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Malucas correspondências históricas: contracultura, revoluções do Terceiro mundo e o Maio de 68

Afonso Machado

Malucas correspondências históricas: contracultura, revoluções do Terceiro mundo e o Maio de 68

Afonso Machado

No muro em movimento chamado história, as datas revolucionárias estão ameaçadas pela cambada reacionária de sempre. Num espaço barulhento deste muro parte significativa de uma geração escreveu com um spray de tintas ora vermelha, ora negra, a data 1968. É evidente que aquele ano sinônimo de orgasmo e revolução precisa ter sua memória preservada; por certo uma missão dificílima nestes dias em que o Toyotismo bate a carteira e o tempo de vida dos trabalhadores, enquanto a classe média toda “não me rele, não me toque” segue sexualmente reprimida e abobalhada. A tarefa de cultivar a tradição de ruptura lida, no caso especial de 68, com uma geração que prefere o instante mágico e explosivo dos fogos de artifício aos pesados e solenes monumentos de pedra.

Mas não se trata apenas de homenagear. Se faz necessário também entender o que deu errado nos sonhos daquela geração. Claro, muitos personagens importantes daquela época estão indo embora, o que tornam necessárias as homenagens. É parte do nosso trabalho militante rememorar o seu legado seminal em campos tão diversos como os da política, música, teatro, cinema etc. Na realidade 1968 foi o ápice de um processo de rebelião política e cultural que inicia-se ainda na década de 1940 e que ganharia cores louquíssimas nos anos de 1960. A geração baby boom entrou em cena no auge da bipolarização ideológica: indivíduos na casa dos vinte e poucos anos bagunçaram o coreto, desarrumaram o cenário esquizofrênico da Guerra Fria. Fazendo uso de um conceito psicanalítico, pode-se dizer que aquela garotada reivindicou um novo princípio de realidade, desafiando a um só tempo os valores burgueses do Bloco capitalista e a caretice petrificada do Bloco soviético. Cultivar as imagens da revolta que culminam em 1968 é o contrapondo estético, é a atitude crítica de cavar uma abertura no tempo para encontrar o que está atualmente reprimido, quer dizer, as forças indomáveis do desejo que opõem-se criativamente ao existente.

Qualquer pessoa de inteligência mediana já ouviu falar que durante a década de 1960 política e cultura existiram em temperaturas históricas elevadas; e isto numa perspectiva praticamente planetária. Outrossim, talvez o que deva ser enfatizado para as novas gerações é que as imagens transgressoras e libertárias de 68 ,em boa parte produzidas em torno de uma pré disposição anárquica que levou o nome de contracultura, foram dentro de pouco tempo esvaziadas e banalizadas devido a um claro limite político. Enquanto correlato histórico de um período de crises e revoluções, estas formas contestadoras tiveram vida curta na medida em que o projeto da revolução socialista internacional não foi posto em prática. As revoluções que se processaram nos países do Terceiro mundo não foram dirigidas pela classe operária, ao passo que nos países de Primeiro mundo, onde originam-se os fenômenos contraculturais, a crise da direção operária também era evidente. Importantes greves operárias ocorreram no período em países como Inglaterra , Itália e Estados Unidos, mas não chegou-se a uma situação pré-revolucionária. Como veremos mais adiante, distinto foi o caso da França em 1968: antes da burocracia sindical azedar o sonho, a criatividade da juventude e o movimento operário dialogaram numa senda revolucionária.

Obviamente que nem todos os movimentos culturais de juventude da década de 1960 são necessariamente movimentos contraculturais. A coisa toda era muito plural. O que está sendo destacado aqui são as possíveis correspondências históricas entre a violência revolucionária no Terceiro mundo e a rebelião contracultural no Primeiro mundo. As atitudes rebeldes e as manifestações artísticas que se desenvolveram em torno da contracultura, embora fossem algo distinto da concepção marxista da realidade, brotavam diretamente da atmosfera revolucionária da época. Todas elas pagaram um preço alto por não ter ocorrido em escala internacional a derrocada do capitalismo. Naquele problemático diálogo, por vezes indireto, entre explosões revolucionárias terceiro-mundistas e movimentos culturais de contestação estavam implícitos erros táticos, políticos e de leitura da realidade. Isto tudo envolveu deformações dentro da ação revolucionária nos países capitalistas atrasados e a ausência de uma base sólida de classe no Primeiro mundo. Não por acaso toda aquela energia utópica que emanou da época hippie, iria evaporar em pouco tempo.

A geração da grande recusa e das guerras de guerrilha

Vamos começar pelo fim. No final do filme Easy Rider (1968), expressão cinematográfica contracultural, os motociclistas bichos grilos interpretados por Peter Fonda e Denis Hopper são assassinados a sangue frio por um típico reacionário americano que atira á queima roupa de dentro de uma caminhonete. Fazendo uso do pensamento alegórico podemos afirmar que o assassino não era propriamente um homem mas a representação do sistema capitalista. Qual é o significado desta cena brutal? O estado utópico de liberdade em movimento, sem amarras e alheio aos valores burgueses, não poderia ser tolerado por um país sustentado por gente conservadora, intolerante e disposta a vigiar e defender de rifle na mão os valores do american way of life. Um modo de vida paralelo não poderia ser admitido por um Estado cujo exército ultra equipado estava levando uma surra de notáveis (e heroicos) camponeses plantadores de arroz no Vietnã. Não poderia existir saída, nenhuma fuga pelas autopistas americanas. A juventude rebelde americana encontrava-se sem destino.

A busca por uma alternativa existencial é inviável sem um projeto político de classe. O fato é que todo aquele esforço libertário traduzido em cabelos longos, amor livre e no apoio político ao movimento negro na luta pelos direitos civis, só poderia vingar na medida em que tivesse sua base concreta na classe social que não protagonizou a agitação política e social do período nos Estados Unidos: o proletariado. Uma boa parte deste último era inclusive, junto á classe média no jogo ideológico da Guerra Fria, hostil ás revoluções terceiro-mundistas. Os processos de independência da Ásia e da África, além das formas de insurreição na América Latina, consistiram (em boa parte) em confusas revoluções nacionais populares em que não raramente o campesinato era a ponta de lança. Estas experiências anticolonialistas que abalavam as áreas de influência geopolítica dos Estados Unidos, eram apresentadas pela mídia do Tio Sam como inimigas de todos os americanos. Embora tivessem certa influência socialista e leituras particularíssimas (quando não estranhas) do marxismo, estas revoluções nacionais não se tornaram revoluções socialistas.

A luta pela autodeterminação dos povos do Terceiro mundo efetivou-se segundo um processo de desintegração dos impérios coloniais e pela contestação do mito da superioridade racial das civilizações brancas. Após duas guerras mundiais(com a depressão econômica da década de 1930 no meio) começou a ruir o projeto neocolonial. Toda aquela baboseira ideológica em torno da Missão Civilizadora em que "os mocinhos europeus iriam levar as luzes do cristianismo e da alta cultura para os bárbaros da Ásia e da África" não se sustentava mais com a crise do imperialismo. A máscara caiu: a violenta expansão capitalista a partir da segunda metade do século XIX com Inglaterra, França, Alemanha, Holanda e Bélgica na dianteira, teve suas motivações históricas na necessidade econômica daqueles países por novos mercados, por territórios com farta matéria prima e mão de obra barata. Mas ao passo que a narrativa imperialista estava indo para as cucuias ao longo do século XX, burocracias que lideravam os movimentos de independência através da tática foquista da guerra de guerrilhas, estavam mergulhadas até o pescoço no esterco autoritário e manipulador de origem stalinista. A dinâmica militar da guerrilha rural que consiste primeiramente na tomada do poder local e posteriormente no cerco das cidades através do campo, descamba facilmente para um comando elitista separado das bases populares e com implicações políticas nacionalistas (este último aspecto explica em inúmeros casos históricos o clássico e fatal equivoco político em que organizações populares estabelecem alianças com setores das burguesias nacionais).

A organização guerrilheira do campesinato oprimido, valoroso e corajoso, logo indispensável para o sucesso das revoluções sociais, desconsiderava as determinações históricas internacionais do capitalismo na própria etapa do imperialismo: sem a direção dos trabalhadores urbanos organizados numa perspectiva internacional, o que se sucede após a tomada do poder é o isolamento político em fronteiras nacionais. Consequentemente ocorre o imobilismo e logo o atraso da vida econômica e cultural, abrindo alas para o controle burocrático e as práticas políticas autoritárias. O retrocesso das forças produtivas perante o cerco imperialista resulta numa cultura apaixonadamente nacionalista, hostil a qualquer influência estrangeira e avessa a toda inquietação/questionamento/invenção no plano dos costumes e das artes. Ou seja, o impulso revolucionário anti-imperialista encontra-se limitado em seu alcance político se a revolução nacional e popular não se transformar na revolução socialista, o que pressupõe a condução política do proletariado. As experiências revolucionárias do pós-guerra, tais como a Revolução chinesa de 1949 e a Revolução cubana de 1959, se desenvolvem em solo autoritário e nacionalista, sendo recorrente censura e perseguição a artistas e intelectuais (repressão envolvendo uma moral sexual caretíssima foi algo evidente em Cuba). Faltava na vida cultural destes e de outros países agora ligados(ou até certo ponto próximos) do Bloco soviético, aquilo que sobrava nas manifestações artísticas e políticas da contracultura do Primeiro mundo: criatividade, humor, balanço e sensualidade. Em tais manifestações nota-se a capacidade de criar uma nova linguagem que não aceita as imagens e condutas da vida burguesa. O filósofo alemão Herbert Marcuse, lido e badaladíssimo entre estudantes rebeldes dos Estados Unidos e que foi professor de gente do calibre de Ângela Davis, revela a importância política desta conduta contestadora. No prefácio de 1966 do seu clássico Eros e Civilização (1955), Marcuse afirma:

(...) “ Em defesa da vida: a frase tem um significado explosivo na sociedade afluente. Envolve não só o protesto contra a guerra e a carnificina neocoloniais, a queima do cartão de recrutamento, a luta pelos direitos civis, mas também a recusa em falar a língua morta da afluência, em usar roupas limpas, desfrutar os inventos da afluência, submeter-se á educação para a afluência. A nova boêmia, os beatniks e hispters, os andarilhos da paz- todos esses “ decadentes “ passaram a ser agora aquilo que decadência, provavelmente, sempre foi: pobre refugio da humanidade difamada(...)

Porém, o mesmo Marcuse, a exemplo dos seus amigos frankfurtianos, não acredita que a classe operária seja revolucionária. O filósofo pensava que os trabalhadores do Primeiro mundo desejavam estar integrados na sociedade afluente, infestada de bens de consumo com todas as suas falsas alegrias eletrônicas e de plástico. Para este pensador a juventude e o movimento negro estavam entre as poucas forças progressistas que contavam. Estamos assim diante de uma expressão filosófica oriunda de um período marcado pela crise da direção do movimento operário, pela falsa ideia de que o proletariado foi economicamente integrado e pela igualmente falsa suposição de que toda revolução proletária descambaria para a contra-revolução aos moldes do stalinismo. Este pensamento que animava a chamada "nova esquerda", desconsidera o proletariado enquanto a força motriz do trabalho no capitalismo (condição esta que faz dele o principal agente revolucionário no interior deste sistema). É um movimento político contestador que não possui uma base operária. O resultado histórico? A grande recusa dos movimentos de juventude acabaria por ser recusada, isto é, neutralizada pelos instrumentos da cultura dominante. Isto ficaria visível já na década de 1970.

A juventude de países como EUA, Inglaterra, França e Alemanha Ocidental estava na década de 1960 recusando a educação estabelecida, a repressão sexual, os valores patrióticos dos seus pais, enquanto o pau comia no Terceiro mundo através da guerrilha. Evidentemente que isto não resume toda a situação de todos os movimentos de juventude do período: nos países alinhados ao Bloco soviético houve contestação aos modelos políticos burocráticos e autoritários, como ilustra a Primavera de Praga em 1968. Em países como Brasil, a juventude lutava junto a setores avançados do proletariado contra regimes políticos ditatoriais. Estes são assuntos não são examinados aqui: iremos comentá-los em um outro momento. Nos debruçando agora sobre as transformações da cultura jovem no Primeiro mundo, se faz necessário observar que estas se davam em meio a um assombroso desenvolvimento tecnológico.

Cultura de massa e as conexões históricas entre oprimidos

Enquanto expressão do desenvolvimento tecnológico do capitalismo, os meios de comunicação de massa apresentaram a imagem daquilo que foi mais de uma vez classificado de humano planetário. O efeito interno da Guerra Fria no mundo capitalista, que perdia muito da sua área de influência entre as décadas de 1940 e 1960, foi a crescente concentração de grandes empresas que visam a sua mundialização: as multinacionais procuram controlar mercados e esferas de investimento de capital. As tecnologias em torno da eletrônica e a apologia do consumismo em tempo integral deslanchavam. A principal consequência desse processo internacional é a submissão dos países capitalistas atrasados; afinal, os governos dos países saqueados e enamorados do imperialismo não priorizam as necessidades dos povos que vivem em economias precárias mas sim as demandas internacionais do mercado. Em meio a estas contradições econômicas e sociais em escala internacional, os satélites artificiais impulsionam o desenvolvimento das telecomunicações. Frutos da corrida espacial entre EUA e URSS, estes satélites possibilitaram tanto a vigilância sobre as manobras militares dos países quanto a simultaneidade de imagens: as relações entre os povos se modificam e se intensificam com a acelerada circulação de notícias, propagandas e eventos em meios de comunicação como a televisão. A construção do muro de Berlim em 1961 e o lançamento de um novo refrigerante, a crise dos misseis em 1962 e as facilidades de uma nova linha de eletrodomésticos: acontecimentos históricos e hábitos de consumo são percebidos simultaneamente entre diferentes países.

É neste desenho geopolítico que o humano planetário habita e é projetado através do cinema, do rádio, das revistas, dos discos, da televisão etc. Entretanto, os capitalistas foram pegos de calça curta com a capacidade dialética das imagens que se estruturam nos novos processos de comunicação de massa. O cabelo comprido de um jovem caindo sobre sua face insatisfeita e insolente, o guerrilheiro barbudo do Terceiro mundo, os operários em greve, a moça de minissaia que não quer ser como sua mãe e o punho cerrado de um militante negro, são imagens que perturbavam a ordem capitalista. No tenso xadrez com a União Soviética em que armas nucleares desfilam junto com espaçonaves, os Estados Unidos percebem que os fundamentos da sociedade liberal estavam por um tris. Estilhaçar a imagem da cultura branca e patriarcal era um ato de rebeldia que tinha enquanto referências povos historicamente saqueados pelo imperialismo e também populações que foram escravizadas no passado. As figuras de mulheres e homens negros, seja dentro ou fora do continente africano, convertem-se na esperança de novos modelos culturais para escapar de toda repressão imposta pela civilização burguesa. As rebeliões anticolonialistas se alastravam durante a Guerra Fria, muito especialmente durante as décadas de 1960 e 1970. Rebeliões eclodiam em Madagascar, Gana, Costa do Marfim, Quênia, Tunísia, Marrocos, Argélia, Congo, Moçambique. O poeta e líder político africano Agostinho Neto traduz em versos os sentimentos da luta de libertação nacional:

O choro durante séculos
Nos seus olhos traidores pela servidão dos homens
No desejo alimentado entre ambições de lufadas românticas
Nos batuques choro de África
Nas fogueiras choro de África
Nos sorrisos choro de África
Nos sarcasmos no trabalho choro de África
O choro de séculos
(...) O choro de África é um sintoma
Nós temos em nossas mãos outras vidas e alegrias
Desmentidas nos lamentos de suas bocas – por nós!
E amor
E os olhos secos.

Apesar do inegável valor de antítese nas figuras das nações africanas que se insurgem contra o imperialismo, é preciso pensar os limites históricos destas rebeliões. São muitas as leituras equivocadas que revolucionários africanos realizaram do marxismo, rejeitando indevidamente conceitos vitais como Luta de Classes e Ditadura do Proletariado. Descolonizar e revolucionar não são sempre a mesma coisa. Para acertar as contas com o racismo e os séculos de dominação colonial, deve-se compreender que aqueles são intrínsecos ao capitalismo. A derrocada deste sistema de natureza internacional pressupõe uma ação internacional que consiste na expropriação da burguesia, na vitória do trabalho sobre o capital. Isto não ocorreu no continente africano, e não espanta portanto que golpes de Estado com ditadores que refizeram laços com o imperialismo passariam a ser uma constante no território. Mas ainda assim é impossível pensar a revolução socialista internacional sem a rebelião negra: anticapitalismo e antirracismo consistem num mesmo idioma; este idioma transcende inclusive as fronteiras dos países africanos e se faz atuante nos países em que populações de origem africana foram escravizadas no passado e são marginalizados/oprimidos no presente. Nos Estados Unidos, potência imperialista, as ações do movimento negro contra a segregação envolveram fatos políticos de primeiríssima importância nos anos de 1960, quando despontaram líderes como Martin Luther King e Malcom X. Iniciativas como a fundação do Partido dos Panteras Negras desafiavam a elite branca. Porém, tais manifestações políticas não conseguiram, por inúmeras razões, se articular com o conjunto dos trabalhadores americanos. Há de se considerar no entanto o potente e transgressor caldo cultural que nasce neste processo de contestação social.

A afirmação pulsante dos traços étnicos e a valorização estética da cultura negra, consistem na oposição aos padrões estéticos e morais da cultura branca dominante. "Poder negro" é uma expressão que fazia parte das ações, dos gestos e da linguagem dos panteras negras. Aliás, uma boa parte da garotada branca estava, já há um bom tempo, de saco cheio e definitivamente horrorizada com as formas de castração, hipocrisia e brutalidade da sociedade racista. Dentro da classe média branca norte americana verifica-se, desde as décadas de 1940 e 1950, jovens que não suportavam a segregação racial em meio ao asfixiante clima nuclear da Guerra Fria. Lá estavam os hipsters e os beats uivando ao som do jazz e profundamente identificados com a cultura negra. O poeta Allen Ginsberg, certamente o expoente literário mais consistente da Beat Generation e que soube fazer a ponte histórica dessa com a geração hippie de 1960, demonstrou com o seu Howl (Uivo) de 1955, que a autêntica poesia moderna dos Estados Unidos só podia ser um blues. Ginsberg foi um dos caras que revelou o desejo dos jovens em romper de maneira desesperada, ingênua e autodestrutiva com os padrões da cultura branca e puritana:

Eu vi as melhores mentes da minha geração destruídas pela loucura
Histéricos, nus e famintos
(...) Na escuridão sobrenatural dos prédios gelados flutuando
Através do topo das cidades contemplando o jazz...

A dualidade entre o puritanismo branco e a sensualidade negra foi desafiada quando o som do saxofone, em toda intensidade do estilo bebop, juntou a rapaziada de cuca aberta pelas noites do underground. Nenhuma concessão aos pais brancos fundadores da América. O que interessava era o canto do blues que já marcava com fogo e lágrimas as áreas rurais na região Sul durante século XIX, desde pelo menos a década de 1860. Na década seguinte, em 1870, músicos negros de Nova Orleans se sentaram aos pianos e mostraram que sexualidade e música não se separam. Foi precisamente isso que a geração de músicos de jazz, blues e rock iriam sacar no século seguinte. No pós Segunda Guerra encontramos jovens abastados que não queriam ter uma geladeira e dois carros. Eles não queriam ser heróis de guerra, não queriam se casar e serem felizes para sempre nos assexuados subúrbios das cidades americanas. Essa juventude identificava-se com a vida boêmia dos músicos negros de jazz. É o White Negro, na expressão de Norman Mailer. São os hipsters, cujo louco modo de vida foi registrado pela literatura beat. Segundo Mailer:

A única moralidade Hip é fazer o que se sente sempre e onde for possível

É isso aí: os padrões culturais estavam começando a entrar em convulsão nas décadas de 1940 e 1950. Em termos filosóficos a França trouxe um prenúncio com o existencialismo. Jean Paul Sartre expunha em ensaios filosóficos, contos, romances e peças de teatro que a existência precede a essência, impulsionando o jovem a compreender-se como sujeito livre que não precisa prestar contas a nenhuma moral estabelecida. A náusea tomava conta de intelectuais e artistas que no desolador cenário do pós guerra não se identificavam com a moral burguesa do Império francês. Os países capitalistas avançados estavam começando a ficar assustados com seus filhos rebeldes. De repente o chapéu, o terno e a gravata ficaram cheios de traça. No cinema americano, o angustiado Marlon Brando traja blusão de couro e calça jeans: com seu bando de motociclistas agita a vida pacata do americano médio. O desajustado James Dean passa com o seu automóvel em alta velocidade e atropela a falsa aparência de felicidade das famílias de classe média. O rock americano de Little Richard, Chuck Berry e Elvis Presley produz uma inversão psicológica na garotada branca que passa a se identificar com a música/linguagem negra, isto é, com a cultura dos oprimidos.

Chama atenção que a existência do White Negro ao longo das primeiras décadas do pós guerra, não estava apenas nos EUA: as informações sensuais da música negra e a busca por uma alternativa frente a uma cultura reprimida, atravessaram o Atlântico. Foi no processo de reconstrução das economias europeias arrasadas pela Segunda Guerra mundial (1939-45) que a demarcação capitalista dos EUA trouxe, dentre outras coisas, discos de blues. Roger Daltrey, vocalista da emblemática banda de rock inglesa The Who, afirmou que havia uma profunda identificação da juventude proletária inglesa com a música negra americana. Essa é uma história muito bonita: a sensibilidade de quem é ferrado, reprimido, marginalizado, não tem fronteiras nacionais. O melhor do rock americano e inglês deve tudo ás formas de sentir e se expressar das gerações de escravizados que plantaram algodão mas não deixaram de cultivar paralelamente um canto a um só tempo sofrido e libertador. O blues é terapêutico e ao mesmo tempo político. No contexto inglês em particular a adoção das formas libertárias da música negra americana diz respeito ao sepultamento da era vitoriana. Eram novas formas que expressavam a crise do Império britânico.

Quem poderia negar a crise do imperialismo inglês após a Segunda Guerra Mundial? Toda a revolução cultural promovida pela juventude inglesa durante a década de 1960 dinamitou o que havia sobrado da moral vitoriana. Durante o longo reinado da rainha Vitória, entre os anos de 1837 e 1901, a Inglaterra teve o seu auge industrial e o apogeu da dominação neocolonial. Enquanto operários ingleses morriam de fome e culturas de povos estrangeiros eram destruídas na base dos canhões, das baionetas, dos hinos cristãos e com muito chá das cinco, a burguesia inglesa celebrava as conquistas do Império britânico através de um modo de vida polido, recatado e cheio de discrições. Mas com a Inglaterra deixando de ser o centro da economia capitalista desde a Primeira Guerra Mundial (1914-18), seu Império colonial foi sendo progressivamente abalado, o que ficou evidente após a Segunda Guerra. O conservadorismo e a hipocrisia de proveniência vitoriana perderam sua infraestrutura a partir da reconstrução econômica através do Plano Marshall de 1947. A rapaziada que nasceu ou era criancinha nos anos de 1940, chega na década de 1960 amamentada pela cultura de massa norte americana e ao mesmo tempo furiosa e sexualmente insatisfeita. Era evidente que a educação burguesa e o recatado corpo inglês perderam os seus fundamentos históricos. As velhas tradições inglesas com seus recalques foram contestadas nos planos do rock e da moda. A minissaia da estilista Mary Quant, o penteado e a irreverência de John Lennon e o rebolado de Mick Jagger representam a oposição da juventude ao conservadorismo, ecoando a crise do imperialismo nos países capitalistas avançados.

Um cenário povoado por hippies e guerrilheiros

Perante as transformações comportamentais e os crescentes gestos anárquicos presentes em territórios culturais como a música e a moda, a imprensa norte americana faz circular a partir dos anos de 1960 a expressão "contracultura". Existe muita polêmica em torno deste conceito. Discutiu-se um bocado se tratava-se de um carimbo midiático para classificar os movimentos culturais de rebeldia da época ou se contracultura é um conceito histórico capaz de identificar e definir em todas as épocas as manifestações de revolta contra a cultura oficial. O saudoso jornalista e filósofo Luís Carlos Maciel, que nas páginas do Pasquim atualizou a juventude brasileira sobre as manifestações do underground, apresenta uma boa definição do termo:

(...) O termo "contracultura" foi inventado pela imprensa norte americana, nos anos 60, para designar um conjunto de manifestações culturais novas que floresceram, não só nos Estados Unidos, como em vários outros países, especialmente na Europa e, embora em menor intensidade e repercussão, na América Latina. Na verdade, é um termo adequado porque uma das características básicas do fenômeno é de fato se opor, de diferentes maneiras, á cultura vigente e oficializadas pelas principais instituições das sociedades do Ocidente (...). Contracultura é a cultura marginal, independente do reconhecimento oficial. No sentido universitário o termo é uma anticultura. Obedece a instintos desclassificados nos quadros acadêmicos.

As manifestações contraculturais, plurais em sua constituição, não podem ser sistematizadas, não apresentam um programa político ou estético definido. Idealista por natureza e não redutível a uma prática disciplinada e regular, a contracultura não estabelece uma intepretação do desenvolvimento histórico da realidade em suas premissas materiais. As formas contraculturais dizem respeito a uma espécie de visão instantânea da realidade, ao "aqui e agora", envolvendo assim descrições/relatos de momento. Estas manifestações espontâneas de oposição radical não encontram seu campo de expressão e atuação em partidos, sindicatos, comitês, conselhos etc. É a arte, ou ao menos proposições artísticas sem regras fixas, o campo fecundo para expressar um modo de vida á margem da cultura dominante: caronas, sexo livre, experiências com drogas, uma vida simples e rural junto a comunidades alternativas etc. Por certo a contracultura não resiste ao rigor da crítica materialista histórica. Timothy Leary, o psicólogo americano que tornou-se um propagandista do LSD (ácido lisérgico), defendia o chamado droup out(cair fora). Porem, era sempre embaraçoso quando alguém desejava saber de maneira precisa no que consiste “ cair fora “: para onde? O que se cria fora da cultura e sob quais condições econômicas? Dar as costas ao desenvolvimento das forças produtivas? Sob uma base política muito frágil os movimentos contraculturais se isolam dentro do sistema e são acossados por ele. Mais de uma vez foi dito e explicado que não se transforma a sociedade "caindo fora": de um jeito ou de outro vive-se no capitalismo, depende-se das suas imposições enquanto ele não for destruído.

A isto tudo soma-se um outro antigo problema: muito da estética e dos valores contraculturais se efetivaram através dos meios de comunicação de massa, como na música pop, o que acelerou o processo de apropriação e esvaziamento das formas contestadoras pela indústria cultural. Porém, a despeito de todas as suas debilidades políticas, a contracultura fornece lições importantíssimas para a esquerda. A criatividade na estruturação das formas de comunicação, uma reflexão crítica sobre as diferentes maneiras de se estar no mundo, a revolta contra um modo de vida fundado na exploração econômica, no racismo, no controle das experiências corpóreas, na promoção da guerra (as letras de Bob Dylan documentam de maneira crítica este momento). A miscigenação cultural em oposição ás elites brancas e caretas que estavam perdendo seus domínios neocoloniais com as revoluções terceiro-mundistas, é um grande exemplo da energia progressista da contracultura que reivindicava novas formas de consciência. O jovem branco e rebelde do pós guerra queria ser negro e também aprender com os povos do oriente. Muitos jovens estavam virando seu olhar para o oriente: o orientalismo não era apenas questão de moda mas uma alternativa contra as doenças espirituais da cultura ocidental. Isso já era uma busca antiga entre intelectuais do ocidente. Na França da década de 1920, alguns surrealistas como o escritor trotskista Pierre Naville e o teatrólogo da crueldade Antonin Artaud, viam nas culturas orientais algo vivo e distinto do processo de putrefação do ocidente. Nos Estados Unidos do pós-guerra temos gurus contraculturais e poetas como Allen Ginsberg, Gary Snyder e Allan Watts difundindo práticas culturais de origem indiana, chinesa e japonesa. Não iria demorar muito para que isso atingisse a música do rock em sua metamorfose psicodélica. A Inglaterra que no século XIX cravou os seus dentes na jugular da Índia e estabeleceu uma estrutura administrativa em que os marajás dos Estados principescos trabalhavam de acordo com os interesses britânicos, deparou-se na década de 1960 com bandas de rock inglesas interessadas na espiritualidade e na música indiana. Os Beatles, os Rolling Stones e os Yardbirds meteram a cítara e os sons orientais em suas composições durante a segunda metade da década.

Foi naquele momento histórico marcado pela infiltração do incenso e da meditação no interior da cultura dos países imperialistas em crise, que a Ásia estava pegando fogo com revoluções em que o protagonista era o camponês. O trágico acontecimento histórico que reúne no mesmo palco oriente e ocidente foi a Guerra do Vietnã. Antes de enfrentar o imperialismo norte americano os vietnamitas já tinham lutado contra os imperialismos japonês e francês. Durante a invasão do Japão na península indochinesa no início da década de 1940, foi organizado o Vientminh (Liga Revolucionária para a Independência do Vietnã) sob a liderança de Ho Chi Minh. Com a derrota das tropas japonesas durante a Segunda Grande Guerra, foi proclamada a independência da República Democrática do Vietnã, restrita á região Norte. Entretanto, após o término do conflito mundial, a França (que volta a dominar o Laos e o Camboja) estabelece um governo fantoche no Vietnã do Sul. A intenção era clara: reconquistar o Vietnã do Norte. Foram oito anos de guerra, sendo que a coça derradeira contra os franceses deu-se na épica batalha de Dien Bien Phu em 1954. A França saiu com o rabo entre as pernas. Mas o povo vietnamita não estava livre da sanha imperialista.

Em meio ao andar da carruagem atômica durante a Guerra Fria, o território asiático é o que desperta temores no xerife norte americano que o concebe segundo a expressão racista da época “ perigo amarelo “. As experiências anticolonialistas chinesa e norte coreana levaram os Estados Unidos a atuarem politicamente no Vietnã do Sul. Este último sofria com uma ditadura anti-popular que seria desafiada pela guerrilha popular encabeçada pelo Vietcong(Frente de Libertação Nacional). Ho Chi Minh, que além de líder e teórico da guerrilha era conhecido como poeta, convertia os seus versos em formas de agitação política para mobilizar a população campesina:

Cantar a natureza era o prazer dos antigos
Flores e neve, luz e vento, montanhas e rios.
É preciso armar com aço os versos de nosso tempo
E o poeta também deve saber combater

O Vietnã do Sul mergulha numa guerra civil. Eis que os Estados Unidos não apenas metem o bedelho como iniciam, a partir de 1961, uma crescente intervenção militar. Em 1965 o Tio Sam ataca a região Norte. Os americanos seriam derrotados e tremendamente humilhados nesta guerra que teve o seu desfecho no ano de 1975. Não surpreende que anos depois Hollywood precisou inventar o filme do Rambo para se sentir melhor. Existem dois aspectos históricos fundamentais para entender a crueldade imperialista na Guerra do Vietnã: o primeiro são as atrocidades cometidas contra o povo vietnamita, que perdeu cerca de 1.100.000 de combatentes e milhões de civis. O outro aspecto é que no interior das tropas do exército norte americano invasor, havia uma grande quantidade de soldados de origem proletária: meninos ricos quase não iam para a guerra. Ainda que numericamente menor (em 1968, auge da guerra, havia cerca de meio milhão de militares americanos no Vietnã) as mortes dos soldados americanos de origem trabalhadora coexistem com a destruição de matas e vilas no território. Oprimidos norte americanos sem consciência de classe foram colocados para lutar contra camponeses oprimidos da Ásia. Pena que o movimento operário norte americano não tenha conseguido projetar e denunciar este fato durante os anos da guerra. A derrota norte americana no Vietnã deve-se a dois fatores. Em primeiro lugar, a mobilização total da população vietnamita que apoia o vietcong e atua para a expulsão do exército invasor. Em segundo lugar, a opinião pública norte americana exprimia um país de ponta cabeça: estudantes e hippies protestavam contra a guerra. As grandes cidades americanas foram tomadas por grandiosos protestos. A contracultura comia solta pela América. Reportagens televisivas que traziam notícias do Vietnã mostravam no horário nobre corpos de soldados americanos sendo colocados em sacos plásticos: a guerra televisionada aprofundou o mal estar na população americana e fortaleceu internamente a oposição ao conflito. Os próprios soldados americanos quebravam constantemente a hierarquia militar no Vietnã ao desobedecerem ordens. Eles acendiam os seus baseados na cara dura e ligavam bem alto o rádio do helicóptero quando tocava alguma canção de Jimi Hendrix ou Janis Joplin. Enfim, a sociedade norte americana estava atravessando uma série de mudanças. Se externamente o governo norte americano tinha que lidar com os focos guerrilheiros, internamente os hippies eram os inimigos pacifistas.

A palavra "hippie" possui uma origem pejorativa: hipsters negros dos anos de 1940 e 1950 chamavam alguns hipsters brancos de boutique de hippies: era uma coisa meio "pose", meio rebelde de "fim de semana". Todavia, o termo hippie passa a ser adotado nos anos de 1960 por um crescente número de jovens que viram as costas para a vida de classe média e passam a buscar um modo de vida alternativo. Em 1966 e, sobretudo, a partir de 1967, os hippies crescem pela América em eventos psicodélicos em que hedonismo e pacifismo eram as características centrais. Conforme a guerra na Ásia tornava-se mais sangrenta maior era a rebeldia de jovens psicodélicos que queimavam em praça pública as convocatórias para irem ao Vietnã. Foi a época dos grandes festivais de rock ao ar livre, foi a tentativa de construir novas experiências comunitárias e de protesto. Durante o célebre festival de Woodstock, que reuniu no ano de 1969 mais de 500 mil jovens, o músico Joe Mcdonald deu uma demonstração do clima de protesto com a canção I Feel Like I’m Fixin’ To Die:

Vamos lá todos vocês, altos e fortes
Tio Sam precisa novamente de sua ajuda
Ele se meteu em um terrível aperto,
Lá longe, no Vietnã
Deixem de lado seus livros e peguem suas armas
(...) Então vamos lá, mães de todo o país
Tragam seus filhos do Vietnã
Cantem a canção antes que seja tarde!
Seja o primeiro em seu quarteirão,
Antes que o seu filho volte encaixotado

Era a morte quem rondava tanto nas selvas do Vietnã quanto nos protestos anti-guerra em cidades americanas como Chicago. Jim Morrison, vocalista e letrista da banda de rock The Doors, captou com a canção The End (1966) a morte enquanto personagem que sempre estava em cena:

Este é o fim
Belo amigo
Este é o fim
Meu único amigo, o fim
Dos nossos planos elaborados o fim
De tudo o que resta o fim
Sem salvação ou surpresa, o fim
Eu nunca olharei em seus olhos de novo (...)

Anos mais tarde o cineasta Francis Ford Coppola em seus clássico Apocalipse Now (1979) , uma crítica á Guerra do Vietnã, utilizou a canção da banda na trilha do filme: é impressionante como as cenas de bombardeio, com as matas em chamas, se articulam com o som melancólico, hipnótico e definitivamente apocalíptico da música.

Maio de 68 e o desencontro histórico entre os movimentos de juventude e a revolução

Mas onde diabos estava o proletariado para dirigir a revolução nos Estados Unidos? Os tensos e paranoicos anos do macarthismo, o ping pong ideológico da Guerra Fria, o nível de vida elevado, a adestração ideológica do consumismo e os paraísos midiáticos da alienação: tudo isto contribuiu para a crise da esquerda americana, ao passo que organizações políticas de oposição com SDS e os hippies não tinham como projeto a revolução socialista, mas uma oscilação entre o reformismo e o droup out. A classe operária não deixou de existir e de ser explorada: o que faltava era uma direção revolucionária do proletariado capaz de se articular com aquele cenário de rebelião. Se houve uma possibilidade real do encontro entre os trabalhadores urbanos e a inventividade estética da juventude dos países do Primeiro mundo, isto deu-se durante as revoltas do Maio de 68 na França. Ao pedirem a palavra e apropriarem-se dos muros da cidade de Paris, os jovens expuseram as relações entre o sonho e a revolução. A poesia surrealista preconizada décadas antes por André Breton foi posta em prática através dos grafites sonhadores:

"A imaginação no poder"
"É proibido proibir"
"Greve eterna"
"Seja realista peça o impossível"

Além do pensamento surrealista, as proposições situacionistas que datam da década anterior e cujo principal cabeça era Guy Debord, foram exercitadas de acordo com o desejo de criar novas situações na cidade, ressignificando (subvertendo) o espaço e os signos urbanos em prol do ócio, da deriva, de uma outra possibilidade citadina em que a felicidade seria historicamente possível. Em um texto de 1966 Raoul Vaneigem lista temas que deveriam ser abordados segundo a perspectiva política dos situacionistas:

(...) Do repetitivo na vida cotidiana. Os sonhos e o onirismo. Tratado das paixões. Os momentos e a construção das situações. O urbanismo e a construção popular. Manual do detournement subversivo. Aventura individual e aventura coletiva. Intersubjetividade e coerência nos grupos revolucionários. Jogo e vida cotidiana. Os devaneios individuais. Sobre a liberdade de amar. Estudos preliminares para a construção de uma base. Loucura e estados de transe.

Notáveis manifestações de arte gráfica em que despontavam cartazes inteligentes, críticos e desbundados. Performances de vanguarda. Palavras de ordem lavradas por um pensamento onírico. Que cenário histórico era aquele em que as lutas dos estudantes e operários propiciaram a atuação de surrealistas e situacionistas? Os estudantes de universidades como Nanterre e Sorbone, se rebelavam contra um modelo de educação alienada que existe tão somente para servir o mercado. A angustia do estudante sobre o seu futuro era compartilhada por operários que viam o aumento do desemprego no país. Era um cenário político em que o movimento estudantil aprofundava a crítica ao stalinismo e se opunha com toda energia contra a moral sexual conservadora das autoridades acadêmicas: o protesto dos estudantes de Nanterre contra a decisão de separar os alojamentos de moças e rapazes foi a expressão inicial disso. A violência policial contra as manifestações dos estudantes desencadeou a solidariedade do proletariado. Durante um curto período de tempo a revolta e a criatividade anárquica da juventude teve como base de sustentação mais de 10 milhões de trabalhadores numa greve geral. Mas se as ruas parisienses foram tomadas pelos trabalhadores e pelos enrangés, o que impediu com que as imagens de Rimbaud e Marx se misturassem plenamente pelo céu afora?

A resposta passa pela ausência de um partido revolucionário capaz de organizar e dirigir o proletariado: a burocracia sindical, que temia mais a revolução do que a própria burguesia francesa, orientou os operários e interromperem a greve e voltarem para as fábricas em troca de migalhas (humilhantes acordos salariais foram feitos). A garotada ficou cada vez mais isolada, exposta á repressão policial, além de prejudicada pela orientação equivocada de correntes políticas como o maoismo. No meio daquela salada ideológica em que tinha de tudo, alguns setores estudantis realizavam a importação da Revolução Cultural Chinesa. Todavia, estes mesmos setores desconsideravam o jogo político no interior do Partido Comunista Chinês e a manipulação de massa realizada por Mao Tsé Tung. Gerou-se na França caricaturas animadas por uma ilusória troca de orientação política de Moscou para Pequim. A grande crônica visual desta situação ideológica já havia sido feita no filme A Chinesa de Jean Luc Godard, realizado em 1967: jovens de classe média bancando de maneira fanática a guarda vermelha chinesa em meio ao colorido consumista das imagens da cultura pop.

Revolução socialista e o legado contracultural

Com a rapaziada de 68 na casa dos 80 anos, o que ficou? Ah, muita coisa, muita coisa mesmo. O legado dos movimentos culturais de juventude da década de 1960 tornou-se parte integrante daqueles (ainda) poucos jovens que possuem asco da sociedade conservadora. Já virou uma tradição de ruptura os símbolos de 1968 na música, no comportamento: tudo isso é passado de geração em geração. Não é difícil encontrarmos em repúblicas estudantis componentes estéticos e políticos que remetem aquela época. Tudo isso é feito na base do anacronismo? Aos olhos da história as formas tornam-se velhas quando não correspondem mais a um novo conteúdo. Bem, o conteúdo capitalista está aí. Evidentemente que em mais de cinco décadas novos conteúdos, novas realidades históricas posteriores, apresentaram novas formas contestadoras. Sim, muita coisa rolou depois de 1968 na cultura jovem, mas não se pode perder de vista que para as implicações progressistas daquela, os anos de 1960 permanecem como raiz histórica. Porém, no balanço dialético das formas contraculturais reside a lição materialista: sem um projeto revolucionário as formas culturais de rebeldia são neutralizadas.

Os problemas do dia a dia exigem uma leitura correta da realidade histórica. A cultura da revolução só poderá florescer a partir de uma dupla perspectiva histórica: a elevação cultural/educacional da população e as inovações estéticas e comportamentais promovidas pelos movimentos de juventude em compasso com a luta política revolucionária. As transformações e inovações culturais, capitaneadas pela juventude em todo seu inconformismo e desejo de ruptura com a antiga ordem, possuem pernas próprias, isto é, bastam em si mesmas (são independentes porque são revolucionárias e são revolucionárias porque são independentes) e atuam segundo suas próprias resoluções artísticas e comportamentais num quadro histórico mais amplo de transformações políticas. Levando em conta tais considerações históricas, fica fácil, mais uma vez, entender o que deu errado nos sonhos de 1968: a psicodelia ficou desbotada sem a direção revolucionária dos trabalhadores na condução do processo político. As revoluções terceiro-mundistas, que contribuíam com a crise e o inconformismo no Primeiro mundo, estavam orientadas por formas políticas estranhas ao socialismo. A poesia surrealista nos muros de Paris se desencontrou com o proletariado liderado por burocratas. Em síntese: o cultivo das contribuições dos movimentos culturais de juventude da década de 1960 (especificamente os contraculturais) coexiste com uma crítica materialista.


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Afonso Machado

Campinas
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