As chamas do Museu Nacional e a luta por nossos mortos

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Por Fernando Pardal

 

(…) é uma imagem irrecuperável do passado que ameaça desaparecer com cada presente que não se sinta visado por ela.[1]

– Walter Benjamin, Sobre o Conceito da História

O Museu Nacional ardendo em chamas, que acabara de completar duzentos anos, estarreceu o país e o mundo. Os 20 milhões de itens que eram abrigados no Museu Nacional, e que estão erradicados da existência, nos colocam diante de um confronto com o sentido de nosso passado, uma parte do qual foi subitamente enterrada sob o destino irreversível de ter se transformando em uma montanha de cinzas e não ser mais conhecido, seja por nós, seja pelas gerações futuras.

Houve quem, identificado com o passado dos oprimidos e explorados do ontem, e no lugar de serem os que carregam hoje o fardo dessa exploração, tenham glorificado o incêndio como a destruição de um passado colonial, escravocrata, de dias ainda mais brutais do que os de hoje. É uma posição que favorece aos dominadores, pois, como queremos retomar nesse texto, nos colocamos na posição do materialista histórico, que, como dizia Walter Benjamin, “considera sua tarefa escovar a história a contrapelo”.

O que isso quer dizer? As lágrimas – muitas delas de crocodilo – que foram vertidas nessa semana em proclamações públicas lamentando a destruição do Museu Nacional possuem muitos sentidos, que estão relacionados à forma como entendemos a história. Benjamin, ao debater o conceito de história, combate a corrente do historicismo – cuja perspectiva foi nessa semana expressa nas lágrimas dos que (ao menos nas que carregavam algum grau de sinceridade em meio ao cinismo e à hipocrisia), sendo membros da classe dominante, lamentaram o incêndio.

“Fustel de Coulanges recomenda ao historiador interessado em reviver uma época que esqueça tudo o que sabe sobre fases posteriores da história. Impossível caracterizar melhor o método com o qual rompeu o materialismo histórico. Esse método é o da empatia (Einffühlung). Sua origem é a inércia do coração, a {acedia}, que desanima de apropriar-se da autêntica imagem histórica , em seu relampejar fugaz. Para os teólogos medievais, a {acedia} era o primeiro fundamento da tristeza. (…) A natureza dessa tristeza se tornará mais clara se nos perguntarmos com quem o investigador historicista estabelece propriamente uma relação de empatia. A resposta é inequívoca: com o vencedor. Ora, os que num momento dado dominam são os herdeiros de todos os que venceram antes. A empatia com o vencedor beneficia sempre, portanto, esses dominadores. Isso já diz o suficiente para o materialista histórico. Todos os que até agora venceram participam do cortejo triunfal, que os dominadores de hoje conduzem por sobre os corpos dos que hoje estão prostrados no chão. Os despojos são carregados no cortejo triunfal, como de praxe. Eles são chamados de bens culturais.”

Assim, o que olha o passado em si, rende uma homenagem aos membros da classe dominante – tanto os de ontem como os de hoje. Nessa perspectiva que se choram as lágrimas dos que sentiram algum pesar – seja na redação da Globo ou em algum outro alto escalão dessa classe – na destruição do Museu. O palácio imperial queimado era um de seus “despojos” arrancados com o sangue dos nossos. Mas, paradoxalmente, somos nós os que fomos atacados, por estes mesmo, com a destruição desse passado.

O museu trazia registros de línguas indígenas de povos que foram extintos sob a barbárie da dominação colonial; trazia documentos que mostravam registros da memória dessa dominação; trazia nosso mais antigo antepassado, uma mulher negra a quem denominaram de Luzia cerca de 13 mil anos após sua morte, e que revelou à humanidade uma nova teoria sobre a ocupação humana de nosso continente. Era uma história que pertencia a nós e à humanidade futura. A história negra e indígena dos que lutaram e resistiram, e, mais do que isso, da cultura que foi sua resistência à dominação:

“A luta de classes, que um historiador educado por Marx jamais perde de vista, é uma luta pelas coisas brutas e materiais, sem as quais não existem as refinadas e espirituais. Apesar disso, estas últimas não podem ser representadas na luta de classes como despojos atribuídos ao vencedor. Elas vivem nessa luta sob a forma da confiança, da coragem, do humor, da astúcia e da firmeza e atuam retroativamente até os tempos mais remotos. Elas questionarão sempre cada vitória dos dominadores”.

O materialista histórico, na perspectiva que defende Benjamin, olha o passado na perspectiva do presente. Justamente porque procura no hoje o sentido da história dos que ontem foram vitimados pelos opressores, e que procuram nas gerações futuras – em nós – uma redenção. “(…) não somos tocados por um sopro do ar que envolveu nossos antepassados? Não existem, nas vozes a que agora damos ouvidos, ecos de vozes que emudeceram? (…) Se assim é, então existe um encontro secreto marcado entre as gerações precedentes e a nossa. Então, alguém na terra esteve à nossa espera”.

Assim, escovar a história a contrapelo é buscar não apenas a história dos vencidos, da qual tantas páginas nos foram arrancadas nas chamas do Museu Nacional, mas buscar o passado no sentido do presente e do futuro que pode redimir a barbárie de que os explorados de ontem foram vítimas. “Sem dúvida, somente a humanidade redimida obterá o seu passado completo”.

Contudo, a cada passo da dominação, esse passado é soterrado e arrancado de nós. O orçamento cortado do Museu por sucessivos anos – a causa concreta e imediata de seu irreversível incêndio –, e que por distintos meios é remetido aos capital dos dominadores de hoje, é a expressão concreta da luta de classes que nos arranca hoje as coisas “brutas e materiais”, mas que no incêndio e em outras expressões de destruição de nosso passado – como o corte das verbas para pesquisas – querem nos arrancar a nossa tradição, nosso passado, e, com isso, manter sua domesticação como “peça de museu” (e agora nem isso mais).

A cada vez, também, que a classe dominante consegue a adesão de um trabalhador para dizer que a manutenção do Museu está em oposição a hospitais de qualidade – e não em oposição aos lucros e à propriedade privada dos meios de produção – isso também configura uma vitória na luta de classes para os dominadores, que é fruto também de um processo contínuo de nos arrancarem o sentido de nossa memória. Esse perigo é equivalente também a entregar nossa história passivamente nas mãos da classe dominante, para que ela a apresente a nós de acordo com sua concepção e necessidade. A história não existe “tal qual as coisas foram”, mas de acordo com a forma como a concebemos e nos apropriamos dela.

“Articular historicamente o passado não significa conhece-lo ‘tal como ela de fato foi’. Significa apropriar-se de uma recordação, como ela relampeja no momento de um perigo. Para o materialismo histórico, trata-se de fixar uma imagem do passado da maneira como ela se apresenta inesperadamente ao sujeito histórico, no momento do perigo. O perigo ameaça tanto a existência da tradição como os que a recebem. Ele é um e o mesmo para ambos: entregar-se às classes dominantes, como seu instrumento. Em cada época, é preciso tentar arrancar a tradição ao conformismo, que quer apoderar-se dela.”

Então, para lutar por nossa tradição e nossa histórica, trata-se de nos armarmos, sobretudo e em primeiro lugar para a luta de classes, pois é nessa luta pelas coisas “brutas e materiais” que se disputa o botim da mais-valia, os orçamentos que sustentam a memória de nosso passado e a sua investigação, ou que incrementam os lucros bilionários dos que cinicamente despejam ladainhas sobre a “tragédia” do museu enquanto dizem que a saída é privatizar cada palmo de tudo o que temos, fazendo dos artigos de nossa história mais uma mercadoria em sua prateleira. Querem que nossos mortos, a história de nossos antepassados, seja mais uma fonte de lucro.

A luta é por nós, e pelo direito ao nosso passado e a ter a memória de nossos mortos. “O dom de despertar no passado as centelhas da esperança é {privilégio exclusivo} do historiador convencido de que tampouco os mortos estarão em segurança se o inimigo vencer. E esse inimigo não tem cessado de vencer.”

 

O significado de nossa memória em disputa sobre as cinzas fumegantes do Museu Nacional

Não foi preciso esperar as chamas serem apagadas nas condições precárias que haviam para que pudéssemos ver a direita mais empedernida destilar suas teses nas redes abissais, que representam a tentativa de esmagar por completo sob o peso ideológico de seu velho arsenal requentado qualquer perspectiva de uma apropriação do passado – e uma arte no presente – que esteja a serviço de lutar pela emancipação dos explorados.

Roger, reacionário vocalista o Ultraje a Rigor, foi uma das tantas vozes dessa direita que retorna a cada dia mais à “moral e os bons costumes” para tentar fortalecer um arcabouço ideológico opressivo que, ontem como hoje, está de mãos dadas com a intensificação da exploração capitalista. Em seu twitter, uma das coisas que ele disse, para  atribuir as responsabilidades, foi “Cultura aqui é homem pelado com crianças”, em alusão ao caso de grande repercussão sobre a performance “La Bête” no MAM com um homem nu e que motivou furiosos protestos da direita, assim como outros episódios em que a “moral” serviu de pretexto para a censura, como no Queermuseu, na peça “O Evangelho segundo Jesus Rainha dos céus”, protestos na palestra de Judith Butler, etc.

O peso de uma moralidade contra a arte “degenerada” sempre acompanhou os movimentos políticos à direita, que apoiados em sua “defesa da moral e da família” propagam a opressão a mulheres, LGBTs, ao livre pensamento e à expressão artística. O texto de Benjamin, escrito em 1940, remetia à experiência recente da ascensão do nazismo da Alemanha, que, não por acaso, promovera uma grande exibição da “arte degenerada” na Alemanha e propunha um modelo artístico neoclássico como um tributo à “perfeição” do homem ariano.

Se cinicamente os moralistas reacionários hoje contrapõem a preservação do Museu – que para eles representa a glorificação do passa imperial brasileiro ou monstruosidades análogas – à arte que paute a sexualidade, a nudez, temas LGBT ou qualquer coisa que lhes cheire a “subversão”, isso é só mais uma batalha ideológica de uma guerra que tende a se aprofundar mais a cada dia, conforme se aprofunde a atual crise e as saídas da extrema-direita como Bolsonaro ganhem peso. Benjamin também alerta como é necessário pensar a história não como uma evolução contínua e linear – como em sua época o fazia a social-democracia e hoje o fazem muitos reformistas que “engolem” a seco esse aspecto da ideologia burguesa.

Contra isso, Benjamin nos propõe um conceito materialista histórico que rompa com essa perspectiva: “Este [o fascismo] se beneficia da circunstância de que seus adversários o enfrentam em nome do progresso, considerado como uma norma histórica. – O assombro com o fato com os episódios que vivemos no século XX ‘ainda’ sejam possíveis, {não é um assombro filosófico}. Ele não gera nenhum conhecimento, a não ser o conhecimento de que a concepção de história em que se origina é insustentável”.

O incêndio no Museu Nacional é um alerta não apenas de que a concepção de uma história evolutiva e progressiva é um equívoco, mas que a política reformista que anda de mãos dadas com ela – e da qual os governos petistas, que já haviam iniciado os cortes de orçamento do Museu são os grandes representantes no país – também só nos causa um “assombro” que deve nos levar à conclusão de que o combate por nossa história e nossos mortos, tal como pelas coisas “brutas e materiais” como saúde, moradia e emprego, só pode ser obtida se nos erguemos à altura – teórica e politicamente – de dar esses combates. Devemos isso aos nossos mortos, mas principalmente aos vivos.

[1] BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da história. In: Walter Benjamin. Obras escolhidas I. São Paulo: Brasiliense, 2014. Todas as citações posteriores são do mesmo autor e retiradas desse texto.

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