Netflix, Black Mirror e a distopia tão cara à burguesia  

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imagem: Juan Chirioca

Por Letícia Parks

Pós-apocalíptico-contra-o-sistema. É assim que eu gostava de chamar essas séries e filmes que retratam um mundo futurista onde nada deu certo mas tudo é mais tecnológico. A sensação que dá é que a tecnologia engoliu o que nos resta de humanidade e deixou no lugar uma enorme contradição entre o mais avançado da ciência e o mais  atrasado do trato humano e do regime político. Lembrou de alguns filmes e séries? São muitos, certo? Jogos Vorazes, Handmaid’s Tale, Black Mirror (meu preferido), Eu robô… além de muitos outros.

A questão que há pouco começou a me ocorrer é “por que tantos?”, ou melhor, “porque tanta energia da indústria de massa em criar formas atraentes de filmes nesse estilo?” e algumas coisas vieram na minha cabeça depois de ler a incrível publicação “Estratégia socialista e arte militar”, do Emílio Albamonte e do Matias Maiello, publicada na Argentina pelo IPS e logo mais no Brasil pelas edições Iskra. Divido com vocês algumas ideias.

Ideia nº 01: da utopia à distopia

Não é comum falar de cultura de massas começando pelo líder da socialdemocracia alemã, Eduard Bernstein, mas é exatamente isso que eu vou fazer. Isso porque quando estudei a origem de sua confiança na reforma do capitalismo, entendi que no momento em que ele viveu e militou, a chamada “Belle époque” – um período de 30 anos sem revoluções e que seu partido, a socialdemocracia alemã, cresceu enormemente, ganhou sindicatos, parlamentares, influencia social…  foi possível ainda acreditar na possibilidade, no que seria o reformismo no século XIX, de que mesmo sem revoluções a sociedade poderia transitar gradualmente para o socialismo, a partir da cada vez maior influência da socialdemocracia. Isso se provou uma enorme ilusão com a chegada da Primeira Guerra Mundial e, mais duramente, com as guerras civis que sucederam cada uma das tentativas de revolução no século XX. Ao contrário da distopia (não tão ao contrário assim, mais adiante explico porquê) a perspectiva de futuro para ele poderia ser otimista. Confiava no “movimento natural” da história, sem a necessidade de revolução. Era uma forma de percepção utópica, de uma utopia reformista, sobre o futuro.

Mas no nosso tempo, essa utopia de uma transição harmônica ao futuro se desfez. Poderia ser simples explicar porque, afinal muito aconteceu da morte de Bernstein até Black Mirror. Muitas coisas contribuíram para destruir a confiança de que poderia haver nesse futuro vivo e pleno, sem grandes conflitos. A Segunda Guerra Mundial produziu imagens que dificilmente sairão da nossa cabeça; a degeneração do Estado Soviético esvaziou o coração de muitos revolucionários; as crises de 1929, a saída reacionária e ditatorial das lutas de libertação na África. A recente crise de 2008 trouxe também tristes novas imagens a uma geração que não esperava conviver com a barbárie. Apenas para dar um exemplo mais recente, Como esquecer a cena dos corpos migrantes mortos dentro do barco?

Essas imagens comprovaram a insuficiência do capitalismo de avançar economicamente e progressivamente. Vivemos num mundo no qual os limites desse sistema são mais do que claros, são parte do cotidiano de toda a massa. A sensação coletiva nas massas é o oposto da utopia. Nossas subjetividades foram esmagadas pela distopia, por uma desconfiança de que o futuro possa oferecer qualquer coisa de progressiva.

Contribui a essa perspectiva dolorosa de futuro os tristes méritos que a ciência carrega. Enquanto jovens de 20 e poucos anos morrem de febre amarela e bebês nascem com hidrocefalia por causa de um mero mosquito totalmente ignorado pela indústria; novas armas hipertecnológicas nos fazem tremer de medo e pensar “será que o mundo vai acabar em pó?”. Sim, parece que a ciência deixou de nos ajudar há séculos, antes mesmo de nascermos. Mas não é só isso. Parece que a ciência foi capaz de feitos tão desastrosos que ela se tornou um pesadelo que persegue as telas de cinema.

Ideia nº 2: a distopia sai bastante caro pra burguesia

Eu disse que somos esmagados por essa ideia, mas ela não vem de nós. Nenhuma ideia surge do nada, nenhum sentimento é ahistórico. Retomando Marx, podemos dizer que “’as ideias dominantes de uma época são as ideias da classe dominante”, única e exclusivamente, porque essa classe é quem detém os meios materiais de pagar pela produção de muitas das expressões de arte que chegam às massas.

Black Mirror, por exemplo, teve um custo médio de U$2,3 milhões. No total, a série de 19 episódios custou cerca de U$43 milhões, ou R$175 milhões. Mas isso é o que gira na produção do projeto. A compra do Netflix, por exemplo, triplica o valor de produção, tendo comprado cada temporada por um valor médio U$40 milhões.

O que ninguém quer te dizer e o motivo pelo qual eu escrevo esse artigo é que o segredo fundamental desse enorme peso em orçamento que se dedicou a essa série ou a tantas outras produções com esse mesmo conteúdo distópico é que há um interesse enorme na indústria cultural em produzir discursos ideológicos de distopia, ou seja, de reforçar a desilusão no futuro. E isso é muito interessante pra burguesia. Interessa tanto quanto os discursos utópicos, poderíamos dizer (não disse que ia te provar que eles não são tão opostos assim?).

Isso porque a ideia de um futuro determinado previamente, independentemente das interferências subjetivas dos homens e mulheres de uma época, é uma ideia fundamental para evitar que esses homens e mulheres se vejam como sujeitos que definem os rumos da história. Ao passo que alguém acredita que o futuro necessariamente será ruim, essa pessoa aceita que esses rumos não são controlados por ela ou pelos sujeitos de sua época, mas por um destino incontrolável da realidade, como se existisse um espírito que paira no ar e que costura a história sem qualquer interferência dos que nela vivem.
E isso – definitivamente – não é verdade. A humanidade não viveu sempre da maneira como vivemos hoje, e nenhuma mudança histórica surgiu de caminhos lentos da realidade. A história da humanidade é a história da luta de classes, e a que nos espera depois de tanto desenvolvimento tecnológico e científico e grandiosa. Imagine que temos o poder de usar o que se criou para armas de destruição em massa para explorar o universo, descobrir novas matérias, curar definitivamente as piores – e mais simples – doenças. Está tudo aí. Basta querer. Mas a distopia é o oposto do desejo.

Ideia nº 3: a convivência entre o avanço tecnológico e o atraso social

Uma constante nesse formato audiovisual é a aparição do avanço tecnológico aliado e dependente de uma sociedade atrasada do ponto de vista da divisão de classes, por vezes em um caráter até estamental, como é o caso de Jogos Vorazes. Interessa muito pensar sobre isso e acho que valeria um artigo só sobre isso. O que posso adiantar é que não consigo visualizar como o capitalismo ou a divisão entre classes, a produção com alvo no lucro, pode ser capaz de desenvolver tecnologias tão avançadas.

Quando escreve O Capital, Marx defende que para manter o lucro, a burguesia seria capaz de afundar continentes inteiros em guerras. Depois de viver mais experiências com esse sistema, Lênin escreve O imperialismo, fase superior do capitalismo, e dá um xeque mate no discurso do desenvolvimento dentro do capitalismo. Por A+B ele prova que sempre que precisou, a burguesia matou aos milhares em guerras, destruiu industrias e povos inteiros, apenas para poder voltar a lucrar começando tudo do zero – mas especialmente, que o mundo dos monopólios retardaria inclusive avanços sociais e mesmo tecnológicos se fosse contra suas empresas e sua esfera de atuação, em suma, do seu capital.

O lucro surge da destruição ou da espoliação financeira dos outros países, pra resumir. Não à toa é a indústria por excelência de destruição, a bélica, a que mais se desenvolve e lucra no mundo. Lado a lado dela, está a indústria farmacêutica, outra estrela da distopia. Ambas juntas ocupam os primeiro e segundo lugar em lucro e investimento de todo o mercado internacional, e nenhuma delas está a serviço do que dizem: nem protegem, nem curam.

Não há qualquer forma de desenvolver novas tecnologias que sirvam pra superar os antigos problemas do mundo, pra desvendar os segredos do universo, que não passe por superar algumas divisões que são as mães do atraso científico e tecnológico. A primeira delas, a divisão da humanidade entre classes, que obriga que massas de trabalhadores tenham quase nenhum tempo para pensar, muito menos sobre o trabalho que exercem ou o que produzem, já que o objetivo da produção é exclusivamente para o mercado e não para as necessidades e urgências de nossas vidas. A segunda delas, a divisão do mundo entre fronteiras, com regiões dominadas pelos interesses de algumas nações imperialistas, que com seu poder bélico e econômico, obrigam que massas inteiras na África, no Oriente Médio, na Ásia e na América Latina, vivam vidas miseráveis, morram no início de suas vidas adultas, tenham suas identidades e histórias roubadas, tudo para que seu trabalho valha menos e possa produzir produtos com maiores margens de lucro. A terceira delas, a divisão da humanidade entre gêneros e raças, uma estratégia dupla da burguesia para, por um lado, criar ódio entre nós trabalhadores e dificultar que possamos nos ver como uma força potente única, e por outro lado, baratear a força de trabalho de metade da humanidade que é feminina, 1/3 que é negra, 1/3 que é asiática, 1/4 que é indígena, criando assim massas de trabalhadores divididos que “valem menos” e que são violentados e humilhados todos os dias para que percam qualquer pulsão vital capaz de transformar a história.

Nenhum avanço científico revolucionário pode vir das mãos e cabeças de uma classe que domina o mundo dessa forma. Como disse Trotski em Literatura e Revolução, a genialidade que um dia houve na burguesia quando, por alguns anos, precisou provar sua inovação frente à monarquia, acabou e se tornou pó junto com as bombas que lançou reprimindo as massas e recolonizando todo o globo. Qualquer nova transformação radical de nossa forma de vida só poderá vir da superação dessa classe apodrecida e empoeirada, e nada nos espera no futuro a não ser o que decidamos fazer no presente. Nem uma realidade de luzes nem uma realidade de sombras. Apenas e exclusivamente o que construirmos no presente. E o que uma decisão revolucionária pode construir no futuro me parece, hoje, absolutamente imprevisível. Por isso, ouso roubar umas palavrinhas do Trotski: “O homem irá se tornar incomparavelmente mais forte, mais sábio e mais sutil. Seu corpo será mais harmonioso, seus movimentos mais rítmicos, sua voz mais melodiosa. As formas de sua existência adquirirão qualidades dinamicamente dramáticas. A espécie humana, na sua generalidade, atingirá o talhe de um Aristóteles, de um Goethe, de um Marx. E sobre ela se levantarão novos cumes.”

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