmbulo ao surgimento do PT e da CUT nos anos 80.

Um processo assim, que envolveria inevitavelmente grandes crises e rupturas, fusões e uma reconfiguração geral na esquerda, se inscreve como cenário bastante possível diante das imensas contradições em jogo, e é o que abre espaço para a construção de um verdadeiro partido revolucionário, se pensamos em escala histórica.

 

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