A sinfonia de Olavo de Carvalho, da Veja, e do “Escola Sem Partido”

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Ilustração: Victor Cubaiá

Por Danilo Magrão

O projeto “Escola sem Partido” é o retrato do reacionarismo em toda linha. Entre professores, do ensino básico ao universitário, seus efeitos já são sentidos. Não são poucos os casos de exposições, assédios e perseguições sofridas por professores, apesar do projeto não ter força da lei. Parlamentares, o lobby fundamentalista religioso, ideólogos, youtubers e o próprio Bolsonaro constituíram uma engrenagem inquisitória e policialesca que já está produzindo efeitos nefastos para as liberdades de ensino e científica. Tudo isso em flagrante descumprimento e violação de direitos constitucionais básicos, que seguem imunes ao martelo bonapartista da toga brasileira.

Contudo, dois fatos relativamente novos têm intrigado a opinião pública, intelectuais da educação, professores e estudantes. Para surpresa geral, o ideólogo arqui-reacionário Olavo de Carvalho publicou um vídeo opondo-se a que o projeto “Escola sem Partido” vire lei; e até mesmo a revista Veja, folhetim de incontáveis pérolas direitosas, dedicou a capa de sua edição para criticar o projeto. Seria isso uma boa notícia para os opositores do “Escola Sem Partido”, pois seriam eles aliados para uma frente ampla pela sua rejeição?

A miríade de posições sobre o “Escola Sem Partido” do bloco golpista – que vão de algumas matizes até certas oposições – poderia criar ilusões que temos entre a fauna dos reacionários e conservadores, aqueles que sustentam algo próximo de um ideal liberal ou republicano onde poderíamos nos apoiar. Nada mais equivocado. O que está em jogo é a disputa de quem irá segurar a batuta para determinar os compassos, os andamentos, a intensidade e os caminhos dos ataques à educação pública.

Na notação musical, um compasso é uma forma de dividir quantitativamente, em grupos os sons, uma composição musical com base em batidas e pausas, sons e silêncios. Ainda que o compasso dos distintos atores burgueses possam ter intensidades diferentes, a composição de seu projeto de país e de educação segue afinada em uma íntima sintonia.

A questão é quem segurará a batuta para conduzir esse processo. A disputa recentemente se mostrou pela decisão do futuro ministro da educação. A bancada fundamentalista religiosa e os setores tradicionais dos reformadores empresariais na educação foram os atores desse conflito. Mas não podemos vê-los como pares de oposição. O que os une é a privatização da educação pública e todo o receituário neoliberal. O que os divide são os caminhos para se chegar a isso. Não se trata de projetos distintos, mas apenas de pontos e contra-pontos de uma mesma sinfonia.

A disputa pela batuta

Os reformadores empresariais da educação tentaram emplacar um de seus nomes mais proeminentes, Mozart Ramos Neves, primeiro presidente do Todos Pela Educação e atual diretor de inovação do Instituto Ayrton Senna. Tão logo seu nome começou a ser ventilado na mídia como o provável ministro, a bancada da bíblia vociferou contra o “esquerdismo” (sic) que ameaçava a pasta. Bolsonaro recuou. Mozart era um nome forte, que havia sido articulado na visita de Viviane Senna ao capitão reformado, antes mesmo do resultado eleitoral.

A segunda tentativa se deu com o procurador Guilherme Shelb. Sua indicação sofreu forte resistência da opinião pública, justamente porque não apresentava nenhuma qualificação que justificasse sua escolha. Era evidente o dedo da bancada fundamentalista religiosa.

Por fim, a saída foi refugiar-se em mais uma indicação proveniente dos círculos militares com o anúncio de Ricardo Vélez Rodrigues, professor emérito da Escola de Comando do Estado Maior, indicado por Olavo de Carvalho e bem-visto pela bancada fundamentalista.

Na guerra de ministros, os reformadores empresarias saíram perdendo, ao menos taticamente. Os teocratas fundamentalistas contavam em seu apoio toda demagogia reacionária utilizada nas eleições por Bolsonaro que mobilizou votantes contra a suposta “doutrinação” nas escolas e universidades. No cabo de guerra do MEC, agradar o eleitorado no imediato pós-eleitoral, bem como manter o fiel apoio da bancada fundamentalista, foi decisivo para a escolha final.

O significado desse conflito pode expressar as contradições que ainda vão perpassar o Escola Sem Partido. Com Mozart havia o temor que ele fosse engavetado. Com Shelb, a certeza de sua aprovação, mas com o temor dos setores empresarias que ele não conseguisse levar a cabo outras reformas e o trabalho iniciado por Maria Helena Guimarães de Castro no governo Temer.

As diferenças no compasso

Mas o que esses conflitos representam?

O vídeo de Olavo de Carvalho pode apresentar pistas para essa resposta. Segundo ele, ainda que o projeto tenha objetivos nobres e corretos, transformá-lo em lei seria um erro estratégico.

Diferente da Veja, e de outros colunistas, comentaristas e veículos tradicionais da mídia burguesa, sempre muito habilidosos em escamotear seus reais interesses, Olavo de Carvalho expõe com clareza suas diferenças com o projeto.

“Vocês vão perder, e se ganharem vão gerar ódio, não só contra vocês, mas um ódio injusto contra Bolsonaro” é o recado do ideólogo aos seus seguidores. A lógica que apresenta para fundamentar sua profecia pode ajudar a explicar a resistência de setores burgueses ao projeto.

O que Olavo não esconde é a explosividade que o projeto pode ter. Ele teme que sua aprovação ganhe repercussão negativa e afete Bolsonaro. Por isso, seu caminho preferido é que o Escola Sem Partido continue atuando como um movimento de perseguição e assédio a partir da sociedade civil e não do Estado. Ele propõe a conquista anterior de apoio social, para depois alçar-se para as esferas políticas e jurídicas. Assim, uma ação que tem um potencial para provocar fortes reações da sociedade não afetaria diretamente os planos ultraneoliberais do governo Bolsonaro, e poderia seguir disseminando suas práticas persecutórias.

Olavo não foi ungido por um espírito democrático ou liberal de princípios. Segue sendo um ardente defensor da ditadura militar e de regimes totalitários. O que teme é a reação dos professores e estudantes, com o apoio da sociedade e de demais setores da classe trabalhadora.

Talvez seja esse o norte da Veja, do Todos Pela Educação, do Instituto Ayrton Senna e de parte dos empresários da educação. Claudia Cosin, por exemplo, ex-Banco Mundial e defensora de que Mozart fosse o ministro indicado, reagiu forte ao veto de seu preferido ao ministério declarando que “não somos uma teocracia, um nome não pode ser vetado pela bancada religiosa”.

Todos acontecimentos ainda são recentes e ainda é cedo para apontar qual será a postura de Ricado Vélez Rodrigues sobre o “Escola Sem Partido”. Fato é que seu nome parece ser daqueles que sinaliza para os dois campos que disputam os rumos do MEC.  O que é certo é que suas ações serão determinadas por uma correlação de forças que ainda estamos por ver. O Escola Sem Partido, como movimento ou como lei, entrará como parte desse cálculo.

Saídas intermediárias ainda podem aparecer no horizonte de Vélez Rodrigues. Ele já defendeu a criação de comitês de ética para apurar os casos de “doutrinação”. Isso teria na prática o efeito do “Escola Sem Partido”, com o benefício de não parecer uma medida tão autoritária e de não precisar ser aprovada no legislativo.

Os silêncios

Mas para compreender a dinâmica das possibilidades de aprovação ou não do projeto é necessário olhar para outras forças.

Retomando a metáfora musical, o silêncio é um componente muito importante sem o qual não existiria o som, as notas, o compasso e as melodias. É ele que determina as rupturas, continuidades, ritmos e tempos. Ao contrário de ser um elemento de ausência, ele é um determinante do conjunto da obra.

O adiamento do STF do julgamento de uma ação que questiona o “Escola Livre” (projeto semelhante ao “Escola Sem Partido”) aprovado pela Assembleia Legislativa de Alagoas é o silêncio dessa reacionária sinfonia. Dias Toffoli, presidente do supremo, já anunciou que adiará o julgamento da ação, sem nova data de apreciação.

Essa decisão foi o silêncio que ensurdeceu aqueles que depositavam sua fé que um veto no supremo poderia atrapalhar ou impedir a votação do “Escola Sem Partido” no legislativo. Mais uma vez, o STF demonstrou sua vocação em cooperar com os planos de Bolsonaro e do golpismo. O adiamento forneceu o tempo para que o governo possa organizar e articular suas forças internas, como também decidir o melhor momento para sua aprovação, se necessário.

Ainda estamos por ver se o bonapartismo da toga poderá utilizar do veto ao projeto “Escola Sem Partido” – ou de parte dele – para posar como democrático, e defensor da constituição, ou se seguirá fazendo vistas grossas enquanto ele corre no legislativo. No segundo cenário, que é o que está em curso, é indubitável a imensa influência que terá para decisão dos ministros a apreciação ser post festum da sua tramitação no Congresso e no Senado.

Visto todos esses atores e movimentações, agora é importante ver o que os unifica. A aplicação das grandes reformas econômicas, como a educacional e da previdência, é o diapasão e o metrônomo para equacionar as vozes dos fatores de poder em relação ao “Escola Sem Partido”. Ainda que seja um equívoco ver sua aprovação apenas como um meio para a aprovação das reformas econômicas, é inegável que serão elas a coroar o conjunto da obra.

Os partidos que declaram-se oposição a Bolsonaro, em especial o PT e o PSOL, atuam com a estratégia de protelar a tramitação do legislativo, esperando passivamente o veto do reacionário STF. Daniel Cara, que foi candidato ao senado pelo PSOL e é coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, vinha depositando todas as suas fichas de que o STF seria a tábua de salvação para barrar o “Escola Sem Partido”.

Luiz Carlos de Freitas, sem dúvida um importante intelectual da educação no país, vai direito ao ponto sem rodeios. Em texto publicado em seu blog, Avaliação Educacional, após uma interessante exposição sobre o quadro atual ele diz “O lado contraditório é que este ultraliberalismo conservador poderá permitir uma frente ampla na educação com apoio até de liberais e social-democratas, quem sabe?”

O que essa análise não consegue responder é porque a Mozart Ramos não rechaçou, de pronto, a aproximação de Bolsonaro. Não há absolutamente nenhum indício que nos leve a crer que ele não teria composto o governo de Bolsonaro se este tivesse o confirmado para o ministério. A crítica de Claudia Costin contra os elementos teocráticos na escolha do ministro da educação, não nos parece uma crítica contra os rumos do futuro governo em si, mas contra o fato de Bolsonaro ter preterido um de seus representantes. Embora não sejam idênticos, esse processo mostrou que não há uma contradição irreconciliável entre os reformadores empresariais e o ultradireitista Jair Bolsonaro, pelo menos do que depender desses reformadores.

Assim, a fé cega de que existam liberais e sociais-democratas aos quais possamos nos aliar não é um deletério. É uma estratégia. Ela se materializa na frente ampla, na qual cabem todos os golpistas, levada pelo PT, que conta com uma cobertura do PSOL, e só nos conduzirá a novas derrotas.

Essa é a estratégia do PT, que novamente desaba frente aos movimentos da extrema direita. Seus sindicatos, entre eles a grande maioria dos sindicatos da educação, permanecem inativos, e paralisados por essa estratégia institucional e parlamentar. O PT crê mais no “espírito democrático” dos golpistas do STF, do que na força dos professores e da classe trabalhadora em movimento. Eis aqui o grande segundo silêncio dessa sinfonia horrenda, que esteriliza e amortece as forças que poderiam construir uma nova composição, radicalmente diferente da que vemos agora.

Enquanto Olavo de Carvalho tem medo do ódio que pode desabrochar contra Bolsonaro, o PT teme que o ódio lhe tire o controle da direção das massas. 2022 é o som que mais agrada o ouvido das direções petistas, mesmo que todos os nossos direitos sumam sob a batuta desse novo regime, seja lá quem estiver sob seu controle.

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