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Golpe no Níger | África convulsionada na disputa entre potências

Neste artigo, Claudia Cinatti aborda um ponto nodal da atual conjuntura internacional: o recente golpe de estado no Níger e as tendências convulsivas que atravessam o continente africano. Um cenário marcado pelo declínio da hegemonia estadunidense, retração do imperialismo francês na região e potências que disputam uma crescente gravitação como China e Rússia.

Claudia CinattiBuenos Aires | @ClaudiaCinatti

terça-feira 8 de agosto de 2023 | Edição do dia

O golpe no Níger abriu uma situação explosiva na África com repercussão internacional. Em 26 de julho, poucos dias antes do 63º aniversário de sua independência formal da França, membros da guarda presidencial, liderados pelo general A. Tiani, cercaram o palácio do governo e prenderam o presidente Mohamed Bazoum. Com o passar das horas, o putsch tornou-se um golpe completo. Após receber o apoio majoritário das Forças Armadas, o próprio general Tiani anunciou em mensagem televisionada que estava assumindo o governo do país.

As ruas de Niamey, capital do empobrecido país africano, encheram-se de manifestantes a favor do golpe, muitos portando cartazes manuscritos contra a presença neocolonial francesa (“La France Doit Partir”, o mais visto ); a embaixada francesa foi atacada. Algumas bandeiras russas também foram vistas, o que não significa necessariamente que a Rússia esteja por trás do golpe, mas sim expressa à sua maneira o lugar simbólico que o bloco russo/chinês passou a ocupar como “alternativa” às potências ocidentais.

A queda de Bazoum foi mais um golpe nas diminuídas pretensões imperiais da França. Enquanto o Presidente Emmanuel Macron assegurava desde Paris que “não ia tolerar nenhum ataque contra a França e os seus interesses”, preparava às pressas a evacuação de pouco mais de 500 franceses da capital nigerina, cuja segurança já não podia garantir.

Para além da sua dimensão geopolítica e militar, a mudança de signo no Níger tem um forte impacto económico. Uma porcentagem significativa do urânio que o Níger produz permite que os franceses acendam suas luzes e liguem seus aparelhos elétricos. Se a França fosse privada desse insumo, a produção de energia nuclear, principal fonte de energia do país francês, estaria em perigo.

Até o dia anterior ao golpe, o Níger era uma peça-chave da estratégia franco-americana para a África. Governado por um aliado ocidental, era visto como um fator de relativa estabilidade em uma região profundamente instável, e um baluarte na “guerra ao terrorismo”, particularmente após a intervenção da OTAN na Líbia e sua transformação em um estado falido. A França tem cerca de 1.500 soldados estacionados, a maioria deslocados do Mali após sua humilhante expulsão no ano passado. E o Pentágono ainda tem cerca de 1.000 soldados no país e duas bases – uma importantíssima de onde são lançados ataques de drones contra franquias da Al Qaeda, o Estado Islâmico e outras milícias, como o Boko Haram, que ficou famoso por ter sequestrado centenas de meninas de uma escola na Nigéria.

Além disso, Bazoum estava colaborando estreitamente com os esforços da França e da UE para conter as ondas de migrantes, bloqueando seu acesso aos países do norte da África, de onde grupos mafiosos organizam o tráfico de pessoas para o Mediterrâneo. Por esta razão, a perda deste aliado repercute para além da África Ocidental e obriga a um recálculo da estratégia imperialista.

Em uma reviravolta copernicana, o Níger se tornou o novo elo de uma cadeia de golpes que abalou a região do Sahel, a uma taxa de sete nos últimos três anos. Tornou-se parte do chamado “corredor golpista” – uma faixa transversal de 5.500 km – que se estende da Guiné, na costa oeste, ao Sudão, na outra ponta, passando por Mali, Burkina Faso e Chade.

O que é indiscutível é que a África entrou plenamente na disputa estratégica entre, de um lado, o bloco “ocidental” liderado pelos Estados Unidos e formado pela UE/OTAN e seus aliados; e, de outro, uma aliança informal entre a Rússia e a China, cujo principal teatro de operações é a guerra na Ucrânia. Neste rio conturbado de rivalidades e alianças mutáveis, outras potências menores, como a Turquia, também estão fazendo seu jogo.

Esse realinhamento geopolítico se expressa na inflamada retórica antifrancesa (e antiocidental) dos governos que emergiram desses golpes, e sua passagem para a órbita da Rússia e da China, que com menos estridência que a Rússia, tornou-se o principal centro comercial sócio - e em alguns casos credor - desses países.

O golpe no Níger ocorreu simultaneamente com a cúpula Rússia-África realizada em São Petersburgo. Embora tenha sido menos movimentado do que sua versão anterior em 2019, em parte pelo protesto à política da Rússia de se retirar do acordo de exportação de grãos, mostrou apoio significativo à Rússia no quadro da política de isolamento promovida pelos Estados Unidos e pelas potências ocidentais após a invasão da Ucrânia. E serviu de palco para Putin usar as armas de sedução da Rússia: entre outras coisas, prometeu enviar até 50 mil toneladas de grãos gratuitamente para Burkina Faso, Zimbábue, Mali, Somália, República Centro-Africana e Eritréia.

As relações amistosas com a Rússia também ocorrem por meio de canais paraestatais. A milícia privada Wagner, comandada pelo oligarca E. Prigozhin, provou ser um instrumento relativamente barato e eficiente para estender a influência russa na África, com presença no Mali, na República Centro-Africana e em outros países onde presta serviços de “segurança” em troca de suculentos negócios de exploração mineira.

A situação é fluida e ainda não está claro se o golpe vai acabar se consolidando, então qualquer hipótese é necessariamente provisória.

O golpe expôs a formação de dois blocos no continente africano. Por um lado, a Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO), uma coligação de 15 países atualmente presidida pela Nigéria e aliada às potências ocidentais, impôs de imediato duras sanções económicas ao Níger, cortou o fornecimento de energia, fechou temporariamente as fronteiras e deu à junta militar um ultimato para restabelecer Bazoum no governo, caso contrário ela ameaça intensificar as represálias, incluindo a possibilidade de intervenção militar. O outro bloco, formado por Mali, Burkina Faso e Guiné, se pronunciou a favor do golpe no Níger e declarou que qualquer intervenção naquele país seria interpretada como uma "declaração de guerra".

Pode ser que a ameaça de intervenção funcione como um recurso de pressão, juntamente com as sanções e a suspensão do auxílio financeiro. No entanto, a dinâmica dos acontecimentos faz com que uma possível ação militar não seja descartada. O pano de fundo histórico são as intervenções na Libéria e Serra Leoa. De fato, alguns países como o Benin já anunciaram sua disposição de contribuir com tropas. A CEDEAO conta com o apoio dos Estados Unidos e da França (e da UE) e, portanto, serve como um vetor de interferência imperialista e um possível “proxy” para as potências ocidentais em uma hipotética guerra intra-africana.

Revolta anticolonial?

Tanto como colônia francesa quanto após sua independência em 1960, o Níger foi submetido a uma situação de extrema pobreza, dependência e pilhagem. É um dos países mais pobres com uma das maiores taxas de natalidade do mundo. Seus indicadores sociais são alarmantes: 41% de seus 25 milhões de habitantes vivem em situação de pobreza absoluta, apenas 11% têm acesso a serviços básicos de saúde e ainda estima-se que 7% estejam submetidos a condições de escravidão. A crise climática – com secas e desertificação das terras – castiga a agricultura familiar, meio de sobrevivência de cerca de 80% da população.

Mas essa miséria contrasta com o fato de o Níger ser o sétimo maior produtor mundial de urânio, além de produzir ouro e petróleo. A pilhagem imperialista significa que não resta uma única moeda de toda essa riqueza. A maioria das minas de urânio é controlada por corporações imperialistas, lideradas pela francesa Orano.

O que o Níger e mais geralmente os golpes com a retórica anti-francesa mostram é a profunda rejeição da ingerência e da opressão neocolonial que continuou na forma da chamada “Françáfrica” após a independência formal desses países na década de 1960. O papel da França como "gendarme" nas suas ex-colónias africanas, a imposição de elites locais simpáticas aos seus interesses e à sua presença militar, tem estado ao serviço do saque de recursos.

Embora seja uma potência em declínio e a China tenha assumido o lugar de parceiro comercial privilegiado, a França resiste à perda de influência no que antes era seu quintal. Mesmo a moeda da Comunidade Financeira Africana, atrelada ao franco francês e agora ao euro, que ainda é usada por 14 países africanos, persiste como resquícios coloniais.

A relação entre a miséria estrutural destes países saqueados com o passado e o presente neocolonial explica o profundo sentimento anti-francês que atravessa a África, sobretudo entre as gerações mais jovens. Por isso, embora os golpes não sejam "anticoloniais" (e muito menos "anti-imperialistas"), mas em grande parte motivados por disputas entre camarilhas pelo controle do aparato militar-estatal, eles tentam construir sua legitimidade ao incitar a retórica anti-francesa e mudança de lealdade para a China e a Rússia.

Quem melhor expressou essa política foi o capitão Ibrahim Traoré, atual líder do governo interino de Burkina Faso após o golpe. Na cúpula de São Petersburgo, Traoré invocou a memória de Thomas Sankara, líder da luta anticolonial e referência do pan-africanismo. Em seu discurso, ele saudou a chegada de uma "ordem multipolar" e a aliança com "verdadeiros amigos" como a Rússia.

O declínio hegemônico dos Estados Unidos e o surgimento de potências como China e Rússia que propõem uma “ordem multipolar” como alternativa se acelerou com a guerra na Ucrânia. Esta é a base de posições “campistas” que consideram que para se opor ao domínio imperialista dos Estados Unidos e da UE é necessário alinhar-se com a China e a Rússia. Mas este é um bloco capitalista igualmente reacionário que persegue seus interesses imperiais. Enquanto as potências ocidentais escondem seus objetivos imperialistas com a “defesa da democracia”, Putin usa a retórica “anti-colonial” para aumentar sua influência geopolítica em benefício do capitalismo russo. Mas tanto a Rússia quanto a China buscam saquear os recursos estratégicos da África, mesmo no caso da China impor condições leoninas como principal credor de muitos países africanos. No sentido inverso dos interesses dos trabalhadores, dos camponeses e dos povos oprimidos da África e do mundo.

O artigo original pode ser encontrado aqui.




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