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MÚSICA | Música erudita e popular ou apenas música?

Esse tema é bastante complexo e o presente artigo pretende abrir o debate a respeito das misturas que aparecem na música tendo como foco algumas expressões que de alguma maneira se utilizam de elementos populares e eruditos ou questionam essas divisões

segunda-feira 19 de outubro de 2015 | 22:22

Foto: Lawrence/Migdoll - Recriação da Sagração da Primavera, 1989, por Robert Joffrey Ballet Company

Esse tema é bastante complexo e o presente artigo pretende abrir o debate a respeito das misturas que aparecem na música tendo como foco algumas expressões que de alguma maneira se utilizam de elementos populares e eruditos ou questionam essas divisões.

As diferenciações entre o erudito e o popular na música são perigosas e servem a propósitos bem definidos. A classe dominante diferencia, sobretudo, a fim de menosprezar as produções artísticas realizadas pela classe trabalhadora e pelo povo pobre. Para os marxistas, as produções culturais assim como todos os processos sociais são entendidas como produções históricas e tudo o que já foi produzido é analisado de forma dialética, ou seja, não se descarta nada do que veio antes mas se aproveita o que é justo e progressivo, criticando o que é injusto, atrasado, equivocado.

A defesa da total liberdade na arte e seu caráter internacionalista também devem ser premissas básicas para uma produção revolucionária e de emancipação da humanidade. Para saber mais sobre esse debate acesse aqui.

Desde o modernismo dos anos 1920, passando pela a bossa-nova dos anos 1950, pelo tropicalismo dos anos 1960, pelos os anos de neoliberalismo dos anos 1990 e tantos outros períodos e movimentos paralelos, temos exemplos de embates que alteraram substancialmente a prática musical brasileira. Desde Heitor Villa-Lobos, Mario de Andrade, Chiquinha Gonzaga, João Gilberto, Baden Powell, Vinícius de Morais, Noel Rosa, Tropicália, Mutantes, Secos e Molhados, Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Arrigo Barnabé, Naná Vasconcelos, Tom Zé, Itamar Assumpção, Isca de polícia, Mangue Beat e outros, a mistura do erudito com o popular e outras divisões como a do regional ou tradicional com o “moderno”, de ritmos nacionais com estrangeiros, do analógico com o digital, etc. aparecem de alguma maneira. Outro exemplo importante dessa forma ampla de entender a música é o Jazz nascido nos bairros operários dos EUA que demonstra toda uma época de luta por direitos e de afirmação cultural dos negros naquele país, tendo reflexos importantes na música.

Pois bem, o que temos aqui é menos um panorama geral da música brasileira e mais esse fenômeno de resistência da música e o que ele tem de frutífero para a produção livre e independente. São indícios de processos sociais, reflexos da luta de classes, exemplos de resistência cultural em relação ao capitalismo e de emancipação da prática artística. Esses fenômenos de resistência referem-se também a necessidade de associação livre entre os seres humanos tendo como fim a própria sociedade e a fraternidade humana, o que é sistematicamente cerceada pela exploração e opressão capitalistas. Pois como já disse Trotsky em Literatura e Revolução:

“Não é preciso demonstrar que a separação da arte dos outros aspectos da vida social resulta da estrutura de classe da sociedade. Sua auto-suficiência, como se ela se bastasse a si mesma, constitui o reverso da medalha: a transformação da arte em propriedade das classes privilegiadas. A evolução da arte, no fundo, seguirá o caminho de uma crescente fusão com a vida, isto é, com a produção, as festividades populares e a vida coletiva”¹.

Disto deriva-se também o fato de que muitos músicos consagrados, não apenas no Brasil mas também em outros países, possuíram no decorrer de suas trajetórias condições materiais importantes para se dedicarem à música. Como por exemplo, ter origem em famílias de músicos, boas condições financeiras, ambientes propícios para a prática, ou seja, situações diversas que proporcionaram o acesso à prática musical. Por isso, também é necessário pensar o acesso à música no que se refere tanto a apreciação quanto à prática.

Quando a cultura popular em formato erudito é apresentada à burguesia

Pra ficar em um só exemplo anterior e que possui em si a questão que move essa análise, citaria Stranvisnky e sua pesquisa sobre a música popular no interior da Rússia que gerou a peça “A Sagração da Primavera”. Em 1913, no teatro Champs-Élysées em Paris (França), esse compositor erudito, digamos assim, juntamente com o Balé Russo de Serguei Diághilev e com coreografia de Nijinsky levaram para o palco burguês a cultura popular russa em linguagem erudita e mesmo assim foram recebidos quase que a pedradas pela platéia.

O artista francês Jean Cocteau assim descreveu a plateia em questão:

“Uma plateia da alta sociedade, elegante, de vestidos decotados, pérolas, penas na cabeça, plumas de avestruz, ternos escuros, cartolas […] ao lado, os intelectuais estetas faziam de tudo para demonstrar seu ódio a estes “elegantes”, que sentariam nos camarotes […] havia ali mil nuances de esnobismo, superesnobismo e contraesnobismo.”²

Não aceitaram sua música e por tanto se instalou uma verdadeira guerra durante a apresentação. Ficou evidente que naquele tipo de ambiente não coube a referência à cultura popular russa ou pelo menos não sem antes convencer a “alta sociedade” de que aquilo é inofensivo ou no mínimo justificado em termos estéticos. Muitos artistas, escritores, e intelectuais conhecidos estavam no teatro Champs-Élysées nesse dia. Entre eles, o já citado Jean Cocteau, Pablo Picasso, Gertrude Stein, Marcel Proust e outros.

É possível assistir a reconstituição dessa cena emblemática no filme Coco Chanel e Igor Stravinsky, no documentário da BBC de Londres intitulado Riot at the Rite. Ou então a versão contemporânea de Pina Bausch.

Outro ponto importante dessa apresentação é a transformação que Stravinsky propõe à música colocando ritmos e melodias diferentes dialogando entre si, o que pra época não era comum. Assim como a coreografia de Nijinsky que subverte o balé clássico com movimentos repetitivos e considerados como “bestiais” ou mesmo as roupas desenhadas por Nicholas Roerich que era o oposto do figurino utilizado até então. Mas isso daria outro artigo mais específico.

Podemos entender esse acontecimento como uma importante referência para a arte e para os artistas que contestavam as divisões-subdivisões na arte e consequentemente de que os interesses antagônicos entre as classes sociais também se faz visível na música. Ou seja, se existe uma música que é aceita e outra não, existem critérios para isso. Quais são eles? Quem os define? As provocações “modernistas”, que abrangiam um leque amplo de tendências ideológicas, estavam em seu início.

No Brasil temos exemplos semelhantes com os modernistas nos anos 1920 que trouxeram novas linguagens e foram recebidos com muita dificuldade pelos conservadores da época. O conceito de antropofagia surgido em 1928, por exemplo, trouxe a crítica da dependência cultural brasileira e gerou diversos debates inclusive sobre o popular e o erudito.

Ou ainda com o movimento tropicalista do final dos anos 1960 que causou convulsões importantes no período contra a ditadura militar e a elite conservadora trazendo mudanças para a Música Popular Brasileira (MPB).

Nos Anos 1990 o Mangue beat (com Chico Science, Nação zumbi, Fred Zero Quatro, Mundo Livre S/A, e outros) gerou conflitos com a cultura nordestina, pois introduziu a guitarra elétrica e o hip hop nas músicas regionais, sobretudo no maracatu. Em 1995, Ariano Suassuna quando secretário de cultura de Pernambuco chegou a afirmar que Chico Science em vez de apoiar, prejudicava a cultura popular.

Os exemplos citados até aqui possuem nomes, termos, teorias, concepções e diversas análises, mas o que se mantem de estrutural é esse campo de disputas estéticas e políticas da música. Em alguns casos trazem também indícios de rompimento com os códigos e linguagens alienantes do capitalismo demonstrando que fazer música também é política, pois ninguém escolhe aleatoriamente esse ou aquele compositor ou essa ou aquela referência.

Tudo passa por um momento de decisão a partir do que se tem acesso, do que se pretende e, sobretudo, a partir da vida coletiva, pois criação musical também é fruto da produção humana no decorrer da história. (leia também: Festa do Boi: entrevista com Tião Carvalho)

¹TROTSKY, Leon. Literatura e Revolução. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2007
²Disponível em: http://racismoambiental.net.br/2013/06/02/ Acesso em: 17 out 2015.


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