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MRT | V Congresso do MRT: uma situação internacional de transição e esgotamento do velho ciclo neoliberal

A discussão da sessão de sexta-feira (29) do V Congresso do MRT foi dedicada ao ponto internacional, com informes de abertura a cargo de André Barbieri e Vitória Camargo e a importante participação de delegações internacionais da FT, com Claudia Cinatti e Elizabeth Yang, do PTS, e Lorélia Frejo, do Révolution Permanente.

sábado 30 de setembro de 2023 | Edição do dia

Tratou-se do panorama objetivo de uma nova situação de transição, marcada pelo o esgotamento do velho ciclo neoliberal e a “globalização securitária” que deriva da divisão do mundo em blocos rivais, a Guerra da Ucrânia como questionamento aberto à velha ordem unipolar frutos da lenta decadência hegemônica dos Estados Unidos, e as ilusões da “multipolaridade capitalista benigna” capitaneada pelo selvagem Estado burguês chinês. Do ponto de vista subjetivo, o fim de ciclo da hipótese neorreformista, com a catástrofe do Syriza e do Podemos (e a necessidade de superar essas mediações em luta político-estratégica) e as possibilidades de emergência do trotskismo foram debatidos à luz das possibilidades de avanço da Fração Trotskista pela Quarta Internacional (FT-QI), tomando os exemplos do Révolution Permanente na França e, em especial, do PTS na Argentina.

Com uma importante participação de delegações internacionais da FT, como Claudia Cinatti e Elizabeth Yang, do PTS, e Lorélia Frejo, do Révolution Permanente, um debate vivo se deu entre os delegados para pensar as hipóteses de construção política em base aos fenômenos mais marcantes dessa etapa de transição, em que ficaram marcadas a importância das tarefas preparatórias para a edificação e acumulação de quadros e dirigentes que possam melhorar as possibilidades de batalhar por frações revolucionárias nos movimentos operário e estudantil, nos mais diversos movimentos sociais, para atacar a estratégia divisionista das burocracias. Em vários países a FT atua na realidade para impulsionar a autoorganização pela base e a hegemonia operária, com a perspectiva de opor uma força material revolucionária à atividade das burocracias reformistas, mecanismos de Estado que buscam organizar ativamente sua hegemonia dentro do movimento de massas. Muitas delas derivam do velho stalinismo e da socialdemocracia, que salvaram o capitalismo no século XX, e outras são novas burocracias que surgem nos movimentos, e interagem entre si: em um caso, restringem as organizações sindicais aos setores mais altos da classe operária, separando os imigrantes, os terceirizados, etc; de outro lado, atuam pra desligar a luta dos movimentos sociais com a classe trabalhadora. A batalha política contra essas burocracias foi um aspecto chave no debate a fim de retomar a hipótese hegemônica, tomando como exemplos a batalha do RP na França contra os obstáculos burocráticos da CFDT e da CGT no movimento contra a reforma da previdência de Macron (com o organismo da Rede pela Greve Geral), e a grande batalha política nacional do PTS, também no plano das eleições presidenciais em que a esquerda está representada pela chapa de Myriam Bregman e Nicolás del Caño na Frente de Esquerda, para combater as burocracias da CGT e da CTA em sua paralisia diante da submissão do país ao FMI, defendida desde o governo peronista-kirchnerista até a extrema direita de Javier Milei.

Os termos da discussão envolvem o Brasil em múltiplas determinações. Os delegados debateram a situação de debilidade estratégica do país obriga Lula a se adequar permanentemente às dependências múltiplas aos EUA e à China pra poder arrancar concessões, dentro da sua política de não alinhamento automático. A interpretação petista é que Lula sabe se conduzir de maneira inteligente: mas a verdade é que a política brasileira fica presa numa “jaula de ferro” com múltiplas submissões, agravando a dependência de um capitalismo cada vez mais decadente. Também se debateu a possível nova intervenção da potências no Haiti, em que Lula se propõe a enviar “treinamento” à Polícia Nacional Haitiana, depois de ter chefiado entre 2004 e 2017 a criminosa operação da ONU no país, a MINUSTAH, com incontáveis denúncias de estupros e assassinatos de mulheres e crianças haitianas, entre outras barbaridades. Em um país com um forte debate sobre a questão negra e contra os assassinatos policiais da população negra no RJ e em todos o país, uma operação como essa no Haiti por parte do governo Lula-Alckmin é um flanco débil, e que precisa ser fortemente combatido.

Outros pontos foram abordados na discussão:

O principal ponto débil da economia capitalista global é não ter conseguido recuperar suas taxas de lucro depois de 15 anos desde a Grande Recessão de 2008. Isso afeta todo o tecido da economia global, acirrando as contradições com a restrição do comércio global. Como escreve o economista marxista britânico Michael Roberts, a globalização como sistema de fluxos comerciais e financeiros sem obstáculos não existe mais, e aumentam as tendências à fragmentação do antigo metabolismo econômico capitalista.

Os elementos da crise econômica se superpõem naquilo que Adam Tooze chama de “policrise”: clara desaceleração do crescimento econômico, tendo como ponto central a desaceleração na China, que afeta o mundo inteiro; subida das taxas de juros; aumento da dívida pública e privada nos Estados, que torna mais difícil resolver problemas mediante empréstimos; bolhas especulativas que podem estourar a qualquer momento, como a gente viu com a quebra do Silicon Valley e a crise bancária nos EUA; inflação alta; interrupções nas cadeias globais de valor que prejudicam a produção; expansão dos gastos militares das potências (o que o economista Claude Serfati chama de “mundialização armada”).

A menor taxa de acumulação capitalista comparada com as décadas de 1990 e 2000 e a inexistência de novas “selvas virgens” para a recomposição da acumulação capitalista explicam não só a ofensiva de vários governos capitalistas sobre as condições de vida da classe trabalhadora, mas também o novo momento de competição entre as potências por nichos de exploração capitalista. A nível político, isso abre muitos episódios das crises orgânicas - segundo Gramsci, crises de autoridade estatal que separam representantes e representados fruto do fracasso de um grande empreendimento burguês - que se abateram sobre os regimes políticos dos países centrais, causando um curto-circuito na norma de alternância entre socialdemocratas e liberais (o extremo centro, segundo Tariq Ali), de que dependia o funcionamento normal da política neoliberal.

Nesse sentido, o enquadramento da economia global se encontra destacada por 1) uma “politização da economia”, ou seja, a determinação do comércio pelo critério da segurança nacional, 2) a “redução de riscos”, que implica a tentativa tortuosa de remodelar as cadeias de valor de um país dentro do círculo de aliados geopolíticos, e 3) as tendências ao protecionismo nas grandes potências. Ainda que seja muito difícil que todas essas tendências sejam levadas até o final, pelo grau de integração e interdependência que marca a economia mundial há décadas, essa integração já é muito diferente, e se dá por meio de uma globalização securitária, ou seja, uma globalização com várias “barreiras de segurança”, organizadas pelas potências para prejudicar o avanço dos rivais, o que atenta contra a total liberdade do comércio mundial.

A greve das principais empresas automotrizes nos Estados Unidos (GM, Ford, Stellantis), a maior desde a década de 1980, segue a tendência de maior intervenção operária na luta de classes nos países centrais (como vimos na França). A ida de Biden nos piquetes de greve, e o discurso de Trump dirigido aos trabalhadores metalúrgicos, cada um com a preocupação de garantir os votos desse setor estratégico da classe trabalhadora em Michigan (um swing state, que pode definir os resultados presidenciais no colégio eleitoral), mostra que a classe trabalhadora dos EUA volta a aparecer como fator central nos cálculos políticos de Democratas e Republicanos, o que abre uma importantíssima discussão sobre a independência de classes no movimento operário, batalha levada adiante pelos companheiros do Left Voice, em diálogo com os setores de vanguarda e da esquerda norte-americana, incluindo a base do Democratic Socialists of America (DSA).

A Guerra da Ucrânia intervém como questionamento aberto à velha ordem mundial neoliberal, e reatualiza a tendência à partilha potencialmente militar das esferas de influência no mundo. Isso é parte das características da época imperialista (crises, guerras e revoluções, segundo Lênin) inscritas na etapa de transição, e que operam limitadas, por ora, pelas contratendências à realização concreta, em especial tendo em vista a configuração nova em que a integração globalizante enquadrou os dois fenômenos principais da atualidade, o lento declínio dos EUA e a tortuosa ascensão da China. Por isso vemos os cálculos cuidadosos de cada lado pra evitar, por ora, incidentes graves, porque nem EUA nem China estão preparados ainda pra choques diretos. Entre outras razões é por isso que não nos encontramos em uma “guerra imperialista” na Ucrânia, ou em preparativos mais contundentes para uma guerra dessa natureza. Reafirmamos a correção da política da FT desde o início do conflito: oposição total a esta guerra reacionária, exigindo a imediata retirada das tropas russas da Ucrânia, a expulsão da OTAN da Europa do Leste, denunciando a política de rearmamento imperialista, defendendo a unidade da classe trabalhadora internacional por uma política independente (contra os “campismos” pró-OTAN e pró-Rússia), que lute por uma Ucrânia operária e socialista.

Com a guerra da Ucrânia se aceleraram a formação de blocos geopolíticos rivais, encabeçados por EUA e China, mas blocos com enormes contradições internas e destituídos de uma orientação coesa, como são os casos do G7 e dos BRICS, que são mais “uniões de divergentes” que atuam de acordo com os interesses particulares de cada Estado, manobrando entre suas várias dependências. O próprio tecido das relações internacionais se esgarça com essas contradições internas, que são respondidas pelas potências em termos de expansão de gastos militares e medidas protecionistas.
Diante disso, ressurgem as ilusões em Estados capitalistas supostamente progressistas contra o imperialismo, e a ideia de uma multipolaridade capitalista como saída aos problemas mais sentidos das massas, segundo a qual a China e a Rússia seriam um contraponto ao imperialismo norte-americano. Discutiu-se a necessidade de combater frontalmente essa visão, com uma política de independência de classe frente a todos os Estados capitalistas, como parte de incentivar a autoorganização das massas e a ideia da revolução. Nossa luta política contra essas vertentes é muito importante, sem perder nunca o ângulo do anti-imperialismo. O desafio limitado que China e Rússia representam pras grandes potências imperialistas não torna esses estados aliados dos povos oprimidos. São Estados capitalistas agressivos, com regimes bonapartistas e exploradores, que não representam nenhuma alternativa de "hegemonia positiva" na ordem internacional. O imperialismo norte-americano é hoje o principal inimigo da classe operária mundial, mas o imperialismo não pode ser combatido dentro do "campo" da China, que desenvolve cada vez mais seus próprios traços imperialistas.

Diante disso, debatemos com as teses de Chantal Mouffe, quanto à emergência de "populismos de esquerda" como saída para disputar a crise de hegemonia neoliberal, apostando nas variantes neorreformistas para isso. A franca decadência do Syriza grego e do Podemos espanhol, na última década, abrindo espaço a variantes burguesas, é um dado que instala o "fim de ciclo" das hipóteses populistas de esquerda. Essas mediações cumpriram o papel de serem sustentáculos dos ecossistemas dos regimes burgueses em crise, salvando o establishment, levando adiante medidas neoliberais de ajustes. Na França, Mélenchon e a França Insubmissa foram parte de dividir e conter as mobilizações massivas contra a Reforma da Previdência de Macron. Nos Estados Unidos, debatemos o salto na integração de Bernie Sanders, do "Squad" e toda ala esquerda do Partido Democrata, ao qual a direção do DSA está atrelada, no papel de contenção desde os últimos anos da administração Biden.

Discutimos os avanços dos grupos da FT na Europa, após a escola de verão que reuniu mil presentes, com centro no desenvolvimento da Revolution Permanente na França, após os fenômenos que se fizeram sentir com a luta contra a reforma da previdência de Macron, seguidos de lutas reivindicativas em diversas categorias e o processo de luta contra a violência policial com o assassinato de Nahel. Passamos por uma etapa de elementos pré-revolucionários nesse país que torna ainda mais importante a batalha por uma política correta para reorganizar a vanguarda e avançar em sua influência política e construção. Ao mesmo tempo, na América Latina, tratamos da situação argentina, que passa por uma aceleração da crise orgânica nesse país e tem pela direita Milei como fenômeno mais dinâmico em meio a uma agenda política à direita, com Massa avançando com o ajuste,que prognostica cenários mais convulsivos nesse país. Por isso, a campanha do PTS e da FIT-U com Myriam Bregman e Nicolás Del Cano, denunciando o ajuste, a subordinação ao FMI e a reação patriarcal assumiu centralidade, também no debate com as organizações de esquerda brasileiras. Trata-se de um grande exemplo para a esquerda brasileira, e foi discutido pelos delegados como dar ampla difusão a essa experiência de enfrentamento contra a extrema direita e o governo com independência de classe e uma estratégia socialista de enfrentamento ao Estado.




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