O espírito guerreiro de Palmares

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imagem: Vivi Cuiabá

Por Daniel Alfonso

[Nota: O artigo a seguir é parte do livro Questão Negra, Marxismo e classe operária no Brasil, lançado pelas edições Iskra em 2013, publicado originalmente com o título “O espírito guerreiro de Palmares como exemplo para a classe operária”.]

O Brasil foi o país que mais recebeu africanos escravizados. Segundo Alencastro, “12 mil viagens foram feitas dos portos africanos ao Brasil para vender, ao longo de três séculos, cerca de 4 milhões de escravos aqui chegados vivos1. Os números, ao contrário do que se pensa, não falam por si. Retratam de forma assustadoramente clara a magnitude do empreendimento escravista. Por trás dos números, ou melhor, antes de existirem como tais, era a vida de milhões de africanos que estava em jogo. Essas vidas fizeram história, tanto no que veio a ser o Brasil quanto na África. Os negros e negras sequestrados da África não podem ser reduzidos a esses números estrondosos; em cada momento de suas vidas, afirmaram-se como sujeitos. O grau de violência e opressão sofrida é imensurável. As respostas que as negas e negros escravizados deram a essa violência e opressão são parte constitutiva da tradição de todos os povos e classes oprimidas. Neste pequeno artigo, queremos apontar rapidamente alguns aspectos do principal quilombo das Américas: Palmares.

A escravidão alterou profundamente o modo de vida dos africanos. O capital ingressou na África pela via do cativeiro e extirpou esse continente de seus habitantes, destruindo antigas relações e reestruturando-as sob novas formas. As negras e os negros da África reagiram a esse processo de diversas formas, num complexo de possibilidades por nós ainda não totalmente conhecido. Sua organização social era variada, assim como distinções de religião, visão de mundo. Os escravizados que chegaram ao Brasil vieram, em sua maioria, tanto do que se denomina África Ocidental – que aportaram principalmente no nordeste, especificamente na Bahia – quanto da África Central. São diversos os povos, tradições, visões de mundo entre os africanos nesse época, e seria necessário mergulhar nesse universo para captar a dimensão das alterações que a opressão e a violência escravista causaram. Em outras palavras, a tradição à qual nos referimos não se inicia no desembarque dos escravizados nos portos brasileiros, mas no próprio território africano. Como nosso tema neste trabalho é Palmares vamos nos restringir a somente um pequeno, mas valioso exemplo. Em várias regiões, em diversos momentos, africanos responderam à escravização adotando ou aprofundando um modo de vida nômade, adotado com o objetivo de se defenderem de traficantes. Robert Slenes, depois de elencar alguns impactos da entrada do capital comercial  na África e a relação com a vida nômade, afirma: 

Chegamos, portanto, a uma descoberta insólita, mas não destoante do que sabemos sobre a enorme tragédia humana desencadeada em ambos os lados do Atlântico Sul pelo comércio de escravos. Antes de serem capturadas e trazidas ao sudeste do brasil, muitas pessoas desterradas da África Central, talvez a maioria, já eram praticamente “quilombolas” – inclusive no sentido original da palavra, já que moravam em aldeias que eram pouco mais do que acampamentos (de guerreiros)”2.

Vejamos então um pouco da história dos quilombolas da capitania de Pernambuco. No final do século XVI, tem origem em Pernambuco (hoje Alagoas) o quilombo mais extenso das Américas e que por mais tempo resistiu à repressão da colônia. Palmares sem dúvida se constituiu em uma das maiores ameaças aos interesses da colônia e, por extensão, de Portugal, ao longo de todo o século XVII. Não se sabe exatamente como surgiu o quilombo de Palmares; ao que tudo indica, “(…) cerca de 40 cativos que promoveram uma insurreição no engenho próximo a Porto Calvo, uma das principais vilas, então, de Pernambuco3. A utilização do espaço físico da colônia se encontrava subordinada aos interesses da metrópole; nas regiões produtoras de açúcar dessa época, isso significava cidades perto do Atlântico, com boa localização para portos, e monocultura próxima às cidades. Assim, o interior das capitanias tardou a ser ocupado e constituiu ponto privilegiado para formação de quilombos. Em Pernambuco, ainda mais, pois o interior é topograficamente vantajoso: serras densas e de difícil acesso. Palmares se estabeleceu no coração da Serra da Barriga, a 120 quilômetros do litoral: “Os palmaristas procuraram construir seus mocambos ao longo da serra [da Barriga], em uma região extensa que ia do rio São Francisco até o cabo de Santo Agostinho”4. 

Assim como todos os quilombos, no Brasil e na América, Palmares não se isolou. Ao contrário, entender sua existência e resistência por tanto tempo em uma das principais capitanias da colônia, assim como a dinâmica de Palmares, só é possível através da busca por elucidar sua relação com as cidades e fazendas próximas, os colonos livres e, claro, os escravos das senzalas. Os palmaristas ocupavam não somente um espaço físico, mas também uma intricada e decisiva rede de relações com a colônia; relações que se expressavam das mais variadas maneiras: saques, roubos, destruição de engenhos, comunicação com escravos, troca mercantil e de informações, sequestro de escravos e escravas, entre outras. Fugas de escravos faziam parte da realidade colonial e fazendeiros e autoridades a elas deviam também se adaptar. 

O grito por mais segurança de fazendeiros não poucas vezes foi respondido com eloquência governamental que não resultava em medida alguma. Os recursos coloniais eram escassos e perseguir escravos era uma empreitada cara, que não à toa era responsabilidade privada dos fazendeiros quando se tratava de poucos cativos. Equilíbrio político-social nunca houve, era necessário embrenhar-se na precariedade: buscar a destruição de quilombos quando estes se apresentavam como ameaça maior, resfriar a repressão quando não faziam muito alarde. Palmares não fugiu a esta lógica. Porém, já no começo do século XVII, Palmares se torna fonte de tensão para a colônia:

“De um estágio inicial de apenas preocupação, as autoridades coloniais começam a ficar em sobressalto com o crescimento de Palmares e as fugas em massa. Pior, o problema não era apenas esse. O que passou a assombrar senhores de engenho eram as razias que os palmaristas levavam a cabo nos engenhos, propriedades e povoados locais. Casas-grandes e sobrados eram saqueados, paióis das fazendas e armazéns das vilas roubados, canaviais incendiados e escravos – principalmente mulheres – sequestrados; os colonos que tentavam resistir eram mortos. Em uma época na qual havia temor permanente de invasões estrangeiras de franceses e holandeses, os fugitivos reunidos em mocambos eram considerados inimigos internos. A capitania estava em total estado de alerta. Fazendeiros e moradores em polvorosa. A metrópole atenta aos acontecimentos. Autoridades coloniais de sobreaviso. Escravos nas plantações ansiosos. A guerra estava apenas começando”5. 

No começo de 1630, a ameaça de invasão holandesa se concretiza. Não havia condições de Pernambuco oferecer uma forte resistência; em dois dias, as tropas holandesas já tomavam posse de Recife. Houve, porém, confrontos importantes nos arredores, e a principal resistência dos senhores se concentrava na colina Arraial do Bom Jesus, que somente foi tomada em 1635. Na primeira metade do século XVII, a Holanda estava em pleno curso de se tornar protagonista das transações atlânticas; já era o destino de considerável parte do açúcar brasileiro, mas ainda não tinha terras que a possibilitassem estreitar vínculos coloniais e potencializar seu desenvolvimento interno. A conquista de Pernambuco, e de regiões da África, fazia parte desse projeto, assim como partes do Caribe. Os invasores holandeses remexeram a ordem sócio-política, e qualquer alteração na rotina era atentamente observada e analisada pelos escravos e palmaristas. Como ressalta Freitas, “os negros logo viram que a aquela guerra não era sua6. Na colônia de 1630, a experiência de 1624 somente ressaltou uma compreensão que se parecia generalizada entre os escravos: Holanda tinha o mesmo a oferecer que Portugal. Palmaristas se valeram do conflito entre Holanda e a colônia para fortalecer posições. 

Bandos de escravos armados mantiveram durante toda a guerra uma constante pressão sobre os dois exércitos – chegaram a diminuir a animosidade entre os exércitos contra o inimigo comum. No começo de 1636, tornaram desesperada a situação dos últimos portugueses que ainda resistiam na povoação de Porto Calvo. Passaram a interceptar sistematicamente os comboios terrestres procedentes da Bahia que conduziam víveres e munições para aquelas tropas. Foi só em maio de 1636 que uma expedição comandada pelo sargento-mor da Bahia, Belchior Brandão Dias, desbaratou a custo as guerrilhas negras e assim normalizou os abastecimentos. O conflito chegou a impactar profundamente a entrada de escravizados. 

Palmares será a mais importante preocupação de ordem interna do Recife holandês. Apesar de mudanças importantes na capitania, Pernambuco era valioso justamente pela relação entre escravidão e açúcar, nó que a Companhia das Índias Ocidentais desejava que continuasse atado. Para tanto, destruir Palmares era essencial. 

Os holandeses estabeleceram um novo patamar de enfrentamento com Palmares; cada vez mais a repressão se daria nas matas próximas à Serra da Barriga. Tardaria ainda mais 50 anos para destruição de Palmares, mas a partir da invasão holandesa, da recuperação de Recife pelos Portugueses e, principalmente, a partir de 1660, a luta contra Palmares se eleva a um patamar superior. 

A partir da década de 16607 inicia-se uma combinação de métodos repressivos. Buscou-se o povoamento das cercanias com o objetivo de servir de base de mantimentos para expedições e forçar o deslocamento dos palmaristas cada vez mais para o interior, a construção de um posto em Serinhaém (1672) e ataques diretos, inclusive anistiando presos que se incorporassem às campanhas contra Palmares. A destruição de matas relativamente próximas a Palmares e um cerco mais forte, apesar de sucessivas derrotas, além de levar fome aos palmaristas, colocou em cena uma combinação mais forte entre expedições militares e respostas de Palmares. A relação, sempre complexa e intricada entre a Serra da Barriga e as cidades, se tornou mais intensa. Em um confronto com uma importante expedição (mais de 300 homens) com mandato das Câmaras de Serinhaém, Porto Calvo, Penedo e Alagoas, no ano de 1676, Zumbi, ainda um líder militar sob o comando de Ganga-Zumba, é atingido por uma bala na perna que o deixa manco. Palmaristas assassinados e 45 prisioneiros, soldados doentes, feridos e uma derrota foi parte importante do balanço dessa expedição. A resposta de Palmares não tardou: 

“No mês seguinte, os palmarinos retaliaram. Em toda parte – Porto Calvo, Alagoas, Ipojuca, São Miguel e Serinhaém –, as pequenas guarnições se mostravam impotentes para conter as formações palmarinas. Os índios fugiam aterrorizados. Senhores-de-engenho faziam à noite atalaia em suas casas. Engenhos e canaviais eram devorados pelas chamas. Não havia como impedir os ataques palmarinos. Se as autoridades coloniais e os senhores-de-engenho reuniam contingente mais numeroso em algum lugar, os ataques ocorriam em outro. E assim foi como, em todo o resto de 1676, os antigos escravos de certo modo foram os amos do sul de Pernambuco8.

A defesa dos mocambos a esse novo grau de ataques se deu através de táticas de guerrilha no mato e aprimoramento de suas próprias fortificações. Em grande medida, essa reorganização interna, ou melhor, a adaptação através de uma maior divisão social do trabalho, às necessidades militares, esteve sob o comando de Ganga-Zumba. Segundo Gomes:

O poder central de Palmares no período de 1645 a 1678 esteve provavelmente nas mãos de Ganga-Zumba, ainda que houvesse autonomia militar e econômica em alguns mocambos. Em termos de organização prevaleceu uma espécie de política autocrática. A estrutura socioeconômica de Palmares – principalmente quando recrudesceram os ataques contra eles na segunda metade do século XVII – foi fortemente marcada pela organização político-militar9.

Com o avanço das expedições militares, ainda que com alto custo por parte da colônia e suas províncias, Palmares se vê cada vez mais ameaçado10. Mesmo com a intensificação das expedições – com os jesuítas, Antônio Vieira à frente e com as tropas contando com o apoio de Santo Antônio, o santo que outros atributos protegia os dedicados à destruição de Palmares – o quilombo continuava a resistir. Ganha força a tentativa de obter a já aventada paz em meados dos anos 1660. Ganga-Zumba, até então líder de Palmares, aceitou a proposta de paz que, entre outros termos secundários, garantia a autonomia de Palmares, liberdade aos nascidos no quilombo e demarcação de suas terras pela Coroa. Cativos que fugissem para Palmares deveriam ser entregues às autoridades e os palmaristas seriam considerados vassalos do rei. 

Como se sabe, Ganga-Zumba aceitou o acordo, pelo que foi fortemente combatido por Zumbi. Uma divisão irreparável se selava no coração de Palmares, sob o impacto do tratado de paz e das continuadas expedições. 

“Os palmaristas dividem-se, porém, quanto à aceitação integral do referido tratado. Enquanto Ganga-Zumba e outros migram para a região do Cucaú, Zumbi, importante liderança militar, opta por continuar no mocambo Macaco com outros tantos. A negociação estava ameaçada. A guerra continuaria. Parte dela se daria no interior do próprio Palmares. Desse modo, os palmaristas comandados por Ganga-Zumba migraram para a região do Cucaú, como parte do acordo. Ao mesmo tempo, outros palmaristas – em outros mocambos – permaneceram estabelecidos na serra da Barriga. É possível que outros ainda tenham migrado para áreas de capitanias vizinhas. Com a possiblidade do tratado de paz, a articulação entre vários mocambos em Palmares parecia estar fragilizada.”12 

Ganga-Zumba foi nomeado general da Coroa e seguiu com vários mocambos para Cucaú. Temia represálias internas e de palmaristas:

“Diversos, inclusive, abandonaram o mocambo de Cucaú e passam a aumentar o número de seguidores de Zumbi. A preocupação do líder não era à toa: Ganga-Zumba acaba sendo envenenado e outros tantos seguidores são executados.”13

Décio Freitas chega a afirmar que os seguidores de Ganga-Zumba nada mais eram do que fiéis a Zumbi, que articulara um plano para destruir Cucaú, assassinar Ganga-Zumba e todos os demais que concordaram com os termos de paz14. 

Parlmares se rearticula, surgem novos mocambos. Zumbi e seua determinação em não negociar com a colônia se torna um sério problema político. A realidade obrigava a colônia a investir na destruição de Palmares. Portugal se encontrava imerso em dívidas fruto dos conflitos com Espanha, que duraram até 1668 e “recambiaram o reino lusitano à sua velha sina de pobretão da Europa. Em rigor o Brasil representava então seu quase único meio de vida (…)15. Se os cofres estavam vazios a colônia precisava cumprir melhor do que nunca sua função. É certo que a capitania de Pernambuco, por uma combinação e fatores, já não apresentava os mesmos níveis de produtividade como outrora. O açúcar, no final do século XVII, se encontra em importante crise – em grande medida proporcionada pela expulsão dos holandeses, que se fixaram no Caribe e passaram a produzir açúcar em condições mais vantajosas. Internamente, a crise se manifestou em repressão. Palmares passara a ser considerado símbolo0 dos problemas de Pernambuco e precisava ser destruído. 

A Coroa sempre esteve atenta a Palmares. O rei D. Pedro II ainda não desistira de uma possibilidade de acordo de paz; sua intenção era buscar novamente um acordo. Souto Maior é nomeado governador de Pernambuco em 19 de fevereiro de 1695 com o objetivo expresso de obter a paz com os palmaristas. A proposta é recebida com desagravo pelos senhores de engenho, que entendiam que qualquer tentativa de paz havia fracassado em 1678. O rei chegou a escrever uma carta a Zumbi, na busca por fazê-lo aceitar um acordo:

“Eu El-Rei faço saber a vós Capitão Zumbi dos Palmares que hei por bem perdoar-vos de todos os excessos que haveis praticado assim contra minha Real Fazenda como contra os povos de Pernambuco, e que assim o faço por entender que vossa rebeldia teve razão nas maldades praticadas por alguns maus senhores em desobediência às minhas reais ordens. Convido-vos a assistir em qualquer estância que vos convier, com vossa mulher e filhos, e todos os vossos capitães, livres de qualquer cativeiro ou sujeição, como meus leais e fiéis súditos, sob minha real proteção, do que fica ciente meu governador que vai agora para o governo dessa capitania.”16 

Não há notícia de resposta de Zumbi. Mais de um século antes de Toussaint L’Ouverture se corresponder com Napoleão, Zumbi recebia uma carta do rei de Portugal. L’Ouverture o fazia imbuído do que entendia ser o espírito da revolução francesa nas colônias, a liberdade, pela qual colocou de pé uma guerra de libertação nacional contra o império francês. Portugal não tinha nada a oferecer aos palmaristas, nem política nem ideologicamente. Zumbi compreendia isso melhor do que ninguém. De qualquer maneira, aproveitou a política do governador enviando contrapropostas para um acordo, que quando eram aceitas, substituía deliberadamente por novas; certamente usou a oportunidade para ganhar tempo e se rearticular. 

A expedição de João Marins e Alexandre Cardoso (precedida por uma constituída de tropas indígenas) chegou a destruir importantes mocambos e a “capturar centenas de palmaristas17. Palmares não se limitou à reorganização interna – respondeu aos ataques, intensificou as “hostilidades18 com sequestro de mulheres brancas e assenzalados e ataques “contra vilas e povoados19. Assim como em outros momentos, alterações na ordem social foram sentidas pelos escravos das senzalas. O fracasso no tratado de paz, o conflito em Cucaú, novas investidas dos palmaristas sobre cidades vizinhas e o desgosto intensificado por Palmares acabou por gerar “alarmante aumento das fugas” e arrefecimento à vida escravo na capitania – como, por exemplo, “enjeitar o dinheiro oferecido pelas tradicionais confrarias de libertos para alforria dos escravos20. 

Nas senzalas, cativos deviam estar ansiosos. A derrota de Palmares podia afetar suas vidas. As trocas econômicas e as redes de solidariedade seriam, então, destruídas. Sem falar no fim de um sonho de encontrar a liberdade naqueles mocambos. Era um momento de expectativa e apreensão. Denuncia-se, inclusive, que os cativos nos engenhos preparariam uma insurreição contando com o apoio dos palmaristas. É guerra total”.21

Após o fracasso do tratado de paz, ressurge a ideia de utilizar paulistas para expedições repressivas locais, o Terço dos Henriques, e as milícias formadas eventualmente provaram ser capazes de auferir grandes danos a Palmares, principalmente a partir de 1660, porém eram insuficientes para sua destruição total. A fama dos paulistas como caçadores de escravos fugidos e destruidores de quilombos já era a mais alta na colônia. Entretanto, os interesses em relação a Palmares eram diversos – destruí-lo, sim, porém o que fazer com as terras era outra história; havia uma série de militares e senhores de engenho que reivindicavam as terras como parte do pagamento de expedições anteriores. 

A ânsia pelo fim de Palmares colocou os paulistas em uma situação de negociação vantajosa. O grande nome da expedição paulista que por fim derrotaria Palmares é o de Domingos Jorge Velho. Com uma tropa de quase mil homens. Apesar dos preparativos  se iniciarem em 1668, uma “sublevação de índios janduís no Rio Grande do Norte” descola os paulistas da região.  Só voltam  a Pernambuco para atacar Palmares em 1691.

“Enquanto isso, palmaristas continuam movimentando-se nas serras. Voltam a  se aproximar das vilas. Mais uma vez amedrontam autoridades e moradores. A operação de guerra dos paulistas tinha de ser iniciada imediatamente. Em agosto de 1692, depois de muita preparação, vários impasses e diversas discussões sobre as condições ajustadas para sua realização, a expedição de Domingos Jorge Velho inicia sua marcha. São centenas de soldados, enorme quantidade de armamento e provisões.”22

A luta dos paulistas contra os palmaristas é verdadeiramente épica. Ambos os lados alteram suas táticas costumeiras: os palmaristas evacuam mulheres e crianças de seus quilombos e atacam as tropas para atrasar sua chegada; usam a noite para atacar e aterrorizar os arraiais23. Os primeiros embates são ganhos pelos palmaristas (vários expedicionários são capturados). “Chegam reforços. Mais homens provisões e munições. O principal objetivo da expedição punitiva era atingir o mocambo Macaco, a capital de Palmares”.24

Palmares era dono de seus entornos. Táticas de “guerrilha do mato”, típicas do período das primeiras expedições, se combinaram com resistência sofisticada de Macaco, o principal quilombo. Jorge Velho e Zumbi sabiam que Macaco decidiria os rumos da guerra.  A expedição não conseguiu se aproximar de Macaco a ponto de articular uma invasão sem maiores preparos. Macaco era fortemente defendido, não somente com uma cerca “dotada de torneiras a dois fogos cada braça, de flancos, de redutos, de redentes, de faces e de guaritas que asseguravam aos defensores uma quase completa incolumidade25, mas com armadilhas de fossos “dissimulados por vegetação, e crivados de estepes – puas pontiagudas de ferro que chegavam à altura ora das virilhas, ora da garganta de um homem26 – e arqueiros distribuídos em postos defensivos. A situação era desvantajosa para os homens de Jorge Velho. A saída veio da combinação entre a construção de contracercas, para permitir a aproximação ao quilombo, e aumento do poder de fogo. A expedição foi novamente derrotada. A esta altura, a expedição se dividia em “três corpos principais: um no centro, sob o comando de Sebastião Dias Mineli; outro à direita, sob seu próprio comando [Jorge Velho]; e um terceiro à esquerda, sob o comando de Vieira de Melo. Contingentes foram distribuídos ao longo de toda circunvalação, fechando o cerco27. 

Mais reforços, suprimentos e munições. Mais um assalto e mais uma derrota. O aumento do poder de fogo foi possível com a chegada de seus canhões e duzentos homens no dia 3 de fevereiro. Uma cerca complementar foi construída na virada do dia 4 para o dia 5, possibilitando maior precisão nos disparos. Segundo Freitas, Zumbi, tendo descoberto a construção da cerca no amanhecer do dia 5, mandou degolar o responsável pelo vigilância. Certamente percebeu a profundidade da ameaça. Macaco cairia no mesmo dia. 

“Os palmaristas descobrem o plano dos paulistas quando a construção da contracerca estava quase terminada. Como contra-estratégia, preparam uma rápida retirada dos mocambos. Antes que isso se concretize, começa o ataque das forças paulistas. Como Macaco ficava na parte mais alta da Serra da Barriga, alguns palmaristas em fuga acabam caindo em um abismo. Os que permaneceram como retaguarda da evacuação entraram em combate direto com as forças coloniais. Batalhas sangrentas são travadas. Duram horas e atravessam a noite. Mais de 500 palmaristas terminam presos, a maior parte mulheres e crianças. Outros tantos foram mortos. Inúmeros retiram-se para a floresta.”28 

A vitória dos paulistas foi festejada com autoridades em êxtase. 

“Na madrugada do dia 7, correios partiram à pressa para o litoral levando a notícia da queda do baluarte negro. Melo e Castro celebrou o acontecimento atirando dinheiro ao povo das janelas do palácio, mandando rezar missa solene em ação de graças e autorizando luminários em Olinda e Recife durante seis dias. Ao mesmo tempo, despachou para a Bahia o ajudante Antônio Gaioso Nogueira a fim de negociar o fato ao governador-geral a embarcar para Lisboa com uma carta destinada ao rei.”29

Vieira de Melo e Sebastião Dias voltam ao litoral com suas tropas. Jorge Velho permanece na Serra da Barriga com as suas. Pretendia garantir suas terras e aproveitar a vantagem geográfica do local para caçar os sobreviventes e seguir suas empreitadas próprias30. Zumbi conseguiu fugir com vários palmarinos. A princípio, acreditava-se que havia morrido no dia 5 de fevereiro, porém as autoridades não tardam a reconhecer que Zumbi vivia. Chegou a ser identificada “à frente de um grupo que irrompeu na vila de Penedo para se apoderar de armas e munições. Nos meses seguintes, continuou a registrar-se atividade de grupos armados no distrito de Penedo”.31 

Outros quilombos são atacados. Zumbi consegue fugir dos ataques e, da floresta, busca rearticular seu exército. Um de seus “lugares-tenentes”, segundo Freitas, foi capturado e torturado a fim de entregar o paradeiro de Zumbi. Tendo resistido às torturas, teria “fraquejado quando o paulista lhe assegurou em nome do governador a liberdade e a vida se entregasse Zumbi32. Zumbi aglutinava em torno de si cerca de 20 homens, “mas quando Soares chegou  seguido à distância pelos paulistas, a guarda se achava reduzida a 6 homens”. Soares se aproximou de Zumbi, “enterrou-lhe um punhal no estômago e deu o sinal aos paulistas”33.

Zumbi e seus homens foram assassinados em 20 de novembro de 1695. O cadáver seguiu para Porto Calvo, onde o exame do corpo “acusou quinze ferimentos a bala e um sem-número de golpes de arma branca” Como todos os opressores, Castro e Melo transformou o corpo de Zumbi em um recado aos que ousassem seguir seu exemplo, e através da mutilação do corpo de Zumbi morto buscar aterrorizar os negros ainda vivos: “(…)depois de morto, o general negro fora castrado e o pênis enfiado na boca; haviam-lhe arrancado um olho e decepado a mão direita”. A cabeça seguiu para Recife, onde foi espetada até a putrefação “em um chuço no lugar mais público da cidade34. Não adiantou; não seria o fim de Palmares35. 

Palmares continuaria a ameaçar a colônia, como marca maior da resistência negra no imaginário das autoridades. Palmares era entendido, pelas autoridades coloniais, como a mais forte ameaça da resistência negra, sendo sempre necessário evitar que novos Palmares surgissem.  A resistência negra era, de fato, um limite intransponível das elites coloniais. Onde havia escravidão, havia resistência. Não somente no Brasil, mas em todas as Américas. Palmares não acabou com a expedição de Jorge Velho. Sobreviveu como terror para as elites coloniais, sempre a lhes lembrar do que poderia acontecer. O medo de novos Palmares por todo o Brasil seguiu na mente e na política repressiva da colônia (e do Império) até o fim da escravidão.

 

NOTAS 

  Luiz Felipe de Alencastro. Tratado dos Viventes. Companhia das Letras, 1ª edição, 2000.

 Robert Slenes. Na senzala uma flor. Unicamp, 2ªedição, 2011. 

 Gomes continua: “o objetivo da revolta seria a fuga coletiva para a floresta para formarem um mocambo? Não sabemos. Em 1597, temos a primeira referência documentada sobre a existência de mocambos nas serras da capitania pernambucana.” Flavio dos Santos Gomes. Palmares, Contexto, 1ª edição, 2005.

 Idem, op. cit.

5  Idem, op. cit.

6 Décio Freitas. Palmares – a guerra dos escravos, Mercado Aberto, 5ª edição.

7  A todos os governadores de Pernambuco era dada a responsabilidade, primordial, de destruir Palmares. Pode-se dizer que os balanços dos governadores dependiam grandemente do grau de destruição afligido a Palmares. 

8 Décio Freitas, Palmares – a guerra dos escravos, op. cit. 

9 Gomes, Palmares, op. cit. 

10 “A sistemática de guerras contra os palmaristas nas décadas de 1670 e 1680 foi paulatinamente enfraquecendo Palmares. Vários líderes militares foram durante esse período presos e mortos. Os constantes e necessários deslocamentos dos palmaristas minavam suas resistências. Não havia tempo para planejar novas evacuações e reorganizar suas economias.” Idem, op. cit. 

11 Idem, op. cit. 

12 Idem, op. cit. 

13 Idem, op. cit. 

14 Freitas, Palmares – a guerra dos escravos, op. cit.

15 Idem, op. cit. 

16 Idem, op. cit. 

17 Gomes, Palmares, op. cit. 

18 Freitas, Palmares- a guerra dos escravos, op. cit.

19 Gomes, Palmares, op. cit. 

20 Freitas, Palmares- a guerra dos escravos, op. cit.

21 Gomes, Palmares, op. cit. 

22 Idem, op. cit. 

23 “Mesmo estacionando suas tropas em arraiais situados na serra, os costumeiros problemas de abastecimento surgiram: fome e falta de munição. Os ataques fulminantes do palmaristas deixavam os integrantes das expedições cada vez mais amedrontados. A noite poderia ser transformada em terror. O perigo dos ataques palmaristas era eminente.” Gomes, Palmares, op. cit. 

24 Idem, op. cit. 

25 Freitas, Palmares – a guerra dos escravos, op. cit. 

26 Idem, op. cit. 

27 Idem, op. cit. 

28 Gomes, Palmares, op. cit. 

 29 Freitas, Palmares- a guerra dos escravos, op. cit. Continua: “O governador clamou sua exultação: ‘Não me pareceu dilatar a V. Majestade a notícia da gloriosa restauração dos Palmares, cuja feliz vitória se não avalia por menos que a expulsão dos holandeses, e assim foi festejada por todos estes povos”.

30 A permanência de Jorge Velho após a queda de Macaco transformou-se em sério problema político, não somente por querer terras que outros acreditavam serem suas por direito, como por seus métodos de terror. 

31 Freitas, Palmares- a guerra dos escravos, op. cit.

32 Idem, op. cit.

33 Idem, op. cit. Em outro trecho: “Em carta de 14 de março de 1696 para o rei, o governador Melo e Castro contou que ‘Zumbi pelejou valorosa e desesperadamente, matando um, ferindo alguns e, não querendo render-se nem aos companheiros, foi preciso mata-los e só a um se apanhou vivo’. Contou, depois, Furtado de Mendonça [o paulista responsável pela expedição], que quando viu ‘negro morto e bem morto’, agradeceu a Deus a Glória alcançada.”

34 Idem, op. cit.

35 Gomes, Palmares, op. cit. Continua: “Nos anos 1729, 1736 e 1757, a capitania de Pernambuco continuaria a ter notícia de mocambos ali estabelecidos nas regiões serranas onde outrora haviam vivido os palmaristas.”

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