Por que Damares? O que está por trás da liderança contra a “ideologia de gênero”?

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imagem: Flávia Toledo

por Virgínia Guitzel

Nem se passou uma semana de governo Bolsonaro, e seus ministros já estão repercutindo internacionalmente pelo escândalo de suas declarações reacionárias que parecem ter saído de um livro de terror nada sofisticado. Ao mesmo tempo que setores progressistas retomam a falsa dicotomia entre lutar contra retrocessos democráticos da luta contra ataques econômicos, como prometido na campanha presidencial, a bancada evangélica tem carta branca pra bravejar contra as vidas LGBT e tem como inimigo número um nossas identidades não-cisgêneras orgulhosas. Por que?

“Nova Era no Brasil: menino veste azul e menina veste rosa!!!”, exclamou Damares, pouco depois de assumir o cargo de Ministra e ter discursado
afirmando que o ‘Estado é laico, mas esta ministra é terrivelmente cristã’. Assim inicia-se o governo Bolsonaro, um ínimigo claro da comunidade LGBT, e orgulhoso do título de “país do transfeminicidio”. Escolheu então, como seu primeiro alvo a comunidade trans.

Após o rechaço internacional destas declarações e a enxurrada de memes que não perdoaram a tamanha estupidez, a mesma “corrigiu-se”: “Fiz uma metáfora contra a ideologia de gênero, mas meninos e meninas podem vestir azul, rosa, colorido, enfim, da forma que se sentirem melhores” —  disse a m(s)inistra do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos. Esta declaração foi acompanhada da retirada da Promoção dos direitos LGBT da pasta de Direitos Humanos e a retirada do Ministério da Saúde da Cartilha para comunidade trans. Um sinal claríssimo de que tentaram esmagar a nossa identidade orgulhosa e reverter os humildes avanços que tivemos ao longo dos últimos anos, desde as imensas jornadas de Junho de 2013 que deram uma enorme visibilidade para a luta LGBT, derrotando a “Cura Gay” de Marco Feliciano, então Ministro dos Direitos Humanos fruto de acordos com o PT.
 
Mas porque as pessoas trans, já tão fragilizadas pelo capitalismo e com enormes limitantes na nossa condição de existência estamos como principal alvo da bancada evangélica?
As cores não possuem gênero, mas possuem história como afirma Celeste Murillo (http://www.laizquierdadiario.com/Rosa-y-celeste-nada-que-ver-con-los-generos). Através dela, pode-se ver os interesses que estão por trás desta separação “menina-rosa, menino-azul”. Nada tem a ver com religiosidade, com preceitos biblícos ou dogmas divinos, mas há um interesse econômico na reprodução da ordem capitalista. Trata-se de perpetuar o modo de produção alienado, que precisa necessariamente mutilar nossos corpos e nossas identidades, como afirmava o anarquista Néstor Perlongher em Sexo y revolución: “A genitalização está destinada a remover do corpo sua função de reprodutor do prazer para convertê-lo em instrumento de produção alienada, deixando à sexualidade apenas o indispensável para a reprodução. É por isso que o sistema condena com especial severidade todas as formas de atividade sexual que não sejam a introdução do pênis na vagina, chamando de “perversões”, desvios patológicos, etc. Para aprisionar o ser humano ao trabalho alienado é necessário mutilá-lo reduzindo sua sexualidade aos genitais“.
Trata-se então da intrínseca relação entre exploração e opressão, que ganhou novas formas na época imperialista de decadência do capitalismo. E que se consolidou no “santo matrimonio” entre capitalismo e patriarcado. É a serviço da manutenção da ordem dos exploradores contra os explorados, que se utiliza da diferença para oprimir determinados grupos sociais que permitam desta forma manter a classe trabalhadora dividida ao mesmo tempo que se aumentam as taxas de exploração e constitui-se uma ordem baseada na reprodução das desigualdades.
 
Os golpistas precisam esmagar nosso orgulho para passar com suas reformas
No Brasil, a crise de hegemonia da burguesia – isto é, sua incapacidade de seguir governando como fazia antes de 2013 – encontrou-se com os sem-fim limites de um país semi-colonial no marco de uma crise histórica do capitalismo internacional dominado por imperialismos em crise. As intervenções imperialistas no país tão inquestionáveis, marcadas no golpe institucional em 2016 e na eleição de Jair Bolsonaro aliado de Trump, demonstram a debilidade de nossa burguesia nacional, tão dependente do imperialismo quanto amedrontada pelo poderoso movimento operário que mantêm-se paralisados pelas burocracias sindicais.
Os anos passaram tão preenchidos de acontecimentos históricos que é estranho pensar que somente 5 anos nos separam de Junho de 2013 e que de lá pra cá, não pode negar que a vida das pessoas trans mudaram imensuravelmente mais do que comparada com a situação da população cisgênera.
A enorme visibilidade de artistas como Pablo Vittar veio acompanhada pelo crescimento de igrejas evangélicas que aproveitaram a orientação política por “visibilidade e representatividade” sem construção de força material, para impor os direitos da comunidade LGBT para criar fakenews de imposição de gênero nas crianças em âmbito escolar e a suposta “busca de privilégios” que trata-se de almejar uma perspectiva de vida maior que 35 anos, e um destino alternativo a prostituição compulsória.
Sob o “terrorismo” de “transformar” crianças em “pessoas trans”, busca-se esconder a cis-hetero-normatividade que representa uma das formas de dominação capitalista mais violentas, que controla corpos e atinge o conjunto da humanidade que é limitado “ao azul ou rosa”. A binaridade de gênero só encontra sentido numa sociedade baseada na necessidade de impor padrões de gênero para favorecer um punhado de capitalistas. Isto significa uma vida de enormes limitações a população cisgênera, mas uma morte a cada 26 horas de pessoas LGBT e o recorde de assassinatos de pessoas trans no Brasil, certamente com maiores requintes de crueldade aos filhos da classe trabalhadora.
Infelizmente parte dos setores progressistas que se colocam contra os ajustes econômicos do governo Bolsonaro, que está totalmente destinado a submeter o Brasil a uma maior espoliação imperialista, recusam-se a colocar-se frontalmente contra este avanço da extrema direita sob os direitos democráticos. Chamam de ‘cortina de fumaça’, como se não houvesse fogo por trás destas medidas. Vale lembrar o que dizia Flora Tristan, uma das percursoras do socialismo e da luta pela emancipação das mulheres, que num momento onde o feminismo não havia se constituído plenamente, se chocava-se dizendo “Tenho todos contra mim. Os homens, porque peço a emancipação da mulher; os proprietários, porque reclamos pelos assalariados”. E foi assim sua vida, enfrentando-se com todos, para explicar cientificamente a relação entre opressão e exploração, como dizia em 1842: “Os industriais, ao ver que as mulheres trabalham com mais pressa, e pela metade do preço, despedem a cada dia mais operários de suas oficinas e os substituem por operárias. Uma vez que entra nesse caminho, se demite as mulheres para substituir por crianças de doze anos, finalmente chegando ao ponto de contratar crianças de sete ou oito anos. Deixe passar uma injustiça, mas esteja seguro que gerará milhares delas
Mas a quem interessa esta separação entre político e econômico?
A polêmica que tomou as redes sociais nos últimos dias tratava-se se era ou não uma “cortina de Fumaça” os ataques à identidade de gênero. Certamente há uma grande dose de confusionismo disseminado, coerente com a marca de toda a campanha de fakenews de Bolsonaro. Todavia, a mídia certamente interessada de não evidenciar os planos econômicos que sequer foram apresentados a população durante as eleições, não é capaz de diminuir a importância do debate entorno dos direitos civis e democráticos elementares. Esta discussão entre ‘luta maior” e “lutas secundárias” tem uma longa história. Mas se olharmos para a recente declaração de Lula (https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,lula-pede-para-pt-evitar-bate-boca-e-focar-em-assuntos-economicos,70002667253), ainda preso de forma arbitraria, veremos que pode-se entender que interesses estão em jogo em manter desvinculado os ataques democráticos aos ataques econômicos.

Lula, em recente visita da dirigente nacional do PT, Gleisi Hoffmann, e com a ex-presidente Dilma Rousseff na quinta-feira, 3, em Curitiba, Lula disse que o governo Jair Bolsonaro está usando temas morais ou de comportamento como cortina de fumaça para ações impopulares nas áreas econômica e de direitos sociais. Segundo Gleisi, Lula orientou o PT a não se perder em “bate-bocas” com integrantes do governo Jair Bolsonaro e concentrar energia nos assuntos que realmente interessam à população.

Esta afirmação sobre “o que realmente interessa a população” é uma dupla verdade sobre o PT: a primeira parte é que nunca lhes foi caro a defesa verdadeira das pautas LGBT, tendo tido recordes de assassinatos ao longo de seus 13 anos de governo, tendo fortalecido a bancada evangélica levando Marco Feliciano à comissão de direitos humanos e mais, vetado o kit-antihomofobia das escolas, demonstrando que seu compromisso estava com os empresários e não com nossas vidas que não valeram mais do que um projeto local, bastante limitado, chamado Transcidadania. A segunda verdade é que está no DNA do PT a separação entre econômico e político, e assim o comprovam com o papel das centrais sindicais em se limitarem “a luta por aumento de salários” enquanto o partido que as dirige propõem contra Bolsonaro uma impotente frente parlamentar que não tem muitas opções a não ser se render a cada nova tentativa de retirada de direitos da classe trabalhadora. Atuam conscientemente para que a classe operária não seja uma classe dirigente e não almeje fins políticos, como a sua libertação da exploração capitalista. Não a toa, não puderam fazer mais do que shows para “defender” a presidente Dilma Rousseff do golpe institucional e Lula de sua prisão arbitraria.
Há que se entender que uma das formas mais poderosas que o capitalismo encontrou-se para perpetuar sua dominação foi na separação entre econômico e político. Este divorcio fetichista está na base do Estado que busca tratar todos os cidadãos como possuidores de iguais direitos, independente da sua situação econômica, isto é, se pertencem a classe dos grandes proprietários ou se nada lhes tem a não ser a força de trabalho para vender e assim subexistir. Não a toa, sabemos que a realidade na lei, não significa realidade na vida, e pessoas negras, LGBT e as mulheres não vivem nas mesmas condições de vida que os homens, as pessoas heterossexuais e a branquitude.
O PT, assim como setores stalinistas que buscam contrapor as “lutas prioritárias” ou “que realmente importam para a população” das pautas democráticas, geralmente entorno de grupos oprimidos, buscam manter a impossibilidade da classe trabalhadora apresentar-se como dirigente da luta pela real emancipação humana. Aqui lhes interessa esta divisão, pois foi assim que conseguiram ‘repartir o bolo’, tendo um papel destacado no controle como “policia política’ nos chãos de fábrica, à serviço de perpetuar a repressão sexual tão necessária à exploração do trabalho. Ao mesmo tempo, também contrapondo-se as vertentes identitárias e pós-modernas que colocam a ideia de “defesa da identidade de gênero e da libertação sexual” a grupos reduzidos de setores de classe media, intelectualizados, nós queremos aqui apontar uma perspectiva revolucionária de emancipação humana, de libertação da sexualidade e pela livre construção da identidade de gênero.
Portanto, é tarefa da classe trabalhadora tomar em suas mãos as lutas democráticas, como conclui, Emilio Albamonte e Matias Maiello em “Estratégia Socialista e Arte Militar” quando afirmam: “Por um lado, a classe trabalhadora constitui uma maioria, inclusive em grande parte da periferia. Por outro lado, a opressão imperialista deu um salto espetacular durante a ofensiva neoliberal que torna impensável qualquer conquista democrática fundamental e duradoura nas semicolônias sem a emancipação nacional em relação ao imperialismo (o fracasso dos governos “pós-neoliberais” na América Latina é uma grande demonstração disso). Por sua vez, a ampliação das demandas democráticas, tanto nos países centrais como periféricos, se choca abertamente com a grande imbricação entre exploração e opressão que caracteriza (e sustenta) o capitalismo atual. […] A desigualdade entre os fatores econômicos e políticos somente pode ser resolvida a partir da redefinição de uma nova totalidade”.
No mesmo livro, também apontam que: “Se a estratégia revolucionária é aquela que liga os combates isolados (tática) com o objetivo político da tomada do poder do proletariado, a “grande estratégia” da revolução permanente é a que liga globalmente o começo da revolução à escala nacional com o desenvolvimento da revolução internacional e seu coroamento em nível mundial, assim como a conquista do poder com as transformações na economia, nas ciências e nos costumes, com o objetivo de uma sociedade de “produtores livres e associados”: o comunismo”.

As atuais declarações como a última de Damares, realizada dentro de uma clínica de “restauração de sexualidade”, onde classifica homossexualidade como aberração (https://www.revistaforum.com.br/exclusivo-em-clinica-de-restauracao-de-sexualidade-damares-classifica-homossexualidade-como-aberracao/?fbclid=IwAR0zD2emMsxGRYLkjKRiKd44YfO_9e6bAdZgCCDlJvVjWdG5n126wOaY7RE) e o próprio fato da criação de um ministério da Família, nos fazem relembrar como tratavam-nos na época da ditadura no Brasil: “os invertidos” (http://www.esquerdadiario.com.br/A-repressao-sexual-da-ditadura-militar-a-democracia-Parte-I?utm_source=newsletter&utm_medium=email&utm_campaign=Newsletter).

Não podemos aceitar nenhum retrocesso amais sob as nossas vidas. É preciso recusar também a localização de vítimas impotentes, à espera da resolução dos nossos problemas por fora da nossa própria organização política. O atual movimento LGBT, baseado nas ONGS. ainda fruto dos enormes ataques do neoliberalismo que atribuiu a AIDS como “câncer gay” utilizado para dizimar nosso movimento por libertação, precisa se refazer para estar à história que se passa aos nossos olhos. É o momento de novos “Stonewalls”, novas Marshas P. Jhoson, novas Sylvias Riveras, novos Gays e Lesbicas em Apoio aos Mineiros, novas Frentes Homossexual de Ação Revolucionária e organizações LGBT que decidam agarrar a oportunidade de ligar-se ao movimento operário, incendiando-o com o ódio contra cada frase LGBTfóbica que proliferam estes políticos, para golpear juntos nossos inimigos em comum. Poderemos cumprir um papel revolucionário na luta contra opressão e exploração capitalista? Cabe a nós o enorme desafio histórico em dar um salto da luta por direitos civis para a histórica luta pela emancipação humana. Somos uma poderosa força contra o capitalismo, o patriarcado e a cisnormatividade. Façamos história outra vez.

 

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