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O convulsivo interregno da situação internacional

Claudia Cinatti

O convulsivo interregno da situação internacional

Claudia Cinatti

O texto que publicamos a seguir é uma contribuição para os debates da próxima conferência da Fração Trotskista pela Quarta Internacional, que impulsiona a Rede Internacional Esquerda Diário.

Desde a crise capitalista de 2008, mas com maior intensidade desde o início da guerra na Ucrânia, viemos sustentando que se abriu uma fase caracterizada pela reatualização das tendências mais gerais da era imperialista, definida por Lênin como uma época de crises, guerras e revoluções. Essas características convulsivas que se manifestam em tendências a crises orgânicas (ou crises orgânicas abertas) na periferia e no centro capitalista, e tendências protecionistas, de polarização política e alta conflitividade social, tinham sido atenuadas com a derrota do último ascenso revolucionário, com o auge da globalização neoliberal e o triunfo dos Estados Unidos na Guerra Fria, o que resultou no breve "momento unipolar" de hegemonia norte-americana.

Como definimos, a guerra da Rússia contra a Ucrânia/OTAN não é uma guerra da mesma natureza que as guerras assimétricas dos Estados Unidos e outras potências, como as do Golfo, a guerra contra o terrorismo ou as dos Balcãs no final da década de 1990 e início dos anos 2000. Esta é a primeira guerra de grande escala em território europeu desde o final da Segunda Guerra Mundial e marca o início de um questionamento aberto, até mesmo no campo militar, à ordem mundial comandada pelos Estados Unidos.

A "ordem (neo)liberal" liderada pelos Estados Unidos, que guiou a geopolítica do pós-Guerra Fria, está em uma profunda crise (desintegração?). A Grande Recessão pôs em relevo o esgotamento desse mundo globalizado liderado por Washington. Não apenas a China emergiu como potência e principal concorrente dos Estados Unidos, mas também há uma série de potências intermediárias, como Turquia, Brasil, Índia ou Indonésia, que buscam seus próprios interesses nacionais. Alguns analistas comparam isso ao movimento dos não alinhados, embora, neste caso, sejam países com dependências cruzadas em relação aos Estados Unidos (e ao Ocidente) e à China.

Com a aliança entre Rússia e China formalizada às vésperas do início da guerra na Ucrânia, tem se delineado um "bloco antiocidental" que se apresenta como uma "alternativa multilateral" às demandas norte-americanas, atuando como um polo de atração para os condenados pelo "Ocidente", como Irã ou Coreia do Norte. O surgimento desse bloco ainda em construção objetivamente abriu espaço para "alinhamentos múltiplos" e alianças fluidas, que diversos países utilizam conforme sua conveniência. Em conjunto, formam o chamado "Sul Global", por ora mais um significante do que uma entidade econômico-política com contornos definidos, mas que expressa graficamente o enfraquecimento da capacidade dos Estados Unidos de imporem um alinhamento praticamente automático (com exceção de um punhado de aliados de Washington, como o governo de Milei na Argentina, que definiu como política externa voltar às "relações carnais").

Alguns analistas e teóricos burgueses das relações internacionais falam de uma espécie de reedição do "mundo bipolar" da Guerra Fria, desta vez entre os Estados Unidos e a China. Outra corrente da geopolítica, associada ao chamado "declinacionismo", propõe a emergência de um "mundo multipolar" e alimenta a ilusão de reconfigurar as "instituições multilaterais" como uma forma de os Estados Unidos poderem manter sua preponderância e, ao mesmo tempo, "compartilharem" cotas de poder com outras potências.

Essas não são discussões acadêmicas. Como ficou evidente na guerra da Ucrânia, um setor da esquerda internacional considera que o bloco liderado pela China e Rússia é "anti-imperialista" porque se opõe à hegemonia norte-americana, reeditando a posição "campista" típica da Guerra Fria, mas, desta vez, ao invés da União Soviética, eles se alinham a um bloco capitalista reacionário liderado pela China, que busca emergir como potência aprofundando seus traços imperialistas. Enquanto isso, outro setor adotou uma posição "campista inversa" ao se alinhar com o lado da Ucrânia/OTAN.

Intelectuais burgueses, liberais e "progressistas", ou seja, não apenas marxistas, têm apresentado diversas teorias sobre a "crise multidimensional" - geopolítica, econômica, política, social e ambiental - que inaugurou um período prolongado de instabilidade e que pode resultar em eventos catastróficos.

Não casualmente, o termo "permacrise" - um neologismo que se refere a crises permanentes e simultâneas - foi escolhido como a palavra do ano em 2022. Em certo sentido, o historiador Adam Tooze retomou a categoria de "policrise", formulada originalmente por Edgar Morin na década de 1970, como uma alternativa às explicações marxistas (em sua versão, determinista) das crises dos últimos 15 anos.

Falando de forma simples, trata-se de uma situação em que diversas crises ou choques interagem de tal maneira que tornam "mais perigoso o todo do que a soma das partes". Como são crises não lineares, que se retroalimentam, o sistema se torna imprevisível. O que é interessante na "policrise", pelo menos no terreno fenomenológico, é não apenas que, por serem crises não lineares, o sistema se torna imprevisível, mas principalmente que, nessa lógica, a tentativa de resolver uma crise - ou seja, uma solução parcial - agrava outras ou abre novas, como, por exemplo, fazer um ajuste para resolver uma crise de dívida cria outras crises: recessão, crises sociais, cataclismos políticos, etc, que acabam agravando a situação como um todo. O limite é que essa "matrix" de crises interconectadas (e algumas que permanecem relativamente soltas) não explica as causas da crise sistêmica do capitalismo e, em última instância, é um "modelo de gestão de crises" que não apresenta uma alternativa abrangente ao sistema capitalista. E muito menos a perspectiva da revolução social.

Embora ainda não haja uma disputa aberta (militar) pela hegemonia, ou seja, não estamos nos primórdios da "terceira guerra mundial", abriu-se um interregno no qual predominam fenômenos transitórios próprios de estágios em que a relação de forças ainda está indefinida. Quanto tempo isso durará dependerá, em última instância, do desenvolvimento e do resultado da luta de classes.

Uma conjuntura incerta e perigosa à espera da eleição norte-americana

No último ano, a tendência para as guerras e o militarismo aprofundou-se, reforçando a sensação de desordem mundial. À guerra da Rússia contra a Ucrânia/OTAN, sobrepôs-se a guerra de Israel em Gaza, que irradia para a região. Em quatro meses, cerca de 10 países já estão envolvidos, ameaçando arrastar os Estados Unidos para uma nova guerra não desejada no Oriente Médio. Esses são atualmente os dois principais teatros de operações, mas não os únicos. Existem outros potenciais fronts de batalha. Na Ásia, o conflito entre China e Taiwan, que realmente importa ao imperialismo norte-americano, está latente (por enquanto, Biden decidiu reduzir a intensidade ao afirmar que a independência da ilha não está na agenda). Além disso, as hostilidades se intensificaram na península coreana, com Kim Jong-un rompendo todas as relações com o governo pró-norte-americano e de direita da Coreia do Sul. Até na América Latina, a crise do Esequibo entre Venezuela e Guiana explodiu, envolvendo mobilização de tropas por parte da Grã-Bretanha, embora não tenha chegado a desencadear uma guerra séria. Isso sem mencionar a série de golpes de Estado na África, que, além das particularidades nacionais, tiveram em comum a expulsão das tropas francesas (em alguns casos, também norte-americanas, devido à continuidade da "guerra contra o terrorismo") e uma aproximação econômica, geopolítica e militar ao bloco formado por China e Rússia.

O governo de Biden está simultaneamente envolvido nas guerras entre Rússia/Ucrânia-OTAN e Israel na Faixa de Gaza. Em ambos os casos, especialmente diante de uma eleição que, por enquanto, parece perdida, a política da Casa Branca é apoiar seus aliados e, ao mesmo tempo, evitar uma nova guerra aberta com tropas no terreno, o que é improvável no caso da Ucrânia, mas possível no Oriente Médio.

Na Ucrânia, a estratégia americana era se beneficiar de uma guerra subsidiária para enfraquecer a Rússia (e ao mesmo tempo reforçar a liderança sobre a União Europeia) sem enviar um único soldado americano para o campo de batalha. Embora isso tenha funcionado nas primeiras fases da guerra, está mostrando seus limites.

A eleição norte-americana de novembro abriu um impasse relativo temporário, mas não se trata de uma espera passiva, e sim de uma preparação ativa praticamente global para uma mudança de curso. Por isso, também é um ano perigoso.

Embora seja verdade que, em questões fundamentais, como a política hostil em relação à China (uma questão de Estado), houve mais continuidade do que ruptura entre Trump e Biden, a extrema polarização entre o partido Republicano trumpista e o partido Democrata, que atua como o centro político, expressa uma profunda divisão no Estado em relação a como melhor ir atrás do "interesse nacional" imperialista - seja com maior intervencionismo e liderando aliados (Biden) ou com uma política mais unilateral com elementos isolacionistas (Trump).

Embora ainda haja meses pela frente e os democratas mantenham alguma expectativa de que a melhoria econômica ajude na reeleição de Biden (o que, por enquanto, não ocorre), o "fator Trump" já está tendo efeitos na tumultuada geopolítica mundial, influencia o curso da guerra na Ucrânia e também na guerra de Israel em Gaza, além de fazer parte dos cálculos estratégicos tanto dos aliados ocidentais quanto dos inimigos declarados dos Estados Unidos.

Em particular, a União Europeia está abalada por uma possível vitória de Trump, que novamente questionou a validade da OTAN e até sugeriu que os Estados Unidos não responderia caso um membro que não contribua com a cota mínima de 2% à Aliança Atlântica fosse atacado pela Rússia. Em meio aos revezes do lado ucraniano no campo de batalha, surgem questionamentos dentro dos países da UE sobre o alinhamento incondicional com os Estados Unidos. O caso mais sintomático é o da Alemanha, onde surgiu uma força "soberanista" liderada pela ex-dirigente do Die Linke, Sahra Wagenknecht, que propõe diretamente retirar o apoio à guerra e recompor a relação com a Rússia, uma política que, segundo o sociólogo W. Streeck, permitiria à Alemanha "se libertar do controle de Washington".

É um fato que tanto a Ucrânia quanto o Oriente Médio impactaram na polarização eleitoral, com as consequências que isso implica. Biden procura mostrar algum sucesso na política externa (alguma "equivalência" na Ucrânia?) ou, no mínimo, diminuir o repúdio que gera sua cumplicidade com o genocídio do povo palestino em um setor significativo de sua coalizão eleitoral. Pelas mesmas razões, os republicanos não estão dispostos a conceder nada que Biden possa usar para reforçar sua combalida campanha.

Nessa tensa disputa, a ajuda financeira para Ucrânia, Israel e Taiwan está estagnada no Congresso. O "Freedom Caucus", o bloco radical da direita republicana, inicialmente condicionou sua aprovação à implementação do fechamento da fronteira sul e ao endurecimento da política migratória e, uma vez que alcançaram essas condições, retiraram-se do acordo.

Por trás desse obstrucionismo está Trump, que questiona o financiamento e a intervenção em conflitos nos quais os interesses nacionais imperialistas não estão diretamente em jogo. Claro que este último ponto é motivo de debate. Não sem cinismo, aqueles que apoiam a guerra com argumentos "democráticos" apontam a falta de habilidade dos republicanos em reconhecer que a empreitada está saindo relativamente barata para os Estados Unidos: não há presença de soldados próprios no terreno, nem de nenhuma potência ocidental. Além disso, o financiamento acordado para este ano representa menos de 0,25% do PIB combinado da União Europeia, Reino Unido e Estados Unidos. Por outro lado, um detalhe importante frequentemente negligenciado é que grande parte desse dinheiro permanece nos Estados Unidos, nas mãos das empresas do complexo industrial militar.

O mais prejudicado é Zelenski: não apenas a ajuda de que o front ucraniano depende está sendo adiada, mas no caso de Trump vencer a presidência, ele promete suspender toda ajuda americana à Ucrânia. Como ficou claro na entrevista bastante amigável conduzida por Tucker Carlson, Putin se sente empoderado. Diante da perspectiva de uma vitória de Trump, não tem incentivos para negociar cedendo e só aceitaria uma rendição total da Ucrânia.

A aguda polarização interna (tendências para a crise orgânica) e a imagem de fraqueza que Biden projeta – agravada pela imagem de senilidade promovida pelo Partido Republicano como um todo – estão obstaculizando as políticas que o governo norte-americano tenta negociar para reduzir a tensão no Oriente Médio, e mais genericamente, estão erodindo a influência e a capacidade dos Estados Unidos de impor ordem. Portanto, embora haja um certo compasso de espera, dentro de um contexto mais amplo de deterioração das relações interestatais e acumulação de contradições, não se pode descartar eventos "inesperados", que, como o ataque do Hamas em 7 de outubro passado, possam precipitar novas crises.

O impasse da guerra da Ucrânia

Dois anos após o início da guerra e após o fracasso total da contraofensiva ucraniana na primavera de 2023, o conflito encontra-se em um impasse. Do ponto de vista tático, entrou em uma fase em que a guerra terrestre de desgaste se combina com o uso generalizado de drones, compensando a escassez de munições para a Ucrânia e dando-lhe alguma margem de manobra para atacar alvos no território russo. No entanto, ao mesmo tempo, amplificam a capacidade de destruição da Rússia, que ataca incessantemente as cidades e a infraestrutura ucraniana.

Em grande medida, o fracasso da ofensiva ucraniana ocorreu devido a uma mudança na estratégia da Rússia, que corrigiu os erros que lhe custaram caro em 2022 e adotou uma estratégia de defesa em profundidade, que se mostrou intransponível. A um alto custo em baixas e munições, a Ucrânia só conseguiu avançar alguns quilômetros. Do ponto de vista da liderança político-estatal, a decisão de Putin de desmantelar o grupo Wagner e eliminar E. Prigozhin permitiu que ele restaurasse a autoridade do Kremlin e estabelecesse ordem no comando militar.

Resumidamente, em um contexto no qual, como afirma o analista L. Freedman, "a ofensiva é esquiva para ambos", a Rússia obteve uma vantagem considerável, apesar de avançar pouco territorialmente, e mantém a iniciativa devido à renovada capacidade de sua indústria bélica.

Vários analistas "realistas" já admitem que esta situação adversa para a Ucrânia parece muito difícil de reverter. A falta de resultados e de uma estratégia que ponha fim à guerra (Zelenski não desiste do objetivo de recuperar todo o território ucraniano, incluindo a Crimeia) deixou expostas as diferenças no campo ucraniano, o que resultou na substituição do popular General Valery Zaluzhnyi, uma movimentação que os parceiros imperialistas da Ucrânia observam com preocupação.

Zelenski está sofrendo uma rápida erosão de seu capital político, o descontentamento interno está crescendo devido à fadiga da guerra e há muitas denúncias de corrupção. O congresso se recusa a aprovar um plano audacioso (e brutal) de incorporar e treinar entre 400.000 e 500.000 novos recrutas para reforçar as fileiras dizimadas do exército, cuja idade média é de 40 anos.

A aposta de Zelenski, que depende de maneira absoluta da assistência militar e econômica das potências imperialistas, é que o Ocidente continue o armando e financiando. No entanto, ele enfrenta cada vez mais dificuldades.

A União Europeia levou meses para conseguir aprovar um pacote de ajuda à Ucrânia - 50.000 milhões de euros ao longo de quatro anos - devido à oposição do primeiro-ministro húngaro, Viktor Orbán, que tem afinidades políticas com Putin. Orbán utilizou seu poder de veto para obter concessões adicionais da UE, incluindo a liberação de fundos retidos devido às suas políticas "iliberais". Embora tenham eventualmente conseguido superar sua resistência, isso ocorreu a um custo significativo. O mesmo aconteceu com a expansão da OTAN com a adesão da Suécia e Finlândia, que Erdogan adiou o máximo que pôde.

Nos Estados Unidos, que é o principal contribuinte individual para a causa ucraniana, Biden enfrenta a oposição do partido Republicano no Congresso. Inicialmente, condicionaram a aprovação do pacote de 60 bilhões de dólares para a Ucrânia ao fechamento da fronteira sul e ao endurecimento da política migratória. No entanto, uma vez que conseguiram essa concessão de Biden, recuaram do acordo. Diante de repetidos fracassos, o governo de Biden está considerando a possibilidade de entregar à Ucrânia os 300 bilhões de dólares em reservas da Rússia, congeladas em diferentes bancos centrais. Esse movimento dificilmente teria legalidade e é amplamente questionado do ponto de vista político, especialmente por potências intermediárias e do "Sul Global" que temem enfrentar o mesmo destino.

A política dos Estados Unidos e das potências ocidentais de isolar a Rússia por meio de um rigoroso esquema de sanções econômicas não teve os resultados esperados. Embora o verdadeiro custo da guerra seja percebido nos próximos anos, a curto prazo a Rússia tem enfrentado com relativo sucesso as sanções econômicas, em grande parte devido à sua aliança com a China e ao crescimento impulsionado pela economia de guerra. Os mercados perdidos na Europa, especialmente na Alemanha, foram parcialmente compensados pelo aumento das exportações de petróleo a preços com desconto para os países "amigos" como China, Índia e vários países africanos. Putin acabou de assumir a presidência do bloco dos BRICS, que foi expandido para incluir novos membros, como Arábia Saudita e Etiópia (Argentina desistiu devido à política de extrema direita do governo de Milei). E através da repressão e do bonapartismo reforçado, ele se prepara para assumir o quinto mandato presidencial, já que eliminou Boris Nadezhdin da disputa eleitoral, o candidato que ameaçava unificar a frente anti-guerra.

A maioria dos analistas militares considera que não há condições para uma nova ofensiva da Ucrânia durante 2024 e que, na medida em que os ataques da Rússia o permitam, o aconselhável seria adotar uma posição de "defesa ativa" para evitar continuar perdendo território e reforçar as defesas.

O governo de Biden está em uma posição complicada. A fadiga da guerra também é sentida no cenário doméstico. A campanha republicana, argumentando que são recursos desperdiçados em países distantes, encontra eco em setores do eleitorado. Depois de exaltar a "vitória da Ucrânia", Biden deveria evitar que uma negociação na qual a Ucrânia abdique de 18% de seu território atualmente sob ocupação russa seja percebida pelos inimigos dos Estados Unidos como uma derrota do Ocidente.

Se no ano passado o cenário mais provável era o de um "conflito congelado" ao estilo da guerra da Coreia, agora aumenta a probabilidade de que a guerra continue pelo menos mais um ano, alternando períodos de estagnação com ofensivas por parte da Rússia. Como mencionado em outras análises, a Rússia está progredindo taticamente, embora ao custo de aumentar sua dependência da China e ter a OTAN em suas fronteiras. No entanto, a estratégia americana de desgastar a Rússia usando a Ucrânia como peão parece ter atingido seus limites, e a extensão desse desgaste e seu significado estratégico ainda estão por serem vistos.

O perigo de uma guerra no Oriente Médio

Os Estados Unidos vinham impulsionando uma política de "normalização" das relações entre os Estados árabes e o Estado de Israel, com o objetivo de isolar o Irã e considerar encerrada a luta nacional palestina. Essa política foi iniciada por Donald Trump em 2020 com os Acordos de Abraham e continuada por Biden. Nos dias que antecederam o ataque surpresa do Hamas em outubro passado, Biden estava avançando com a "normalização" das relações entre Israel e a Arábia Saudita. No entanto, ao contrário de Trump, a política de Biden incluía o restabelecimento de certo nível de relações com o regime iraniano.

Muito embora não compartilhemos nem dos métodos nem da estratégia do Hamas, a ação deles trouxe novamente à tona a luta histórica do povo palestino contra a opressão do Estado de Israel, um regime de apartheid intensificado sob os governos sucessivos de Netanyahu e seus aliados da extrema-direita religiosa e dos colonos.

A brutal guerra do Estado de Israel contra o povo palestino em Gaza, com o apoio dos Estados Unidos e das potências europeias, desmantelou esse esquema geopolítico e ameaça escalar para uma guerra regional, que em última instância poderia resultar em uma guerra entre os Estados Unidos e o Irã.

De fato, praticamente todos os aliados do Irã que compõem o chamado "eixo da resistência" já estão envolvidos em ações militares de diversas proporções: o Hezbollah no Líbano, as milícias relacionadas ao regime iraniano que atuam na Síria, Iraque e Jordânia, e os houthis, que têm atacado navios comerciais no Mar Vermelho, levando a bombardeios dos Estados Unidos e Grã-Bretanha no Iêmen. Além disso, houve uma escaramuça entre Irã e Paquistão devido ao duplo atentado no Irã, no qual cerca de 100 pessoas morreram. Embora não tenha uma relação direta com a guerra em Gaza, não pode ser separado do clima tenso na região.

O incidente mais sério foi o ataque a uma base dos Estados Unidos na Jordânia por parte de aliados do Irã, que resultou na morte de três soldados norte-americanos. Em um equilíbrio delicado entre não parecer fraco e evitar a escalada, o governo de Biden respondeu com um ataque a 85 alvos de milícias aliadas do Irã no Iraque e na Síria, mas tomou cuidado para não atacar diretamente o Irã.

O governo de Biden encontra-se em uma situação cada vez mais complicada. É o principal aliado e sustentáculo financeiro e militar do Estado de Israel, mantendo apoio incondicional ao governo de extrema-direita de Netanyahu, aos partidos dos colonos e à ultra-direita religiosa. Estes declararam abertamente suas intenções de expulsar o povo palestino de Gaza e Cisjordânia. Não apenas é cúmplice, mas também é quem possibilita o genocídio de Israel em Gaza. No entanto, ao mesmo tempo, a política dos Estados Unidos é reduzir a intensidade do conflito, com a colaboração da Arábia Saudita e outros aliados no mundo árabe, para evitar que a dinâmica evolua para uma guerra regional, o que levaria novamente ao envolvimento direto dos Estados Unidos com tropas no Oriente Médio.

Até o momento, os esforços diplomáticos, incluindo a reintrodução da falsa "solução de dois Estados", têm sido completamente infrutíferos. Existe uma contradição entre o interesse de Biden, que busca recompor as alianças entre o Estado sionista e as monarquias árabes (algo impensável se Netanyahu não interromper a matança em Gaza), e a estratégia de sobrevivência de Netanyahu, que visa sustentar a guerra o máximo possível, já que é sua única esperança de manter o poder e evitar prisão eventualmente.

Netanyahu intensificou ainda mais a situação com o ataque massivo em Rafah. Em resposta, o Egito, que junto com o Catar está participando de negociações indiretas com o Hamas para a libertação de reféns, levantou a possibilidade de até mesmo se retirar dos acordos de Camp David. Por isso, o secretário de Estado Antony Blinken afirmou que a situação no Oriente Médio é a mais perigosa desde 1973.

“Soft landing” sobre terreno escorregadio

A acumulação de contradições e riscos "extraeconômicos" parece ter saído do radar pragmático dos grandes bilionários. As previsões mais pessimistas sobre a economia mundial não se concretizaram imediatamente. Na sua atualização das perspectivas internacionais de janeiro deste ano, o FMI revisou modestamente para cima o crescimento global, estimado em 3,1% para 2024, principalmente devido ao desempenho melhor do que o esperado dos Estados Unidos e da China. Para 2025, prevê um crescimento de 3,2% (a média histórica para o período de 2000 a 2019 foi de 3,8%). Quanto ao comércio global, espera-se que se expanda 3,3% em 2024 e 3,6% em 2025, muito abaixo da média histórica de 4,9%.

De acordo com o FMI, a economia global está caminhando para um "soft landing", ou seja, para uma saída da inflação que aumentou no pós-pandemia e como efeito secundário da guerra na Ucrânia e das sanções, sem que o aumento das taxas de juros - a medida monetarista adotada pelos bancos centrais para reduzir a inflação - tenha causado uma recessão global ou, pior ainda, um cenário de "estagflação". No entanto, mais do que otimismo, é uma visão menos pessimista: a expansão é lenta e, acima de tudo, vulnerável a riscos geopolíticos, como os ataques a navios comerciais no Mar Vermelho pelos houthis no Iêmen, que mesmo se permanecerem no nível atual, podem interromper as cadeias de abastecimento e as rotas comerciais, aumentando o custo das commodities.

É importante destacar que por trás da média geral existem desigualdades. Rigorosamente falando, a economia norte-americana está em melhor forma, pelo menos conjunturalmente; cresceu 3,3% anualizado no último trimestre de 2023, a inflação diminuiu de 8% em 2022 para 3,1% no final de 2023 (ainda acima da meta de 2% do FED). A taxa de desemprego permanece em 3,6%, praticamente em níveis de pleno emprego. No entanto, como aponta o economista marxista M. Roberts, o crescimento está abaixo e a inflação acima dos níveis pré-pandemia, especialmente os preços ao consumidor nos Estados Unidos e na Europa estão 17-20% mais altos. Este dado explica por que a grande maioria da população trabalhadora e de classe média norte-americana não percebe melhorias em sua situação pessoal, o que diminui o impacto eleitoral positivo para o atual governo da "bidenomics".

Além disso, o Federal Reserve (FED) não anunciou, conforme esperado pelos mercados, nenhuma redução na taxa de juros a curto prazo (alguns especulavam que a queda poderia começar em março), aumentando assim o peso nas economias domésticas e corporativas devido aos encargos com juros das dívidas. Segundo a revista Economist, há pelo menos três sinais de preocupação para o futuro. O primeiro é que os consumidores já teriam esgotado o excesso de poupança durante a pandemia, levando muitas empresas a esperarem uma queda nas vendas. O segundo é uma possível retração do consumo na China e o terceiro é uma desaceleração do "boom manufatureiro" que havia sido sugerido com a aprovação da chamada "lei dos Chips", um poderoso pacote de estímulo de 52 bilhões de dólares para a produção local de semicondutores, do qual apenas uma pequena parte foi executada. A esse cenário soma-se o risco bancário-financeiro representado pela expansão dos negócios entre os bancos tradicionais e o setor de "bancos na sombra", um setor de credores informais como as fintechs, ao qual as instituições financeiras americanas já concederam empréstimos que ultrapassam um trilhão de dólares. Esses eventos, como a crise de 2023 desencadeada pelo colapso do Silicon Valley Bank, acionam alarmes e expõem as vulnerabilidades do sistema bancário, que, sob a presidência de Donald Trump, se libertou das tímidas regulamentações que seguiram a crise de 2008.

A União Europeia escapou por apenas alguns décimos da recessão (é previsto um crescimento anêmico de 0,65%), exceto a Alemanha, que registrou uma queda de 0,3%. O bloco europeu como um todo está enfrentando uma crise significativa no setor agrícola, que, em um contexto de queda nos preços internacionais, perdeu competitividade em relação às importações da Ucrânia. Além disso, o setor é prejudicado pelas regulamentações da UE, incluindo a redução do subsídio ao diesel, que transfere o custo da chamada "transição verde" principalmente para os pequenos produtores.

Um quarto de século depois, o debate sobre se a Alemanha é novamente o "homem doente" da Europa ressurgiu, ou se está sofrendo de fadiga, como considera o governo, e precisa de um impulso de cafeína. A inflação, o militarismo, as tensões geopolíticas que conspiram contra a orientação exportadora e, principalmente, o fim do modelo produtivo baseado na energia barata proveniente da Rússia são alguns dos elementos que explicam essa situação. A prolongada estabilidade da era Merkel ficou para trás, e a Alemanha está entrando tardiamente em uma dinâmica de crises políticas e conflitos sociais sem precedentes nas últimas décadas.

Em um outro nível está a China, que, como afirma Roubini, está passando por um "aterrissagem acidentada" que arrasta consigo um crescimento estimado abaixo de 5,2% em 2023. Embora o FMI tenha melhorado sua previsão de crescimento para 2024 - de 4,2% para 4,6% - a tendência ainda aponta para uma desaceleração econômica devido a uma combinação de fatores. Alguns dos mais imediatos incluem a custosa e prolongada falência da Evergrande, que expôs a bolha imobiliária e de construção, setores que representam pelo menos 20-25% do PIB. A queda no mercado de ações fez com que os mercados da China e de Hong Kong perdessem 1,5 trilhão de dólares apenas em janeiro de 2024. Agora, o governo de Xi Jinping está tentando reverter essa situação recomprando ações de empresas estatais. Uma tendência persistente à deflação - o índice de preços ao consumidor registrou a queda mais acentuada em 15 anos em janeiro - é um sintoma das dificuldades estruturais, já impactando negativamente a economia mundial, principalmente devido à redução na demanda por importações, incluindo a soja.

Em síntese, há um consenso relativo em relação à "foto" da economia global. Mesmo N. Roubini, o economista burguês mais "catastrofista", reconhece que suas previsões mais sombrias não se concretizaram. No entanto, ele aponta algumas "mega-ameaças estanflacionárias" que obscurecem o otimismo relativo. Entre eles, menciona a possibilidade de que o aumento das taxas de juros (que por enquanto permanecem nos níveis atingidos em 2023) tenha um efeito retardado sobre as economias centrais em 2024, o peso da renegociação de dívidas corporativas e domésticas, e o endividamento estatal, que é crítico em países da periferia capitalista, sendo a Argentina o caso mais agudo, e outros países de baixa renda do chamado "Sul Global" diretamente em default. Entre os países importantes expostos a possíveis inadimplências (em 2022, contabilizavam-se até 50 nessa situação), estão o Egito e o Paquistão, que entraram em programas rigorosos de ajuste com o FMI, o que já está tendo consequências sociais e políticas. O padrão de endividamento no caso do Paquistão, como em outros países asiáticos como Sri Lanka, e principalmente na África, é o peso dos empréstimos da China na composição da dívida, especialmente devido aos mega projetos de infraestrutura da Iniciativa da Rota da Seda. Diante da impossibilidade de pagamento, esses países recorreram aos conhecidos "programas de resgate" do FMI.

Para M. Roberts, as perspectivas são ainda mais sombrias, pois fora dos Estados Unidos, na maioria dos países, o crescimento seguirá uma dinâmica de desaceleração, com tendências recessivas na Europa e América Latina (neste caso, devido ao impacto da crise argentina). Assim, além dos números, a percepção geral estará mais próxima de uma recessão do que de um "aterrissagem suave". Mas, acima de tudo, existem fatores de risco extraeconômicos, entre os quais se incluem desde algum choque geopolítico que possa elevar novamente os preços internacionais de energia e alimentos, até crises político-estatais e explosões na luta de classes.

Neoliberalismo “zumbi”: guerra comercial e tendências protecionistas

Além da conjuntura, as tendências protecionistas, que vêm se desenvolvendo nos países centrais como resultado da crise capitalista de 2008 e do esgotamento da hegemonia neoliberal globalizadora, podem dar um salto com uma nova presidência de Trump. Embora o alcance da crise da globalização seja um tema ainda sujeito a debate, é um fato que a chamada "hiperglobalização" chegou ao fim. E também um fato que o ciclo neoliberal está se esgotando, embora o neoliberalismo mantenha uma sobrevida, ou até mesmo retorne como uma ofensiva reforçada sobre os trabalhadores em suas versões paleolibertárias e autoritárias da extrema direita, sintetizada no discurso delirante de Milei em Davos apontando o "coletivismo" como inimigo principal, supostamente capturando o mundo capitalista.

Desde a Grande Recessão de 2008, tem ocorrido um recuo na globalização, não sem contradições, em um contexto geral de crescente competição e guerra comercial entre os Estados Unidos e a China. Esse retrocesso da globalização neoliberal foi aprofundado com a pandemia em 2020 e com as guerras e tensões geopolíticas que evidenciaram a vulnerabilidade das cadeias de suprimentos. O exemplo mais recente é o impacto no comércio internacional causado pelos ataques dos hutis no Mar Vermelho, um desdobramento da guerra (genocídio) de Israel em Gaza.

A quantidade de neologismos que aparecem nos meios financeiros expressa, à sua maneira, a dificuldade de definir esse novo paradigma em que economia e geopolítica se entrelaçam. Os mais otimistas em relação à resiliência capitalista falam em "slowbalisation", ou seja, a continuidade sem mudanças significativas da fase globalizadora, mas em câmera lenta. Aqueles que veem uma crise irreversível falam em "desglobalização", enquanto a maioria dos analistas burgueses tende a favor de cenários híbridos. O neologismo mais recente é a "glocalização", ou seja, uma situação intermediária entre a regionalização e a globalização, que seria mais bem definida negativamente e poderia ser resumida na fórmula nem globalização nem autarquia.

Em termos gerais, e com as diferenças lógicas conforme o país, essa reconfiguração implica garantir cadeias de suprimentos mais próximas (nearshoring), preferencialmente localizadas em países amigos (friendshoring) ou afastadas de pontos geopolíticos sensíveis, conhecido na linguagem geopolítica e econômica como "derisking". Além disso, implica também na relocalização nacional de certas manufaturas e um maior grau de intervenção estatal do que o preconizado no credo neoliberal (um caso emblemático é a "lei de chips" e a "redução da inflação" nos Estados Unidos).

Em várias análises, temos destacado a tensão entre a estrutura internacionalizada do capitalismo, da qual grandes monopólios se beneficiam, principalmente os norte-americanos como a Apple, e as tendências protecionistas, juntamente com a competição tecnológica cada vez mais acirrada, como evidenciado na corrida entre os Estados Unidos e a China pelo domínio da Inteligência Artificial, um dos temas centrais do Fórum Econômico Mundial em Davos.

A grande incógnita é o que uma nova presidência de Trump poderia significar para a economia e o comércio internacional. Durante seu mandato, sob o lema de tornar os Estados Unidos grandes novamente (MAGA), Trump retirou-se do Tratado Transpacífico e de outros acordos de livre comércio, reformulou o NAFTA com México e Canadá, agora chamado de T-MEC (entre outras medidas, limitou a possibilidade de a China se beneficiar de tarifas promocionais e promoveu a redução da lacuna salarial com o México na indústria automotiva). No entanto, a medida mais disruptiva que ele tomou foi iniciar uma guerra comercial com a China, impondo uma tarifa de 25% às importações e posteriormente concentrando o ataque no setor tecnológico (5G e outras tecnologias de uso militar), algo que Biden manteve praticamente inalterado.

As bases deste tipo de "novo ordenamento comercial" foram expostas por Robert Lighthizer, o responsável pelo comércio na administração Trump, em um livro recente intitulado "No Trade Is Free. Changing Course, Taking on China, and Helping America’s Workers" (Nenhum Comércio é Livre. Mudando de Rumo, Enfrentando a China e Ajudando os Trabalhadores Americanos). Desde a capa, ele apresenta o programa da direita populista, que, como se sabe, tem grande parte de sua base eleitoral nos setores prejudicados pela globalização. Esse influente funcionário e atual conselheiro de campanha propõe uma guerra comercial intensificada contra a China, que começaria revogando o status de "relações comerciais normais permanentes" concedido à República Popular quando ingressou na OMC em 2000.

Nessa campanha, Trump se apresenta com um programa protecionista reforçado. "Tariff Man", como ele mesmo se apelidou há alguns anos, prometeu, sem grandes precisões, impor uma tarifa universal de 10% a todas as importações, que aumentaria na mesma proporção para países que impusessem tarifas sobre bens norte-americanos ("olho por olho, tarifa por tarifa", disse). E prometeu encerrar o Marco Econômico Indo-Pacífico para a Prosperidade, um acordo comercial lançado por Biden em 2022 com 13 países da região, que, sem propor reduções tarifárias, visava recuperar influência frente à China.

Independentemente das formas táticas (guerra comercial e acordos bilaterais no caso de Trump, ou ampliação de acordos comerciais ou parceiros no caso de Biden) e dos momentos de maior ou menor confronto comercial, o problema estratégico que os Estados Unidos enfrentam é a necessidade de avançar no "desacoplamento" de sua economia em relação à China, especialmente em áreas críticas, considerando a perspectiva de recrudescimento das rivalidades e disputas econômicas, geopolíticas e eventualmente militares.

Crise orgânica, polarização e luta de classes

Paradoxalmente, 2024 será o ano eleitoral mais significativo da história moderna, com 4 bilhões de pessoas em mais de 60 países indo às urnas. No entanto, na maioria desses processos eleitorais, a profunda crise da democracia liberal será novamente evidente, um fenômeno que tem se desenvolvido ao ritmo das tendências de crises orgânicas que atravessam países centrais e periféricos há mais de uma década. Talvez a expressão mais clara dessa crise orgânica seja a eleição norte-americana, na qual a disputa pela posição máxima do poder mundial ocorre entre Joe Biden, o candidato Democrata com evidentes problemas de senilidade, e Donald Trump, que enfrentará a contenda com dezenas de processos judiciais, incluindo a acusação de promover um golpe de Estado devido à tentativa fracassada de tomar o Capitólio em 6 de janeiro de 2021.

O esgotamento do "consenso neoliberal", ou seja, a alternância no governo entre as variantes conservadoras e socialdemocratas do "extremo centro" (Tariq Ali), no contexto de uma profunda polarização política e social, dividiu as classes dominantes e resultou na crise dos partidos burgueses tradicionais e no chamado "momento populista", tanto de esquerda (fenômeno Sanders, Podemos e até um pouco mais atrás no tempo Syriza) quanto de extrema direita, como a presidência de Trump, com fortes características bonapartistas. Essas tendências bonapartistas têm diferentes expressões, como o fortalecimento do presidencialismo e o crescente peso do poder judicial (como visto na Lava Jato no Brasil) ou o papel da Suprema Corte nos Estados Unidos, cuja maioria conservadora avança sobre direitos democráticos (aborto) ou desmantela aspectos do "Estado ampliado" (ação afirmativa).

Neste contexto, destaca-se como fenômeno o surgimento da extrema direita, que se consolidou eleitoralmente como vetor do descontentamento de amplas camadas sociais, incluindo setores populares. Esse fenômeno expressa, ainda que não de maneira direta, mas com múltiplas contradições, as tentativas autoritárias cesaristas da burguesia para reverter a seu favor a relação de forças e resolver a crise orgânica.

A necessidade de uma espécie de "cesarismo" é debatida publicamente pelos intelectuais da direita trumpista. Essa discussão de "teoria política" é concretizada no programa Project 2025 da Heritage Foundation - o think tank conservador surgido durante o reaganismo - que explicitamente propõe a necessidade de "institucionalizar o trumpismo", ou seja, fortalecer o poder executivo, desmantelar agências federais e formar uma burocracia estatal puramente conservadora. Alguns meios liberais se referem a isso quando falam que Trump instauraria uma "ditadura" (civil, entende-se).

Como é proposto em um interessante artigo de F. Lordon, a dinâmica é que a extrema direita avance sobre a direita tradicional. O texto de Lordon é sobre a França, em relação à votação da rigorosa lei de imigração, mostrando como Macron adotou o programa de Marine Le Pen, mas com as devidas diferenças em cada caso; essa é uma tendência geral. Como se observa, por exemplo, na Argentina, na tendência à integração do PRO (o partido da direita macrista) ao governo libertário de La Libertad Avanza.

Dito isso, é necessário precisar o alcance do fenômeno e seu significado para as perspectivas da luta de classes. Como evidenciado pelo início do governo de Javier Milei na Argentina - até agora o único representante da extrema direita paleolibertária a chegar ao poder - trata-se de tentativas bonapartistas fracas e instáveis, principalmente porque ainda têm pela frente a tarefa mais árdua e arriscada de alterar a relação de forças, ou seja, derrotar a classe trabalhadora e os setores populares.

A contracara desse avanço da extrema direita é a disposição de luta que importantes setores de trabalhadores, jovens e setores populares estão demonstrando. Estamos atravessando a terceira onda de luta de classes desde a crise de 2008. A primeira teve como pontos mais altos a Primavera Árabe de 2011, os "indignados" no Estado Espanhol e a luta na Grécia contra o ajuste que terminou com a traição do Syriza no governo. A segunda onda, mais radicalizada e agitada, surgiu com a mobilização dos coletes amarelos na França e continuou com o levante de outubro de 2019 no Chile, seguido por Equador e a luta contra o golpe de estado na Bolívia, sendo interrompida pela pandemia.

As consequências da guerra na Ucrânia e da pandemia deram origem a esta terceira onda, que claramente tem um componente mais operário do que as anteriores, como evidenciado pelo processo de greves e organização sindical nos Estados Unidos, ou as importantes lutas trabalhistas nos centros imperialistas, como a onda de greves na Grã-Bretanha e na França. O processo mais avançado foi a luta contra a reforma da previdência na França em 2023, na qual a Révolution Permanente teve uma intervenção destacada, impulsionando, juntamente com setores da vanguarda trabalhadora, jovem e cultural, a Rede pela Greve Geral. Este processo difundido e massivo de luta não pôde triunfar devido à política conciliadora das lideranças sindicais, que se recusaram a organizar a greve geral e permitiram que Macron superasse a crise avançando com medidas bonapartistas. A profundidade do processo é evidenciada pelo fato de que, nos últimos anos, praticamente todo o conjunto das classes subalternas entrou em ação.

Nos últimos meses, manifestações de produtores agropecuários têm surgido em vários países europeus - Alemanha, França, Polônia e Espanha -, embora com mais contradições, também expressam essas tendências de luta. Na Alemanha, dezenas de milhares estão se mobilizando contra a extrema direita da Alternativa para a Alemanha e seus planos de deportação em massa de imigrantes.

O fenômeno mais dinâmico é o surgimento de um movimento massivo contra a guerra de Israel em Gaza e em solidariedade ao povo palestino, principalmente nos países centrais, com uma forte ênfase anti-imperialista que não era vista desde o movimento contra a guerra do Vietnã. Apesar dos brutais ataques dos governos imperialistas, que são cúmplices do genocídio do Estado de Israel e acusam aqueles que se mobilizam de "anti-semitismo", dezenas de milhares continuam a se mobilizar em Londres e outras cidades exigindo o fim da guerra de Israel em Gaza. Provavelmente, a magnitude do massacre contra o povo palestino e esse impressionante movimento podem ter influenciado a decisão da Corte Internacional de Justiça de aceitar a denúncia por genocídio apresentada pela África do Sul contra o Estado de Israel, um fato sem precedentes que aumenta o descrédito e o isolamento do Estado sionista e seus aliados, começando pelos Estados Unidos e seu presidente Joe "Genocide" Biden.

Embora seja um país secundário, na próxima fase a Argentina estará no centro da atenção mundial. Para a extrema direita internacional, é uma posição valiosa, como se viu na presença de seus representantes - o clã Bolsonaro, Santiago Abascal da Vox, José Antonio Kast do Chile e Víctor Orbán, entre outros - em sua posse em dezembro passado. Isso também ficou evidente em sua viagem messiânica a Israel e no convite para participar de fóruns da extrema direita, como a Conferência de Ação Política Conservadora em Washington. No entanto, também se perfila como um grande "laboratório da luta de classes", onde o PTS, como temos discutido, está convocado a desempenhar um papel crucial, lutando pela frente única operária, pela autoorganização e pela greve geral para que se abra a perspectiva da luta pelo poder operário. Em última instância, como Trótski afirmava, recuperando uma conclusão acertada de Lênin no início da Primeira Guerra Mundial, "se algumas revoluções não triunfarem, outras guerras virão".


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Claudia Cinatti

Buenos Aires | @ClaudiaCinatti
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