Papa Highirte: Vianinha e o debate da esquerda frente à ditadura civil-militar no Brasil

0

imagem por Juan Chirioca

texto por Fernando Pardal

Em 1968, Oduvaldo Vianna Filho – mais conhecido como “Vianinha” – escreve a peça “Papa Highirte”. Inscrita no Concurso de Dramaturgia do Serviço Nacional de Teatro (SNT), a peça é premiada com o primeiro lugar, e logo em seguida censurada pelo governo militar, um trajeto idêntico ao que ocorreria com “Rasga Coração”, em 1974. Ambas as peças só são liberadas em 1979, cinco anos após a precoce morte de Vianinha, com apenas 38 anos.

As ditaduras latino-americanas e caribenhas e seu estreito laço com o imperialismo estadounidense

A densidade questões tratadas na peça, colocando em cena temas políticos fundamentais para o período e cujo debate continua sendo extremamente necessário e atual, é o que mais chama a atenção em “Papa Highirte”. O protagonista, o ditador que dá nome à peça, faz referência explícita ao ditador do Haiti, Papa Doc (François Duvalier), que governou o país tiranicamente entre 1957 e 1971.

As semelhanças com Papa Doc são diversas, mas a história de Highirte – que na peça aparece já em seu exílio no fictício país latino-americano de Montalva, após ter sido removido do poder na também fictícia Alhambra – expressa questões cujo escopo ultrapassa a história haitiana e podem ser estendidas a todo o cenário latino-americano, esmagado secularmente sob as botas do imperialismo estadounidense.

O Highirte que nos é mostrado na peça está já distante do “todo poderoso” ditador que esteve à frente de Alhambra, e aparece como uma figura semi-delirante e patética, que ambiciona, sem nenhum lastro com a realidade, retornar ao seu país ocupando a cadeira presidencial e aclamado por seu povo.

Mas é justamente no caricato ex-ditador, que vê a si mesmo como uma figura supostamente popular e que desfrutaria das graças do povo que oprimiu, que podemos ver a representação de uma classe dominante cujo papel é o de servir de “garoto de recados” da burguesia estadounidense.

Como Papa Doc, Papa Highirte se considerava um caridoso bem-feitor, amado pelas massas: “O povo de Alhambra gosta de mim, Alhambra gosta de mim, coronel Perez y Mejia”, diz Highirtre, em uma das cenas em flaschback, ao general que posteriormente articularia sua derrubada. Nessa mesma conversa, Highirte aparece como defensor de uma “linha branda” em oposição a Perez y Mejia, que apresenta a ele as “exigências” de que se instaure um regime de partido único, sem eleições e com o fechamento da imprensa opositora. Discussões semelhantes se dão em torno da tortura de presos políticos, em que Papa Highirte diz, demagogicamente “Não admito torturas em meu governo”, sendo que nas cenas presentes, ao vociferar contra o governo “democrático” de Camacho que o substituiu, o ex-ditador vocifera coisas como “(…) o que fazem agora naquela terra a não ser ouvir outra vez os gritos dos mineiros e os berros dos estudantes?” e “E o que fazem vocês meus generais sentados nos quartéis escovando lombo de cavalo foi para isso que vocês juraram a bandeira?”

Mas as aparentes contradições no discurso de Highirte não são uma mera idiossincrasia do ex-ditador. Nem cumprem o papel de, como algumas leituras superficiais do texto de Vianinha parecem apontar, dizer que Highirte era um “bom homem” que foi manipulado; seus discursos em defesa do esmagamento de opositores e de um governo de ferro contra os direitos do povo e dos trabalhadores expressam bem o contrário. O que Vianinha demonstra com maestria é que as ditaduras não são feitas pelo capricho ou pela astúcia de um maléfico tirano; da mesma forma que a figura histórica que inspirou Highirte – e da mesma forma que as ditaduras que se espalhavam pelo subcontinente latino-americano e que ainda não haviam alcançado sua total extensão – o ex-ditador de Alhambra só havia chegado no poder por uma conjunção de forças sociais que se aglutinaram circunstancialmente em torno de seu nome.

Militares e imperialismo são as duas forças sociais que se destacam na peça como as principais sustentadoras do governo, mas também como as que efetivamente decidiam sua política (daí a necessidade dramatúrgica de expor os dissensos entre Perez y Mejia, porta-voz oficial do consórcio reacionário, e Highirte, o testa-de-ferro que, no governo, deveria implementar a repressão). A burguesia nacional, que na realidade também cumpria um papel fundamental (ainda que subordinado ao imperialismo) quase não aparece no texto de Vianinha, o que talvez seja o tributo que o autor paga à política do PCB, que tinha todo seu eixo no imperialismo ao alimentar a absurda ilusão de uma aliança com supostos setores “progressistas” da classe dominante nacional (questão que o próprio Vianinha coloca em xeque em outras peças, como “Brasil – Versão brasileira”.

Assim, o que Perez y Mejia expressa, primeiro ao impor a Highirte os rumos e o nível de repressão de seu governo – com o qual esse é totalmente conivente, na medida em que seus objetivos são os mesmos – e depois ao retirá-lo do poder para colocar o “democrático” Camacho, é justamente a fundamental lição de que a classe dominante e seu Estado utilizam a roupagem que melhor convém no momento para manter sua dominação. Se eventualmente ela é obrigada pelo acirramento da luta de classes a recorrer a formas mais duras como bonapartismos e fascismos, na verdade a forma de governo que menos lhe custa é a “democrática”, onde se alimenta a ilusão de que é o povo quem decide de alguma forma os rumos do país.

E, posteriormente, a própria manobra que Perez y Mejia apresenta para derrubar Camacho com o apoio dos EUA e ser ele o construtor de um novo “consenso” entre a classe dominante para dirigir o país, deixam ainda mais claro a forma como a burguesia procura contornar os conflitos. Em tempos de golpe institucional, em que a funcionalidade de “Camachos” como Dilma e Lula ficaram obsoletas para a burguesia, e no famigerado “acordo nacional, com STF, com tudo” se colocou Temer na presidência, Lula na cadeia e, depois, Bolsonaro aparece como um inesperado caudilho em torno do qual a burguesia é obrigada a se aglutinar, a discussão trazida por Vianinha é mais do que atual. Em relação à ditadura no Brasil que levou ao “consenso” das classes dominantes na construção do regime de 88, o mais trágico Vianinha não viveu para ver: a participação do PT como a força capaz de conduzir a classe trabalhadora a esse novo beco sem saída. As lições, contudo, poderiam ser tiradas levando a lógica do pensamento apresentado na peça até o fim.

A esquerda enfrenta Papa Highirte

Há, ainda, outro debate fundamental colocado pela peça, que nos idos de 68 era sem dúvida o mais candente: as personagens da esquerda, os militantes opositores ao regime de Highirte, expressam no texto os mesmos debates que a esquerda latino-americana enfrentava ao pensar suas estratégias para lutar contra as ditaduras.

No calor da vitória da revolução cubana, a estratégia foquista de Che Guevara ganhava posições entre a vanguarda revolucionária. O racha do PCB brasileiro ocorrido em 1962 tinha como pano de fundo esse debate, com o setor que criticava a política conciliadora e pacifista do partidão buscando inspiração na revolução chinesa de 1949 e na cubana, ocorrida dez anos depois. Em Papa Highirte, esse debate se expressa entre Manito – defensor da tática de guerrilha – e Mariz – que se opõe a esta e defende a “luta de massas”. Assim aparece a oposição em um de seus diálogos:

Mariz – … E Manito queria puxar briga, puxar briga, mas não dá ainda, Manito, não dá, as pessoas têm medo, acham que se ficarem caladas é melhor, eles pensam que melhora sozinho, pensam que reclamar piora…

Manito – E eu faço o que até elas descobrirem, converso com o barbeiro?

Mariz – … Tem de ficar com eles, discutindo, discutindo, juntando…

Manito – Não sou pastor de ovelha, companheiro, revolucionário…

A estratégia da guerrilha, efetivamente, motivada pela ilusão de que havia sido a disposição abnegada e um punhado de armas que garantira a vitória em Cuba, bem como pela impaciência histórica de fazer o “trabalho cinzento e cotidiano” no movimento operário e estudantil e aguardar um novo ascenso do movimento de massas, significou uma tragédia para a esquerda, que levou grande parte de seus quadros à morte no Araguaia ou nas operações urbanas, no caso do Brasil.

Contudo, ainda que o debate na época efetivamente girasse em torno de um suposto “pacifismo” versus “luta armada”, isso deixava de lado as questões fundamentais de estratégia. O erro do PCB, longe de ser a falta de disposição de ir pra guerrilha, havia sido a estratégia da conciliação de classes, o apoio ao governo de Jango, a falta de independência e preparação para enfrentar com os métodos da luta de classes o golpe em 1964, e a manutenção dessa estratégia posteriormente. Vianinha corretamente aponta em “Papa Highirte” para a tragédia que representou a guerrilha, que se expressa primeiro em Manito, mas depois no plano de Mariz em assassinar Highirte com um ato isolado de bravura. Fica clara a defesa implícita de Vianinha, portanto, do PCB, partido do qual fazia parte; contudo, em grande medida era a própria impotência expressa na estratégia stalinista de subordinar o movimento operário e estudantil a uma aliança de classe com a burguesia que havia feito com que muitos chegassem à equivocada  conclusão de associar o imprescindível trabalho nos sindicatos, no movimento operário e no movimento estudantil a um pacifismo servil à burguesia, e acreditar que a saída era a luta armada de uma pequena vanguarda isolada das massas.

Vianinha, como um caso quase único na dramaturgia brasileira, trouxe em sua dramaturgia essas questões fundamentais para o debate da esquerda, sem reduzir a questão a um esquematismo forçado e estéril. Daí a força e a incrível atualidade de seu texto. Em 1976, o grupo de teatro das Ciências Sociais da USP realizou a primeira montagem de “Papa Highirte” de forma clandestina, enfrentando a censura da ditadura. Convidamos todos a resgatar a força desse texto no debate que ocorrerá nessa segunda, 13, com a professora Maria Silvia Betti, estudiosa da obra de Vianinha, no mesmo prédio de Letras, na sala 208, às 18h.

teatro

About author

No comments