Theotônio dos Santos: Está claro que o mundo não está mais de acordo com a hegemonia norte-americana

0

IDEIAS DE ESQUERDA

Número 1, maio 2017

 

Theotônio dos Santos é um dos nomes mais significativos para o desenvolvimento do pensamento social brasileiro, por conta da teoria da dependência. Formulada na década de 1970 a teoria da dependência estabelecia, grosso modo, uma polêmica com as tendências desenvolvidas pela CEPAL, e realizaria uma análise crítica à submissão da América Latina aos países centrais, em especial aos Estados Unidos. Posteriormente, Theotônio dos Santos integrou a corrente teórica conhecida como “sistema-mundo”, inspirada na sociologia histórica de Braudel, e que reúne autores no plano internacional como Immanuel Wallerstein e Giovanni Arrighi.  A revista Ideias de Esquerda conversou com Theotônio dos Santos sobre suas opiniões acerca das transformações políticas internacionais, e a situação nacional após o golpe institucional de 2015.

Veja a entrevista na íntegra a seguir, realizada por Simone Ishibashi e Renato Ferraz em abril de 2017.

IdE: Na sua opinião quais foram os momentos mais cruciais para sua trajetória intelectual?

Minha trajetória intelectual está muito ligada à minha trajetória política. Na década de 1960 estávamos diante de um importante movimento social no Brasil, e portanto a discussão teórica tinha que ser muito clara. Havia muitas questões, como qual é a relação entre reforma e revolução, quais os objetivos estratégicos deveríamos ter para responder à situação que estava aberta. E isso não era só no Brasil, as transformações internacionais eram muito importantes e exigiam uma explicação. Até o golpe de 1964 exigiu esse esforço, pois se tratava de uma retomada do poder do latifúndio, das forças conservadoras do país, um avanço do grande capital mundial sobre o país. E partimos então de um estudo maior sobre esse tema, que nos levou para o desenvolvimento de uma teoria que buscava explicar a formação do capitalismo no Brasil como algo que se inseria no marco da dominação do grande capital internacional. A nossa posição com a teoria da dependência era que o desenvolvimento brasileiro e sua inserção no sistema mundial sempre foi subordinado e dependente, e isso explicava o atraso. E isso exigia um campo teórico para debater. Eu estive dois anos clandestino, e estava à frente da POLOP criada por nós, gente jovem que opinava que a esquerda não estava dando respostas. Mas não pude seguir, fui condenado a quinze anos de prisão, e tinha uma filha recém-nascida, minha companheira também era dirigente. Enfim, essa situação me levou a pedir asilo na embaixada do Chile, e lá me encontrei com uma outra situação política que também exigia uma reflexão teórica e analítica aprofundada. E tivemos de condição de avançar através do Centro de Estudos Socioeconômicos do Chile ondem encontramos um ambiente propício para desenvolver as reflexões necessárias. Estávamos diante de um fenômeno importante que foi o apoio norte-americano à democracia cristã como força progressista, e frente a isso o PS se radicalizou. O Rui Mauro Marini também estava lá. E nós seguimos elaborando até que conseguimos algo relativamente novo, que foi uma frente de esquerda dirigida pelo Partido Socialista, PC, e com uma divisão da democracia cristão que apresentava um programa que tinha o socialismo como meta.

Mas era algo diferente do que havia, porque nenhum PS havia se proposto a criar uma economia política organizada de maneira socialista. A nossa frente era relativamente ampla. Os setores radicais se sentiram relativamente confortáveis para atuar pela radicalização dos setores sociais. É interessante ver que desse momento se avançava a articulação das forças anticoloniais. Mas a despeito desse projeto terminamos tendo um golpe de estado. Nós vivemos também um grande debate sobre isso no Chile, mas foi no processo brasileiro que pudemos avançar mais. Então voltando ao Brasil em 1979, nós nos articulamos com a esquerda do brizolismo. Por que não o PT, que estava começando a se organizar? O PT vinha como um desdobramento de uma frente política que tinha alas que nós considerávamos muito conservadoras. E daí o PT tinha como representação uma ala dessas forças.

IdE: E isso tudo impactou na formulação da teoria da dependência dos anos 70?

Era importante dar ao marxismo uma grande atualização, para que ele pudesse responder a essa temática. No caso do Vietnã, foi uma experiência muito importante. Uma derrota do imperialismo com 500 mil homens, contra 180 mil, com a maior superioridade militar do mundo o que não era facilmente previsível. Não se tratava de movimentos dispersos, mas de uma grande luta global. Que colocava em debate não apenas os debates políticos, mas também ideológicos, porque se tratava de buscar uma alternativa mundial, que passava por mudanças muito importantes. As mudanças de hoje seguramente também promoverão mudanças. Também tivemos que pensar sobre as transformações na produção com o avanço tecnológico, que colocou parte da classe trabalhadora industrial em outros setores, como de serviço. Isso tudo nos abriu uma agenda de debates muito ampla. E a ofensiva da direita naquele momento também nos obrigou a trabalhar em condições de desmantelamento dos centros de pesquisa. Eu fui o quarto demitido da UNB. No Chile o golpe militar tomou o nosso centro. Uma das casas em que eu morei e transformei num desses centros, foi tomada e transformada num centro de tortura. Esse choque entre a tentativa de rearticulação de algo novo e a ofensiva do grande capital, do imperialismo, tinha necessidade de repressão e de uma ação contrarrevolucionária profunda, da qual o fascismo era o regime de terror do grande capital. Nós trabalhamos muito isso, porque hoje essa questão está na ordem do dia.

IdE: Isso leva à segunda questão. A situação internacional, e de outra forma nacional também, está marcada pelo desgaste dos políticos tradicionais com a eleição de Trump. O que muda na sua opinião para a política norte-americana para a América Latina, para a China?

Na verdade a tentativa do capitalismo de se manter como um sistema triunfante, reorganizador de todo planeta dentro de uma perspectiva que não é sequer global, assume uma perspectiva geopolítica norte-americana, que tem uma contradição muito forte. Para garantir o nível de influências que eles querem ter são obrigados a usar a força da maneira mais brutal. E mais, colocando em marcha uma base econômica para sustentar uma economia em decadência, eles também precisam gerar conflitos militares, para justificar os investimentos extremamente críticos para os EUA numa situação em que eles têm uma dívida colossal, de proporção igual ao PIB. Isso não permitiria economicamente que eles fizessem esse nível de gasto para manter esse poder. Então era normal que aparecessem oposições a isso desde a esquerda como da direita. E a esquerda norte-americana teve várias desestruturações, pelo menos desde a II Guerra Mundial.

4 – De que forma?

Há um grande fortalecimento naquele momento do stalinismo, e isso gerou um movimento mundial de simpatia ao que vinha da URSS. Mas por outro lado, existia no stalinismo uma série de elementos que faziam com que não se atuasse para a revolução socialista. E a própria revolução russa foi atacada por muitos, a guerra civil destruiu grande parte da liderança operária, então realmente vai se criando as condições para um grupo social que se apropria da revolução e tem um papel de avançar só no modelo da URSS. E esse grupo vai se afirmando. E assume a posição de que não deveria exportar a revolução para o mundo.

IdE: Voltando para a atualidade, a Hillary Clinton era ainda mais orientada com ala dos falcões. Já o Donald Trump foi eleito sob a campanha de fazer a “América grande de novo”. Com a volta desse certo nacionalismo a gente está diante do início do fim da globalização?

Não diria da globalização, mas de deixar que esse processo seja dirigido pelos EUA. O que é normal, porque esses processos em que a realidade e sua imagem se tornam tão chocantes como a situação em que vivemos hoje, abrem caminho para uma psicologia aventureira, que por sua vez se alimenta de uma base econômica, totalmente decadente.  O que é interessante nessa situação é também o que está acontecendo na China. Historicamente com a vitória da URSS ela se colocou em disputa, por uma questão da hegemonia. A URSS foi aderindo a luta anticolonial, porque evidentemente os soviéticos não podiam deixar de apoiar. A proposta de ter uma aliança contra a Ásia não pode ir para frente, pois eles não têm mais o dinamismo econômico para isso, para compor uma aliança assim desde o ponto de vista norte-americano.

6 – Qual é sua avaliação sobre a crise política no país?

Essa política é tão primária, que estão tentando fazer aqui. Em primeiro lugar eles acham que os Estados Unidos ainda estão com as mesmas posições. Eles acham que aumentando a dependência dos EUA ajudará as exportações, a economia. Mas a política dos EUA não é aumentar as importações mas as suas exportações. É uma coisa ridícula pretender num momento como esse se apresentar como um pretendente que diz “olha somos aliados, vamos abrir o mercado de vocês”. Não abriria com a direção política que estava antes, e não vai abrir agora com o Trump, muito menos. É evidente que os interesses do Trump não são de ter nenhum tipo de colaboração favorável com o Brasil. E eles estão achando que com essa subordinação aos EUA, que criarão um polo político significativo. Quanto ao Trump ele representa uma ala do capital norte-americano que realmente foi prejudicado de divisão internacional do trabalho, assumida muito claramente pelo grande capital internacional, que tenta estabelecer esse domínio definitivo. E do ponto de vista dos setores atacados, não foram só os operários, as mulheres também foram atacadas. Há setores de esquerda que negam isso, e não veem que há muitas formas de ataques. A questão negra é de uma seriedade enorme. Nos anos 50 se encontrou com o movimento anticolonial, o que obrigou a que se assassinassem suas lideranças. Por isso não se pode negar a importância desses setores.

IdE: Isso tudo leva a um mundo muito mais instável não?

Hoje estamos num momento difícil, porque a capacidade de compor uma visão ideológica mundial, uma saída, está em crise. O Trump expressa esse mundo em crise, em que cada um é inimigo da ideologia do outro, e assim a força é a melhor coisa com a qual se pode contar. Mas essa decadência dos EUA os está levando a fazer coisas que são muito ignorantes. Essa tentativa de cercar a China, ou essa coisa de apontar o mundo islâmico como inimigo, coloca os Estados Unidos numa situação ainda mais difícil. A Europa nessa situação não pode mais seguir os Estados Unidos, tem muitas contradições para fazer isso. E não tem condições de fazer uma confrontação, ainda mais fazendo uma ofensiva anti-islâmica. Isso é muito custoso. Então eles tentam se aproximar a Rússia, e deixar a China de lado. Hoje para se ter uma ideia a China intervém tanto internacionalmente que há estudos que demonstram que está intervindo 10 vezes mais que os Estados Unidos na saída da II Guerra Mundial. É preciso ter alianças internacionais para barrar essa ofensiva de Trump. E rearticular um campo de resistência para neutralizar essa resposta que representa o Trump. Apesar de ter no final chamado ao apoio à Hillary Clinton, que foi decepcionante, o que Bernie Sanders foi a coisa mais interessante que apareceu. Enfim, é preciso rearticular a resistência. E é preciso ver também qual é a posição real dos Estados Unidos, que estão aquém de ditar sua vontade como antes. As próprias tentativas de integrações regionais são expressão disso. O Caribe, que é considerado pelos Estados Unidos como uma extensão sua, agora se identifica a América Latina. A Califórnia é uma extensão da Ásia, sem isso não tem polo tecnológico. Então os tempos estão se acelerando em termos de transformação. Está claro que o mundo não está mais de acordo com a hegemonia norte-americana. Está claro que eles estão impondo tudo pela força para se proteger das perdas que estão tendo. E o custo disso é cada vez maior. Uma economia corroída, que não tem nenhuma perspectiva de ter ajuste fiscal nos Estados Unidos, mesmo devendo o equivalente ao PIB. Isso só pode ser um privilégio de quem deu um golpe no sistema mundial com o fim do sistema dólar-ouro. Por isso se nós trabalharmos bem podemos criar uma situação que questione essa ideia de que os Estados Unidos podem mandar no mundo.

IdE: Qual sua opinião sobre análises como a de Moniz Bandeira de que se trataria de que o golpe institucional seria também uma ofensiva contra as grandes empresas brasileiras?  

Eu acho que a análise do Moniz Bandeira foi muito interessante, de que se trata de uma ofensiva para desmantelar as principais empresas brasileiras. Mas essa ofensiva vem tendo sucesso. Vemos isso na Venezuela, onde está se expressando o fim do bolivarianismo, e contra o qual ideologicamente haviam colocado a tese do pan-americanismo, que agora foi abandonada pelos Estados Unidos. Então aí também eles têm que buscar uma outra proposta. Agora estão falando que os Estados Unidos vão comprar do Brasil. O que? Isso não tem nada a ver com a política do Trump. Eles não vão comprar nada do Brasil. Uma incapacidade total de interpretação. Se você interpreta o mundo partindo de que os EUA são uma potência decadente, sem capacidade de promover uma reestruturação, e indo para uma violência colossal para manter um domínio absoluto não tem nenhuma possibilidade de nada ser melhor. Eu acho que talvez essa crise profunda nos obriga a debater essas questões mais detidamente.  E mesmo a esquerda muitas vezes não mostra uma capacidade de elaborar uma ideia própria sobre isso.

 

 

About author

No comments