Regime em ponto de mutação?

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imagem: Juan Chirioca 

 

Por Edison Urbano

 

Uma eleição polarizada e seus símbolos

 

O político de extrema direita, alvejado por uma facada de autoria conhecida e origem controversa, em meio a uma pequena multidão de seguidores tipo “machões” de torcida organizada. Mais de dois milhões de mulheres, organizadas espontaneamente pelas redes sociais, sem lideranças claras nem filiação partidária, todas contra Bolsonaro. Um líder popular preso arbitrariamente, e que apesar de estar em posição de ganhar a eleição em primeiro turno decide, da cadeia, passar finalmente o bastão para um representante ainda pouco popular.

A polarização Lula x Bolsonaro, mostra que a opinião pública está “se lixando” para os formadores de opinião tradicionais; outra forma de perceber o alcance da crise orgânica, nesse caso a crise dos mecanismos tradicionais de hegemonia da classe dominante.

Ao mesmo tempo, a polarização é assimétrica: apenas pela direita é que ela tem um claro discurso de “ruptura”. No polo “esquerdo”, representando de algum modo ainda por Lula, o discurso é de continuidade, e mais até, de “retorno” pura e simplesmente.

Vivemos portanto a tensão entre, de um lado, a crise orgânica e um regime de 88 em ruínas; e do outro, a tentativa eventual de um último suspiro de estabilização senil, caso Haddad consiga armar um grande pacto burguês que seja ao menos uma “trégua” às tendências centrífugas.

 

As massas moldam os regimes políticos, de forma consciente ou não

 

Já foi dito por um cientista político inteligente que o clima político imperante ao longo dos anos 80 -e que nós definimos como um prolongamento “popular” e policlassista do ascenso operário iniciado em 1978- já foi dito que tal clima político impôs uma esquerdização no discurso político dos atores fundamentais do regime que emergia enfim da transição “lenta e gradual”: a direita conservadora teve de se apresentar como liberalismo (PFL), os liberais burgueses como social-democracia (PSDB), e os conciliadores social-democratas como um partido de classe, o PT. (Enquanto o PMDB, do “movimento democrático” na sigla, se convertia definitivamente em partido fisiológico do interior, alguém poderia talvez acrescentar).

De fato, o pacto de transição que se materializou na Constituição de 88 e que deu o tom dos governos fortes do atual regime, FHC e Lula, mostram que o regime político e econômico no Brasil de fato respondeu a uma solução de compromisso. Daí que nem sob FHC tenha havido um entreguismo neoliberal puro e simples (a la Menem, para dar um exemplo), assim como sob Lula e o PT nenhuma reforma estrutural foi feita.

Esse é o regime que, no contexto da crise capitalista mundial de 2008, foi ferido de morte em Junho de 2013, com suas mobilizações de juventude contra tudo e contra todos, e que a direita se adiantou a explorar de forma hábil.

Fenômenos como o partido Novo de João Amoedo são reveladores a esse respeito, tanto quanto o mais barulhento Bolsonaro e sua corja de seguidores. O que significa a reconversão da alta classe média não-fascista a Amoedo, revelada pelas pesquisas eleitorais mais detalhadas, e seu movimento de abandono de Alckmin e do tucanato? É justamente seu desejo de um liberalismo direto e aberto, sem mais verniz social-democrata.

A divisão nesse setor de classe entre Amoedo e Bolsonaro-Guedes mostra que o programa para eles é um só e claríssimo, uma adesão total ao ultraliberalismo: privatização de tudo e mais um pouco, fim dos direitos e da própria Justiça trabalhista, entrega das riquezas nacionais, rebaixamento geral dos salários e, superexploração, etc. Nesse setor de classe, a dúvida atual é apenas sobre o grau de violência física necessário para impô-lo.

Tudo isso são mais outros tantos demonstrativos de que não existe mais o regime de 88, ou para usar a expressão preferida de um velho revolucionário, são expressões de que o regime atual sobrevive a si mesmo.

 

O paradoxo da Constituição de 88

As recentes declarações de Jair Bolsonaro no Jornal Nacional, quando expressou claramente seu temor a uma nova Assembleia Nacional Constituinte, dizendo que “é o caos” e “nunca se sabe no que vai dar”. E de Mourão, ao defender uma nova Constituição elaborada sem interferência popular, por “notáveis” usurpadores. Mostram claramente quem é que teme o poder constituinte das massas, e quem se beneficia dos poderes constituídos ou busca “reformá-los” apenas pelo alto, em sentido reacionário.

No entanto, apenas a esquerda revolucionária defende firmemente a imposição pela luta de uma nova Constituinte, livre e soberana. É que a relação da esquerda tradicional brasileira com a Constituição em vigor é paradoxal. Tudo se passa como se a Constituição fosse a filha legítima de um grande processo de união popular de todas as classes e setores democráticos e progressistas contra a ditadura,  processo capaz de garantir uma Constituição “cidadã”, progressista, “social”… Mas essa lenda não corresponde sequer à superfície dos fatos. Como já mostramos em outro lugar recorrendo ao depoimento do insuspeito Florestan Fernandes, a Constituinte, dominada pelo “Centrão” ultraconservador, tutelada pelos militares e operada à sombra do Executivo de Sarney, foi no melhor dos casos uma solução de compromisso, para não dizer um simples engodo.

Um dos dispositivos inseridos na Constituição, de forma violenta inclusive -numa história até hoje pouco conhecida, mas que não nos cabe aqui contar-, e que está em evidência atualmente, é o famoso artigo 142 invocado volta e meia pelo general Mourão.

De todo modo, a inclusão de tal dispositivo, com relação aos militares, é um retrato em miniatura do que ocorreu no processo da constituinte em seu conjunto.

O mesmo retorno triunfante do atraso histórico, em meio ao teatro pseudo-democrático da Constituinte, pode ser observado na legislação que restringe o direito de greve, impede uma verdadeira reforma agrária e reafirma a tutela do Estado sobre as organizações sindicais, etc: tudo em nome do caráter sacrossanto da propriedade capitalista.

Mas assim como a transição pós-ditadura se fez para preservar sem punição os militares, mas em compensação os remeteu de volta às sombras (daí o seu caráter de “compromisso”), do mesmo modo a Constituição inscreveu uma série de “pequenas direitos”, para o  povo trabalhador, apoiada nos pilares fundamentais da estrutura social brasileira e sua desigualdade. Em benefício de interesses de classe bem definidos: da alta burguesia financeira, bancária, industrial e latifundiária.

Qual é então paradoxo? É que bastou pouco tempo para que a narrativa se invertesse, e desde então foi a esquerda tradicional, em primeiro lugar o PT, que se arvorou na posição de guardiã dessa Constituição, erguida post factum ao patamar de “máximo avanço” democrático-social possível. E a direita conservadora e liberal, vitoriosa em desviar a energia das massas para aquele pacto muito pouco “popular”, fez o que as classes dominantes de todos os tempos sempre fazem: se voltou contra os termos do pacto, fustigando-o como sendo demasiado concessivo, etc.

 

Uma renovação do velho pacto pela mão de Haddad?

Naufragada de vez, ao que tudo indica, a candidatura de Alckmin, restaria a Haddad a última chance de reviver o regime moribundo e seu sistema particular de pactos e compromissos. De imediato, Haddad foi ungido como “figura” do Lula deposto, do Lula preso e perseguido… Mas daí em diante, já não poderá se limitar a ser isso. Irá, sem dúvida, manter ao máximo aquele imagem frente às massas, a que mais lhe garante o voto fiel lulista. Porém para de fato vencer, e sobretudo para governar, terá que encontrar seu próprio caminho de conciliação.

Em seu livro sobre o lulismo em crise, Singer nos oferece um intermezzo histórico que é altamente ilustrativo da sua tese central: por trás do aparente emaranhado caótico de siglas e partidos, existe uma a racionalidade política no sistema partidário brasileiro. O atual sistema partidário em seus pilares seria uma reedição do velho arranjo que operou entre 1945 e 1964. Um partido da classe média, liberal e pró-imperialista, um partido “popular“, e um partido do interior. O regime da UDN, PTB e PSD, trocado por PSDB, PT e MDB.

Singer avança a tese de que existiria a tendência a um “realinhamento eleitoral”: a experiência democrática das massas levaria a que, sendo as massas populares urbanas a maioria da população, uma vez compreendido o sistema e reconhecido o partido que as representa melhor, não haveria espaço para que o “partido de classe média” (UDN/PSDB) triunfasse por meios eleitorais. Lançar mão de meios antidemocráticos seria o único caminho que lhe resta para retornar ao poder central, seja como tal então pela solução de força direta, seja pelos artifícios do golpismo institucional e arbítrio judiciário atualmente em curso.

Análise sumamente interessante, que remete de outra forma às incógnitas sobre como reagiriam os fatores reais de poder do regime frente a uma eventual vitória do PT, ou inclusive qual o nível de manipulação e fraude de que podem lançar mão para evitá-la.

De outro lado, o defeito fundamental da análise de Singer é que, útil como é para explicar o funcionamento “normal” do regime em seus momentos de evolução linear, deixa na sombra a análise ainda mais importante dos momentos de quebra da história.

E é justamente na iminência de um desses momentos que nos encontramos agora.

 

Existe lugar para o PT nesse novo regime pós-88?

Essa é a questão fundamental do ponto de vista do sistema político brasileiro.

Existe uma lógica própria em toda polarização política. De fato, enquanto vigorou o regime de 88, PT e PSDB se configuraram como as “duas cabeças”, politicamente alternantes, do equilíbrio entre precária social-democracia (periférica) e neoliberalismo light.

Agora, diante do abismo, podem os dois se unir num novo pacto para preservar o regime dos quais foram a cabeça duplicada? Os acenos de lado a lado entre um tucano como Tasso Jereissati, ao aceitar como um erro a adesão de seu partido ao golpe de Temer; e as afirmações de referências petistas, de forma aberta ou reservada, de que uma “frente popular” contra Bolsonaro deveria incluir não só o PT e Ciro (cuja especificidade não poderemos tratar aqui), mas em particular teria que incluir o PSDB, sugerem que o plano está sendo ao menos tentado. Sobretudo a aproximação de Haddad ao chamado mercado, na figura de bom gestor e de “conservador fiscal”, é o principal elemento apontando nessa direção.

O lugar de Lula numa transição desse tipo seria apenas um dos grandes problemas, mas nem por isso é menos difícil de resolver.

A polarização atual Bolsonaro vs Lula é já uma polarização pós-88, assim como em termos políticos, e invertendo a cronologia, a polarização Lula vs Collor foi a última polarização pré-88. Ali ainda estava em jogo, em algum sentido, a polarização entre a ditadura, encarnada na figura midiática de um filho autêntico do coronelismo mais rançoso das Alagoas (que nem por isso deixou de dialogar à sua maneira com os anseios pós-ditadura, é claro), e o ascenso democrático das massas, sintomaticamente encarnado no líder operário e sindical. A eleição foi em 1989, mas o regime de 88 ainda não existia enquanto tal.

Nesse sentido a eleição atual se situa em um “não-lugar” entre a última de um regime em frangalhos, ou a primeira do pós-88. Um regime político em ponto de mutação, sintoma de uma sociedade em crise e prenhe de grandes conflitos sociais, luta de classes aberta.

Com a peculiaridade de que o Lula preso e guru de um semi-desconhecido e pouco “popular” Haddad, é a figura fantasmática do grande ausente, ou seja, do polo radical de esquerda pós-88, que cumpre construir em ritmo acelerado. Não só como contraponto da nova direita, mas como superação de toda a estrutura social que ela veio para tentar perpetuar com novos métodos. O que incluiria apresentar desde já um programa alternativo ao da direita liberal em todas as suas vertentes, um programa anti-imperialista e baseado na classe trabalhadora, em aliança com todos os oprimidos.

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