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Crônica | Do iFood a violência policial, o capitalismo mescla novos e velhos métodos de opressão à classe trabalhadora

Sem querer descer do altar de ossos e sangue da Polícia, nem de seu apartamento, um policial militar do RJ atira em Nilton, entregador do Ifood que veio lhe entregar o pedido.

terça-feira 5 de março | Edição do dia

O Cabo Roy Martins Cavalcanti estava no conforto de sua casa esperando uma entrega de comida na noite de segunda-feira, comida essa que pediu pela empresa-aplicativo iFood. A facilidade do Policial Militar em levar uma vida sossegada onde pôde aproveitar a grandiosa transformação tecnológica de nosso tempo e receber uma refeição gostosa e com pouco esforço, representa o grande avanço da revolução tecnológica e informacional do nosso tempo. Aqui florescem ideias e empregos alternativos, e o dinheiro circula realmente atingindo as vontades humanas! Quem quer pagar pelo serviço do iFood, e pode, tem a total facilidade, e quem quer trabalhar, para tirar uma grana suada dessas corridas, será um dos mais novos e dedicados colaboradores desses aplicativos. Um “colaborador”. Maior e melhor do que ser um “empregado”, mais autônomo e mais livre, mais empreendedor e menos trabalhador! E mais baleado e mais precarizado.

O trabalho e o corre dos entregadores carregam todas as contradições desses serviços. Tem quem corre por esses apps por mais de 15 horas por dia e por menos que um salário mínimo. A burguesia criou esses aplicativos sobre a perversidade da precarização do trabalho, tornou mais fácil os serviços às elites porque escondeu nas ruas obscuras e na população negra e jovem do país as engrenagens da mais-valia e da alienação do trabalho, precarizou todos os serviços para lucrar mais, e deixa que a roda gire, pesando em cada mísera pedalada dos trabalhadores. Uberizados, membros da classe trabalhadora, são postos sobre o trabalho mal pago e bem explorado, onde nunca escapa, nem mesmo uma vez, o racismo, o feminicídio, LGBTfobia e a violência policial a esses. Tem vezes que a uberização escancara os ataques, como se dissesse, “pague pelo seu trabalho, e não obstante, pague pela sua vida”. Os entregadores das empresas-aplicativos bilionárias, como iFood, Rappi e Uber, sabem o peso de cada pedalada ou de cada corrida, no Breque dos Apps de 2020 levavam em suas bags a frase: “Nossas vidas valem mais do que o Lucro deles”.

Era Nilton Ramon de Oliveira, um jovem de 24 anos, quem entregava o pedido do PM, que estava fora de serviço, pela noite de ontem, enquanto Nilton, sabe-se lá há quantas horas e quantos dias estava trabalhando em sua bicicleta. Os aplicativos, além de precarizar os trabalhos, precarizam a vida do trabalhador, puxando sempre a corda para ataques brutais aos setores explorados. O PM se recusava a descer até a portaria para buscar o pedido, uma coisa objetivamente errada, até nas diretrizes e acordos do aplicativo. Nilton sabia que não era obrigado a subir até o apartamento do morador da Zona Oeste do Rio de Janeiro, e sobre que marco o faria? Com a meta absurda de corridas que o iFood coloca em suas costas, já entrega um pedido pensando nos próximos três. Quando o PM desce de seu apartamento já não basta pegar o pedido, ele quer dispor de tudo que o capitalismo, e a polícia, o braço armado do Estado e da burguesia, dispõe. Após uma discussão o policial atira no jovem negro, que é hospitalizado, perde o dia de trabalho e a saúde. O policial escancaradamente fora de serviço, dando-se ao luxo de pleitear não mover um músculo para pegar sua entrega, de repente usa sua arma e faz o que a polícia foi feita e sempre será feita para fazer: assassinar a juventude negra.

Nilton havia cancelado a entrega. A discussão começou por mensagens e ali terminaria, se realmente as diretrizes e o serviço do iFood se limitasse a esse sonho liberal do capitalismo. Mas enraivecido e com sua arma, o cabo desceu do prédio e perseguiu o jovem. Não para buscar a comida, mas para baleia-lo. Isso sim merece seu movimento. O ódio de classe é palpável. Nilton enquanto gravava mostrou que não tinha arma, o policial pedia respeito. No fundo, pedia que o trabalhador abaixasse a cabeça a ele, que nem pediam aos escravos. Nilton não cedeu e não abaixou, e assim foi baleado. Para dialogar com os olhos revoltosos de outros entregadores e pessoas próximas, que assistiam e percebiam a barbárie, Roy Cavalcanti respondeu sem um pingo de humanidade: sou policial. Como se isso importasse alguma coisa. Com o jovem baleado, esse mesmo homem fardado, só que sem farda, ainda foi até o restaurante pleitear o pedido, além de prestar queixa em uma delegacia próxima. Sobre o sentimento de impunidade, o policial não mede esforços para atirar contra a classe trabalhadora.

Os entregadores dos aplicativos juntam-se à frente do prédio cobrando justiça. Colegas de profissão afirmam que era um menino trabalhador. Roy Martins Cavalcanti busca no auge de sua podridão afirmar que foi legítima defesa e que o jovem tentou atacá-lo, o que relatos de testemunhas e o vídeo que Nilton gravou, desmentem fortemente. No entanto, o pleito dos entregadores é deprimente na realidade, pois sabe-se que trabalhar e estudar nunca foi suficiente para o povo pobre e a população negra sair do alvo das armas da polícia por todo o Brasil e por todo mundo. Esses fuzis da PM, que vem de Israel, e são os mesmos que massacram os palestinos em Gaza, mataram Marcos Vinícius em 2018, que tem como últimas palavras no auge de seus 14 anos: “Mãe, eles não perceberam que eu tava com a roupa da escola?”. Mataram mais de uma vez trabalhadores que estavam com um guarda-chuva, pois os policiais confundiram-o com fuzis, mais do que o suficiente para ceifar inúmeras vidas negras. E hoje, em 2024, isso continua, na Baixada Santista e na cidade do Rio. Mas os policiais para atirar nem precisam estar de farda.

Entrelaçados até o fim, o trabalho sobre o capitalismo e as grandes empresas com a violência policial e o racismo, tornam esse caso uma grande denúncia ao “PL da uberização” a ser aprovada pelo Governo Lula. Como viemos denunciando aqui no Esquerda Diário, esse PL, a qual as dimensões ainda estão nebulosas, mas que desde já está claro que reafirma o não reconhecimento de vínculo empregatício, além de não valorizar o tempo de trabalho demandado do motorista em prontidão aguardando por chamadas de serviço, está totalmente alinhado com o contínuo conluio com o empresariado brasileiro. O que mostra que o PT e seu governo de Frente Ampla está a anos-luz de defender os interesses da classe trabalhadora, imensuravelmente menos de forma independente, a única saída para a miséria do capitalismo e os avanços neoliberais mundo afora.

A precarização dos trabalhos e as empresas aplicativo dessa revolução digital só apresentam mais derrotas à classe trabalhadora. A legislação quer botar o trabalhador às margens do sistema capitalista, como afirma o professor da Faculdade de Direito da USP, Jorge Souto Maior: “pá de cal sobre o que ainda resta da rede de proteção jurídica trabalhista”. Ao mesmo tempo, três questões importantes nos restam: que limitações que as grandes empresas de aplicativo farão para que o caso de Nilton não se repita com outro trabalhador negro? Que ação de comprimento de direitos básicos e ressarcimento existirá para ele? E que tipo de responsabilidade o iFood receberá pela ação? As três perguntas têm uma mesma resposta, curta, decepcionante e com só sete letras: Nenhuma. O lucro que o iFood recebe é também sobre a vida desses trabalhadores. A Reforma Trabalhista e as privatizações em massa colocam ao limbo os trabalhadores sob o eufemismo mais nefasto existente no capitalismo: “Eles são empreendedores!” Que trabalham para os grandes capitalistas de forma autônoma. A mentira de que não há vínculo nenhum. E o PL de Lula, por fim, não combate isso.

O iFood justamente não se pronunciou sobre o ocorrido. E não irá. O capitalismo conta com as mortes dos jovens negros, e não é como se as condições materiais desse sistema podre evitassem que o valor da vida de um trabalhador não fosse substituído. No entanto, as vidas da classe trabalhadora vale mais que o lucro deles. E não só a uberização termina e começa nos aplicativos de entrega, está atrelada a ela um movimento geral da economia de precarizar e terceirizar os serviços públicos e remover os direitos trabalhistas tanto no Brasil como no mundo, vemos isso muito próximo na Argentina, em uma profunda luta de classes contra o governo de extrema-direita de Milei e as reformas que ele busca aprovar. Ao mesmo tempo, o Governo de Frente Ampla de Lula não se mostra como alternativa a isso. E se não bastasse, Cláudio Castro, Zema e Tarcísio continuam explorando e matando a classe trabalhadora nos estados do Sudeste, economicamente e militarmente. E na Bahia, o estado que a polícia mais mata jovens negros, o governo é do próprio PT.

A saída para a violência cotidiana e para a degradação dos serviços e dos direitos da classe trabalhadora, levando a cabo um aumento dos lucros da burguesia e da violência mascarada de segurança pública é justamente por meio da auto organização dos trabalhadores, que por meio da luta em centrais sindicais, sindicatos combativos, postos de trabalho e espaços democráticos, juntamente com os setores explorados e aliados com os estudantes e a juventude, que vêem seu futuro sendo negociado à luz do dia, mobilizem uma grande luta por meio de manifestações, atos e greves, para conseguir levar a frente a independência de classe. É necessário acabar com a inércia que permite com que essas empresas floresçam sobre a precarização e com que o capitalismo continue alastrando internacionalmente suas medidas que sacrificam vidas e o futuro em nome dos lucros dos grandes empresários. É mais do que revoltante, e mais do que impensável que esse caso tenha acontecido ontem. Nilton nem merecia e nem precisava passar por isso, essa miséria do possível continua matando a juventude negra, e a auto organização dos trabalhadores e sua luta é a única forma de superá-la.




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