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Capitalismo e Estado | A farsa do leilão da Carris e o Estado como balcão de negócios capitalistas

Com o leilão da Carris, Melo e Ricardo Gomes atualizaram com maestria a definição de Marx de que o Estado seria um balcão de negócios capitalistas. A mais antiga empresa de transporte público do país foi vendida por uma bagatela num leilão de cartas marcadas e repleto detalhes kafkianos que tornam os argumentos neoliberais piadas de mal gosto.

terça-feira 10 de outubro de 2023 | Edição do dia
Melo e Ricardo Gomes posam com secretários e sócios da Viamão I Foto: André Malinoski / Agência RBS

O leilão teve toda a cara de cartas marcadas. Das duas únicas empresas concorrendo, uma delas foi obrigada a desistir por detalhes nas exigências do edital. Sobrou apenas a Viamão, que detém monopólio no transporte intermunicipal entre a capital e a cidade vizinha.

O valor da venda foi irrisório e os detalhes são absurdos. Segundo Ana Pellini, secretária de Parcerias da prefeitura de Porto Alegre, o total de R$ 109 milhões pode ser dividido da seguinte forma: R$ 133 milhões representam ativos permanentes (frota e terreno), R$ 8,74 milhões são depósitos judiciais para garantir execução de causas, cerca de R$ 13 milhões são estoque, dívidas de clientes, caixa e outros créditos. Para finalizar, o nome da empresa Carris foi avaliado no valor de míseros R$ 20.995,00. Sim, o nome da empresa criada em 1872, vencedora de incontáveis prêmios nacionais, eternizada em canções e histórias de lutas operárias e populares, modelo de empresa de transporte público para todo o país, vale o equivalente a um Fiat Uno de 2011. Isso tudo representa R$ 155 milhões. Mas a Carris possui dívidas no valor de R$ 47 milhões com fornecedores, salário, encargos trabalhistas, obrigações fiscais, financiamentos, etc. O total dos ativos de R$ 155 milhões, portanto, descontando as dívidas de R$ 47 milhões, chega no valor de R$ 109.852.132.

Mas a situação não para por aí e alguns detalhes a tornam ainda mais absurda. O primeiro deles é que o edital do leilão prevê o pagamento desse valor em parcelas de até 121 vezes, permitindo à Viamão sanar suas dívidas com a prefeitura em 10 anos. O segundo absurdo é que há uma cláusula contratual no edital que prevê a possibilidade da empresa Viamão abrir mão do terreno da Carris, avaliado em cerca de R$ 69 milhões, o que reduziria o valor total de R$ 109 milhões pra R$ 40 milhões -> https://sul21.com.br/noticias/geral/2023/10/clausula-contratual-pode-reduzir-valor-da-venda-da-carris-a-r-40-milhoes/]. Como se tudo isso não bastasse, as concessões da linhas da Carris, que transporta diariamente cerca de 230 mil passageiros por dia (22,4% do sistema), teve lance mínimo no valor simbólico de R$ 1,00, fazendo Kafka parecer um escritor realista. A Viamão arrematou todas as linhas por apenas R$ 100 mil, sendo que o lucro de cada uma delas é infinitamente maior.

Alguém poderia se perguntar: mas se a Carris dá prejuízo, como eles vão pagar por tudo isso? Acontece que o lucro é garantido uma vez que o Estado fornece subsídios milionários às empresas privadas todos os anos. Em 2021, por exemplo, a prefeitura repassou R$ 104 milhões para as empresas de transporte público e repetiu o feito em 2022. Ou seja, em dois anos, a prefeitura de Melo repassou duas Carris para as cinco empresas que controlam o sistema na capital (entre elas a própria Carris), dinheiro público que sai do nosso bolso. Os subsídios deste 2023 já estão garantidos e tem rota traçada direto para o bolso da Viamão. No capitalismo, o transporte e os prejuízos são coletivos, mas os lucros são privados.

A garantia do lucro da Viamão fica patente no “estudo de viabilidade técnica e econômico-financeira”, produzido pela própria prefeitura, que fez projeções de lucros milionários para os próximos anos, como mostra a tabela abaixo. A estimativa é de lucro líquido de R$ 13.483.973 para o ano de 2023, considerando o atual cálculo tarifário e os ativos da empresa. Em perspectiva para os próximos vinte anos, estima-se um total acumulado de cerca de R$ 210 milhões, duas vezes o valor da compra. Nesses cálculos não entra a redução dos custos que a empresa terá após a demissão em massa já prometida pelo sócio, Octávio Marcantonio Bortoncello. Negócio melhor do que esse, difícil de encontrar, ainda mais que os encargos trabalhistas serão responsabilidade da prefeitura, mais um custo compartilhado com a população e dessa vez acarretando em centenas de pessoas na rua.

Outros dois exemplos explicitam esse casamento muito bem sucedido entre o capitalismo e o Estado. Quando a pandemia explodiu, e com ela o distanciamento social, diversas linhas superavitárias passaram a ser deficitárias por conta da redução drástica na mobilidade, apesar de se manter certa demanda. Foi a Carris que acolheu essas linhas para garantir que os ônibus continuassem rodando e as empresas privadas não saíssem prejudicadas. Essas, por sua vez, aproveitaram a pandemia para passar a boiada, demitiram e mantiveram funcionários em casa sem salário. E o último exemplo é o controle de todos os créditos de tarifas por parte da ATP, permitindo à essa entidade patronal fazerem o que quiserem com um valor milionário que entra todos os meses para recargas do tri, escancarando como no capitalismo o Estado atua para beneficiar cartéis, monopólios, associações patronais e grandes empresários em detrimento da massa trabalhadora e pobre. Apenas em 2020, por exemplo, a ATP recebeu mais de R$ 160 milhões em créditos de VT, passe escolar e antecipado, permitindo um rendimento de mais de R$ 5 milhões de acordo com a taxa selic da época, como aponta o economista André Augustin. Ou seja, sem fazer nada, apenas rendendo o dinheiro dos trabalhadores, a ATP recebe milhões de reais sem transparência alguma. Por que não são os trabalhadores e a população os que controlam e se beneficiam desses valores?

Apesar da cantilena neoliberal do Estado mínimo, o leilão escancara o quão necessário é o Estado para garantir lucros capitalistas, seja via privatizações como essa, seja via subsídios estatais, seja práticas de cartéis como esse controle dos créditos tarifários. Melo e Gomes atuam como funcionários dos empresários, fazendo valer a definição de Marx do “executivo no Estado moderno não é senão um comitê para gerir os negócios comuns de toda a classe burguesa”. A bem dizer, Gomes é também funcionário de outra empresa, a Brasil Paralelo, especializada em produzir propaganda negacionista e material ideológico de baixíssima qualidade. Os empresários da Viamão vão incrementar seus bolsos com esse arremate e os trabalhadores da Carris, em especial os cobradores, estão vendo seus dias contados. Quem sai perdendo é a maioria da população e os rodoviários.

A realidade crítica do transporte público nas cidades hoje, em Porto Alegre e em todo o mundo, joga luz na necessidade de se avançar num programa de controle operário e popular. Caso os rodoviários, aliados aos usuários, controlassem o transporte de Porto Alegre e zona metropolitana, por exemplo, a tendência seria reduzir as tarifas, priorizar as demandas mais sentidas da população (pois são os trabalhadores e usuários que conhecem as necessidades), bem como melhorar a qualidade do transporte e dos carros de modo geral. Esse não é um problema meramente de “gestão”. Afinal, o PT governou Porto Alegre durante 16 anos, nunca sequer relou nos interesses dos tubarões do transporte e conservou o modelo de subsídios que permite o monopólio do transporte por parte do cartel da ATP. É preciso avançar num programa onde o transporte seja 100% estatal, 100% Carris, mantendo o emprego de todos os trabalhadores das privadas, efetivando-os e colocando sob controle dos rodoviários e usuários.




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