De Trump a Bolsonaro: pode se levantar um movimento de mulheres no Brasil, em meio ao cenário eleitoral?

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Imagem: Juan Chirioca

 

Por Odete Cristina

 

Essa semana dois importantes acontecimentos pautaram a política em nosso país. Por um lado, o golpe institucional sob a tutela das Forças Armadas retirava o direito da população de decidir em quem votar, impedindo a candidatura de Lula. Por outro, as mulheres saíram na linha de frente, apontando um caminho no combate a Bolsonaro e a extrema-direita. Em meio às eleições manipuladas pelo judiciário golpista, um grupo do Facebook reuniu, em poucos dias, mais de 2 milhões de mulheres contra Bolsonaro. Um ativismo impressionante nas redes sociais, que deu origem a chamados para atos em diversas cidades, no próximo dia 29 de setembro. E despertou a irá dos apoiadores de Bolsonaro, que hackearam o grupo e o excluíram. Em vez de desarticular a mobilização, apenas aumentou a indignação e o ativismo das mulheres contra Bolsonaro nas redes sociais.

 

Impossível não relacionar esse fenômeno com as massivas marchas de mulheres contra Trump nos Estados Unidos. As semelhanças começam no fato de que Bolsonaro, assim como o atual presidente dos EUA, aparece para um setor importante da população como um candidato fora do establishment tradicional da política. Em meio a intensa crise orgânica que atravessa ambos os países, eles ganham importantes aliados entre a burguesia, defendendo ataques duríssimos contra a classe trabalhadora, ao mesmo tempo em que conquistam parte dos eleitores com seus discursos de mudança, frente a um regime político cada dia mais questionado. Ambos são representantes da face mais odiosa do machismo, do racismo, da xenofobia e da LGBTfobia, o que sempre foi parte fundamental da ideologia defendida pela extrema-direita e que vem sendo rechaçada fortemente pelo movimento de mulheres que se levanta em todo o mundo, diante do aprofundamento da crise capitalista.

 

O que existe de semelhante pode indicar o levantamento de um movimento de mulheres no Brasil? Quais lições podemos tirar do movimento dos EUA pensando a luta contra Bolsonaro em nosso país?

 

As massivas marchas contra Trump e o caráter internacional do movimento de mulheres nos EUA

 

No primeiro turno das eleições dos EUA, a combinação entre a ideia de que um reacionário misógino como Trump jamais seria eleito presidente, com a armadilha democrata de que Hillary Clinton e seu feminismo liberal a transformaria na candidata das mulheres para derrotá-lo nas urnas, impediu o desenvolvimento de maiores mobilizações. Diante do resultado das eleições, a organização das mulheres foi uma resposta à esquerda, com marchas convocadas para o dia 21 de janeiro.

 

Em um dia histórico, milhares de mulheres aderiram à convocatória e protestaram no primeiro dia da nova administração republicana, numa massiva expressão da raiva contra Trump. Mais de 3 milhões de mulheres com gorros cor de rosa (que se transformaram em um símbolo anti-Trump), faixas e cartazes caseiros, marcharam em Washington DC (a capital dos EUA), em Nova York, Los Angeles, Chicago, Boston, entre outras cidades. Nesse mesmo dia, em diversos países do mundo, as mulheres também se levantavam contra Trump, numa demonstração de que a luta contra o imperialismo, e sua face mais machista, não era uma tarefa só das companheiras norte-americanas.

 

Frente ao fenômeno que as marchas contra Trump haviam expressado, organizações feministas dos Estados Unidos fizeram um chamado para uma greve internacional de mulheres no dia 8 de março. As mobilizações aconteceram em mais de 50 países do mundo, com atos e paralisações massivas em alguns países, como na Argentina e no Estado Espanhol. As mulheres fizeram a terra tremer em protestos que expressavam a reivindicação de nossas próprias demandas, mas também o descontentamento com as políticas dos governos capitalistas, as quais, por meio da austeridade, dos ajustes e da precarização, buscam descontar os custos da crise sob os ombros da classe trabalhadora e dos mais oprimidos, especialmente das mulheres. Neste ano, a segunda marcha de mulheres contra Trump reuniu novamente centenas de milhares.

 

Embora a composição dessas marchas seja majoritariamente de mulheres da classe média branca, a massividade e a expressão que alcançaram – diante de um governo que faz declarações tão machistas, xenófobas, racistas e LGBTfóbicas, envolvido em escândalos de abusos sexuais, que tentou retroceder no direito ao aborto legal e é capaz de promover barbaridades, como deixar crianças enjauladas e separadas de seus pais, em campos de concentração para imigrantes – desencadeou um outro fenômeno mais profundo. As mulheres passaram a ser protagonistas dos processos de lutas de classes nos Estados Unidos, como a maior onda de greves de professores em defesa da educação pública, conhecida como a primavera docente, e as mobilizações contra as políticas xenófobas e anti-imigrantes da administração Trump. 

 

A armadilha democrata 

 

Em todo processo, o Partido Democrata, pela via das ONGs e militantes feministas que o apoiam, cumpriu um importante papel de contenção, buscando canalizar a raiva e a disposição das mulheres para sua oposição domesticada. Isso ficou especialmente claro nesse segundo ano da marcha, já que o centro da convocação era #PowerToThePolls (poder para as urnas). Uma tentativa de conter todo o potencial explosivo que essas mulheres vêm demonstrando, para a ideia de que a resposta contra Trump e a extrema direita se dá nas urnas, elegendo mais mulheres democratas no poder. Não por acaso, essa é as eleições onde existem o maior número de candidatas mulheres na história dos EUA.

 

A armadilha democrata é por essa via tentar se alçar como o partido representante dos nossos interesses, quando, na verdade, o feminismo liberal defendido por eles se provou incapaz de transformar a realidade da imensa maioria das mulheres. O processo de tentar cooptar a insatisfação feminina, numa ilusória transformação pacífica pelo voto, é a grande armadilha daqueles que representam esse mesmo sistema capitalista que relega às mulheres as piores misérias dessa sociedade, mas que tentam dar uma cara mais democrática, como se se preocupassem com nossos direitos. Por isso colocam mais mulheres para romper o “teto de cristal”, como Hillary Clinton, que durante os anos da administração de Obama foi Secretária de Estado dos EUA, responsável direta pelas operações militares e as guerras imperialistas que destruíram a família e a vida de tantas mulheres ao redor do mundo.

 

Mas, a contragosto da burguesia, essas estratégias ainda não conquistaram uma hegemonia no interior desse movimento nascente. Pelo contrário, é também nos Estados Unidos que as mulheres retomaram os métodos históricos de luta da classe trabalhadora, como greves e paralisações. Vem ganhando força a ideia de que a luta coletiva e organizada é necessária, superando até mesmo os entraves que as burocracias sindicais sempre cumpriram, como auxiliares do neoliberalismo no processo de divisão e fragmentação da nossa classe, expressos principalmente na primavera docente, que tem as mulheres na sua linha de frente e na retomada do 8 de março um dia de luta.

 

Dia 29: esse fenômeno se levantará nas ruas do Brasil?

 

A semelhança entre as marchas contra Trump nos EUA e as mulheres contra Bolsonaro no Brasil começam pelo fato de que ambos os candidatos aparecem, para parte importante da população, como candidados antissistêmicos. Com seus discursos seus discursos de ódio, representam a face mais reacionária e conservadora da extrema direita. A principal diferença é que, nos EUA, o levante do movimento de mulheres se deu após o pleito eleitoral, depois de consolidada a vitória de Trump nas urnas – que não era de forma alguma esperada. Enquanto no Brasil essa organização começou antes do primeiro turno das eleições, posto que já agora Bolsonaro aparece como candidato mais bem avaliado – depois da proscrição arbitrária de Lula.
Tudo indica, nesse sentido, que teremos um importante ato de mulheres no dia 29, possivelmente atingindo algumas dezenas de milhares de mulheres, mas ainda seria prematura imaginar que pode se consolidar como grande movimento de mulheres no Brasil e mesmo se pode chegar ao ponto de ter uma influência real no cenário político.

 

A possibilidade de que se levante um poderoso movimento de mulheres em nosso país está permeada pela seguinte disjuntiva: que a força das mulheres seja canalizada na ideia de um voto “mal menor” frente ao rechaço que Bolsonaro provoca ou se ligue à classe operária e, por essa via, consiga dar respostas mais profundas contra a extrema direita, o golpismo e a crise capitalista que assola o país. A armadilha democrata norte-americana se expressa no Brasil na ideia de que a força das mulheres deve ser canalizada no voto em um “mal menor”, achando que derrotar Bolsonaro e a extrema-direita passa somente pelas urnas, e não pela luta de classes.

 

De Trump a Bolsonaro: quais as lições fundamentais para se tirar?

 

Olhar para o cenário norte-americano nos deve fazer chegar a duas conclusões principais. A primeira é que todas as variantes de um feminismo que não se propõe a romper com esse sistema capitalista vai tentar cooptar nossa luta e, na maioria das vezes, esse desvio vai se dar pela ilusão de que a transformação da realidade pode ser garantida no voto, como faz o Partido Democrata e, no caso brasileiro, em meio às eleições manipuladas, também buscarão reduzir os objetivos do possível movimento a um simples voto no “mal menor”, expressos nas candidaturas de Fernando Haddad e Ciro Gomes; ou seja, tentarão desviar as energias das mulheres e transformá-las em voto. O que já começa a se expressar no uso das hashtags #EleNão e #EleNunca, que alcançaram o primeiro lugar dos Trending Topics do Twitter no Brasil e ficaram entre as tags mais utilizadas do mundo. Ao mesmo tempo que demonstram o intenso ativismo das mulheres contra Bolsonaro, também dão a ideia de que “ele, não”, mas Haddad ou Ciro, sim.

 

A segunda lição é que a única forma de se contrapor a essas variantes burguesas ou conciliadoras que tentam cooptar nossa luta é se o movimento de mulheres, na contramão de toda divisão e fragmentação da nossa classe que a extrema direita busca ampliar, forja uma aliança com o conjunto da classe operária. Além disso, se, por essa via, permite que sejam as mulheres trabalhadoras a linha de frente da luta pela reunificação da nossa classe.

 

Essas lições são fundamentais para pensarmos como o rechaço a Bolsonaro pode fazer com que o movimento de mulheres se levante nas ruas, no Brasil. Diante dessa possibilidade, é preciso pensar também por quais vias a burguesia pode tentar desviar o potencial desse movimento e qual deve ser o caminho de um forte movimento de mulheres que possa efetivamente se enfrentar com o golpismo e a extrema-direita.

 

São reflexões como essas que nos propomos a fazer em cada local de trabalho e estudo, pensando os desafios para que esse levante das mulheres se coloque contra Bolsonaro e o golpismo, mas apontando a necessidade de que seja também uma luta para que os patrões e os capitalistas paguem pela crise, sem se adaptar a ideias de mal menor, que mais cedo ou mais tarde acabam abrindo caminho ao mal maior. Isso torna extremamente necessária a batalha para construir correntes militantes que defendam a perspectiva de um feminismo socialista e com independência de classe, que possa, internacionalmente, colocar as mulheres, especialmente as mulheres trabalhadoras, na linha de frente da reorganização da classe operária como o sujeito revolucionário capaz de responder à crise capitalista. Apresentando uma alternativa de superação desse sistema e batalhando pela construção de uma novo mundo, em que não exista a exploração de uma classe sobre a outra, em que as mulheres e todos os setores oprimidos, possam efetivamente conquistar sua plena emancipação, uma sociedade socialista. 

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