As comédias românticas da Netflix e a nova cara do “viveram felizes para sempre”

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Por Fernando Pardal

[Alerta de spoiler: contém revelação de enredos que todo mundo já sabia como terminariam de qualquer forma…]

Poucos gêneros cinematográficos tem mais a cara estereotipada de uma fórmula pronta da indústria cultural hollywoodiana do que as comédias românticas. Tamanha é sua previsibilidade, que os roteiristas poderiam ser substituídos por programas de computador com algoritmos programados para escrever seus enredos, e dificilmente se notaria alguma diferença.

É raro também encontrar um ser humano com acesso à televisão no ocidente que não tenha crescido sob a massacrante influência desse gênero que, para além da caricata fórmula que caracteriza suas histórias, é um dos tipos de produção cultural mais despudorada e abertamente ideológicos, no sentido de enfiar a golpes nada sutis na cabeça das pessoas – e em especial das mulheres – um ideal de amor romântico que cumpre o papel de uma aspiração de vida e de realização pessoal. Atrizes como Meg Ryan, Drew Barrymore e Jeniffer Aniston fizeram carreiras milionárias se especializando nesse nicho particularmente viscoso da indústria cultural.

Mas as próprias comédias românticas representaram, a seu tempo, uma “modernização” de algo mais velho do que o próprio cinema. A necessidade de uma cela mental dentro da qual confinar as ambições e aspirações das mulheres na sociedade burguesa é tão antiga quanto as promessas não cumpridas de “igualdade, liberdade e fraternidade”, das quais as primeiras excluídas – junto com os negros, os trabalhadores e os povos das colônias – foram justamente as mulheres, que em nenhum momento deixaram de aspirar por liberdade.

Como fruto dessa necessidade, no rastro das grandes revoluções burguesas e da consolidação desta como classe dominante, veio aquilo que provavelmente foi a primeira forma de produção cultural de uma sociedade patriarcal voltada especificamente para as mulheres e para a propagação de aspectos ideológicos voltados a instigar nelas os sentimentos “amorosos”:

Em uma pesquisa sobre os hábitos de leituras das mulheres alemãs na era vitoriana, Marie-Claire Hoock-Demarle refere-se à “fúria de ler” que se apossou das mulheres que, no século XIX, tinham acesso às simples condições de um pouco de privacidade e do usufruto de um tempo liberado das tarefas domésticas – e tudo isso apesar da reprovação de grande parte dos pais e maridos. (…) A “fúria de ler” das mulheres foi rapidamente estendida por uma florescente indústria de novelas e romances escritos por e para mulheres (…) O interessante é que a expansão da literatura naquele século correspondeu à crescente importância que o amor conjugal e o casamento passaram a ter nos projetos da vida burguesa; a literatura “inventou” o amor burguês, e o casamento abriu espaço para uma invasão literária que enriqueceu o imaginário das mulheres, compensando frustrações, rompendo o isolamento em que viviam as donas-de-casa, abrindo vias fantasiosas de gratificação (…)” (Maria Rita Kehl, Deslocamentos do Feminino, p. 78-79).

Assim, as comédias românticas são descendentes modernas dos gêneros ficcionais voltados à instilação de um ideal do amor burguês, algo que surgia com a sociedade liberal e com os casamentos “livres” baseados no “amor” e não em arranjos familiares independentes da decisão individual. É claro que a hipocrisia dessas relações “livres”, onde a mulher continuava tanto como antes sendo a propriedade de seu marido e confinada a espaços e vivências domésticos – no caso das mulheres que não precisavam ainda vender sua força de trabalho para poder comer – foi denunciada aqui e ali, principalmente pelas próprias mulheres que combatiam a escravidão matrimonial. Por isso, a importância do convencimento das mulheres de que seu ideal de vida deveria estar voltado ao amor, ao casamento e, consequentemente, à família, era ainda mais primordial.

Mas, ainda mais difícil do que publicar um livro que vá na contramão da ideologia dominante, é fazer um filme, cujos meios de produção são de custo elevadíssimo. E o que vimos em décadas de “comédias românticas” foram variações infindáveis – e em geral bem pouco variadas – sobre o mesmo tema. A mesma promessa oferecida por meio das princesas dos contos de fadas, de encontrar um príncipe e “viver feliz para sempre” é ofertada a casa sessão da tarde. E a eficácia desse tipo de doutrinação sobre a ilusão de desejo das mulheres – e mesmo homens – que buscam a realização pessoal no ideal do amor romântico, pode ser facilmente constatada nas histórias de vida, frustrações pessoais, aspirações em circulação permanente na nossa sociedade.

Mas, mesmo com a persistência desses valores, não é difícil verificar que as coisas não são as mesmas de cem, cinquenta ou mesmo vinte aos atrás: o questionamento a valores morais, culturais e sociais que visam manter as mulheres oprimidas é crescente, com mudanças ideológicas nada desprezíveis acontecendo. Hoje, dificilmente se encontra uma jovem em seus dezessete anos que não se diga feminista. E a indústria cultural, como o mais perverso camaleão da ideologia burguesa, está em permanente adaptação para se manter conquistando “corações e mentes”.

Nenhum grande meio de produção cultural tem se mostrado mais hábil em fazer se passar por “progressista” do que a gigantesca Netflix, que em poucos anos se tornou um dos maiores monopólios da indústria cultural mundial. E, no âmbito das comédias românticas, pelo menos dois filmes produzidos pela empresa foram muito bem-sucedidos nessa missão.

Em abril de 2018, a Netflix lança o filme francês “Eu não sou um homem fácil” (Je ne suis pas un Homme Facile). Na comédia, um rico e bonito executivo do ramo da publicidade é apresentado ao espectador como um estereótipo do canalha machista, que sempre se dá bem ao humilhar alguma mulher ou tratá-la como objeto sexual. Nada mais do que oito minutos de filme são necessários para estabelecer o caricato personagem, antes que ele bata a cabeça em um acidente e acorde em um mundo onde tudo está invertido: ali, as mulheres dominam, e os homens são inferiorizados, ridicularizados, oprimidos. Rimos ao ver o protagonista Damien ter que se submeter aos rituais bárbaros hoje impostos às mulheres, como se depilar, usar roupas justas, etc. Passando por toda a opressão cotidiana que as mulheres enfrentam, Damien se vê obrigado a trabalhar como assistente de Alexandra, a mulher que no começo do filme ele havia humilhado em uma reunião de negócios. Como não poderia deixar de ser, ele se apaixona pela chefe e eventualmente se descobre tratado como um mero objeto sexual e descartado, e também que  Alexandra, é odiada por outros homens por terem sido tratados assim.

Em mais um clichê do gênero, Alexandra aposta usar Damien, escrever um livro sobre ele – que é chamado de “masculista” por defender os “direitos dos homens” – para mostrar que é tão dependente das mulheres como todos os outros. E depois acabar com ele. E, como não poderia deixar de ser, Damien descobre, e em seguida Alexandra se arrependerá ao ver que se apaixonou perdidamente – tal qual em “Segundas Intenções”, “Dez coisas que odeio em você”, e tantas outras comédias românticas (mas com os papéis de gênero invertidos). Mas, antes que tudo se resolva no tradicional “final feliz”, numa briga entre os dois Alexandra bate a cabeça e… acorda num mundo onde os homens é que oprimem as mulheres. E o filme termina por aí.

Agora, a Netflix acaba de lançar “Megarromântico” (Isn’t it romantic). Natalie, a protagonista, não é o estereótipo das protagonistas de comédias românticas. Ela é gorda e tem um emprego maçante num escritório de arquitetura. Na primeira cena do filme, aparece em sua infância, assistindo deslumbrada um dos “clássicos” do gênero: “Uma linda mulher”, com Julia Roberts. Sua mãe, ao que tudo indica uma mulher solteira e bastante rancorosa com a vida, lhe diz para não acreditar nessas bobagens, que a vida não é uma comédia romântica, que elas não são a Julia Roberts.

Natalie cresce, e tem uma vida ordinária. Na tradicional apresentação do seu mundo rotineiro, no qual discute com a amiga que ama comédias românticas e ganha desta um conselho para “se abrir” para o amor, o filme leva pouco mais do que o “Eu não sou um homem fácil”: são 14 minutos para que possamos dar algumas risadas e entender que Natalie é uma mulher normal, com um emprego normal, uma autoestima no chão e um grande rancor em relação a filmes idiotas (comédias românticas) que procuram vender a ideia do “felizes para sempre”.

Mas então, para “surpresa” de todos, Natalie bate a cabeça e… acorda num mundo em que vive numa comédia romântica. Tudo é lindo, tudo dá certo, ela é rica e bem sucedida e todos os homens a admiram. O executivo bonitão cliente da firma onde trabalha, que no mundo real só a percebe para pedir que pegue café, agora está perdidamente apaixonado por ela. Pensando em como voltar para sua vida normal, Natalie pensa que precisa de um “final feliz” e forma um casal com o ricaço. Mas ela descobre que ele é um homem horrível e dominador, que quer que ela trabalhe e mude de nome para ser sua esposa. E que na verdade ama seu melhor amigo. Mas, a “novidade” é que ela descobre, ao tentar interromper o casamento do amigo para se declarar a ele, que na verdade o grande amor de sua vida é ela mesma, e que isso é o fundamental na vida. Então, passado esse momento epifânico, Natalie pode sofrer outro acidente e voltar para sua vida normal.

Uma vez tendo retornado, ela se revela agora uma mulher “empoderada”, com uma autoestima elevada, e que, por fim, pode ficar com seu amigo que sempre foi apaixonado por ela, mas, dessa vez, sabendo que em primeiro lugar vem o amor próprio.

Assim, a Netflix muda tudo para não mudar nada. Como, a seu tempo, pareceu “subversivo” colocar a prostituta Vivian no lugar da gata borralheira em “Uma linda mulher”; ou a operária metalúrgica Alex, que luta para se tornar dançarina em “Flashdance” – mas que termina num romance com o patrão, como a prostituta Vivian termina com o empresário “príncipe”. A Netflix sente o vento dos novos tempos e, sem mudar uma vírgula do que é a estrutura de uma comédia romântica, pode se passar por crítica ao machismo ou mesmo às comédias românticas e seus padrões de beleza, de amor de felicidade.

As novas comédias românticas “críticas” da Netflix são parte de um movimento cultural abrangente, que no Brasil vemos, por exemplo, na repaginação da Globo de alguns anos para cá. Temas como o feminismo, a diversidade sexual, o racismo passaram a ser colocados nas novelas, na Malhação, em programas como “Amor e sexo”, da Fernanda Lima.

As raízes dessa apropriação das pautas democráticas remontam às origens das próprias mobilizações por direitos efetuadas por setores oprimidos dentro do capitalismo. Com destaque para os EUA, onde o movimento por direitos civis dos negros e a segunda onda feminista obrigaram a que a burguesia passasse a relocalizar seu discurso hegemônico, construindo “nichos de diversidade” (e de mercado) para dividir e cooptar os setores insurretos. Fenômenos como os “cultural studies”, em que temas como gênero, colonialismo e racismo passaram a ser mais uma das opções “epistemológicas” da Universidade, fazem parte dessa estratégia de dominação. Ao mesmo tempo em que se reconhece a demanda desses setores, sua luta é institucionalizada e cercada pelos marcos das possibilidades fornecidas pelo próprio sistema econômico e político que cria e sustenta essa opressão.

A separação dessas pautas de suas raízes estruturais no capitalismo, e da percepção de sua vinculação intrínseca com a luta de classes, é o que torna palatável para as grandes empresas como a Netflix, as grandes instituições ideológicas como as universidades, os grandes órgãos políticos do imperialismo como a ONU, assimilar aspectos parciais das questões democráticas e se “embandeirar” dessas demandas, enquanto em um nível mais profundo contribuem para mantê-las.

Enquanto “Megarromântico” ridiculariza as tradicionais comédias românticas, transmite e reafirma os valores do “empoderamento” individual das mulheres, dos ideias de vida como ser bem sucedido em um emprego, enriquecer e ser “independente”. Sem deixar de lado, é claro, o fato de que parte da realização pessoal está em encontrar o amor romântico – o que, nessa visão “crítica”, só pode ser feito sendo “empoderada”. Em “Eu não sou um homem fácil”, nenhum dos aspectos estruturais do machismo é questionado, e o enredo se centra nas condições subjetivas das mulheres e homens de classe média nas relações amorosas. Mas esses aspectos, sem dúvida importantes, são parte de uma estrutura social muito mais abrangente, que tais filmes, longe de questionar, cumprem um papel importante para reforçar. É somente por se localizarem desde uma perspectiva “crítica” que essas produções podem recobrar a legitimidade de seu discurso; elas ganham simpatias de setores de massas entre as mulheres que já não aceitam a padronizada comédia romântica açucarada, e, de maneira mais sutil, porém mais eficaz, podem perpetuar os mesmos valores que dizem questionar.

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