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Anasse ​​Kazib e Laura Varlet, ferroviários e marxistas na França: "O trotskismo está mais vivo que nunca"

REPRODUÇÃO REVISTA BALLAST - "Anasse Kazib e Laura Varlet são ambos trabalhadores ferroviários e militantes sindicais. Ao lado dos seus camaradas, dirigem a organização Révolution Permanente: que também é o nome de seu jornal, integrante da rede internacional La Izquierda Diario e da Fração Trotskista - Quarta Internacional. Desde a sua ruptura com a NPA [Novo Partido Anticapitalista] em 2021, o grupo Révolution Permanente tem navegado por conta própria e busca se lançar, através da voz de Anasse Kazib, nas próximas eleições presidenciais: a difícil coleta de assinaturas [de prefeitos e parlamentares exigidas pela lei francesa para poder se candidatar] está atualmente em andamento. Contra a esquerda "reformista", Kazib e Varlet reivindicam o caminho da revolução; contra a esquerda "espontaneísta", defendem a tomada do poder Estatal pela greve geral e o estabelecimento de um governo das e dos trabalhadores. A jovem organização marxista aspira a reunir "a classe trabalhadora em toda a sua diversidade": portanto, se comprometem com centralidade com as lutas anti-racistas, feministas e LGBTQIA+. Por isso, buscamos os dois para esta série de entrevistas, inteiramente dedicada às diferentes estratégias de ruptura com a ordem dominante"

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Tradução de entrevista de Anasse Kazib e Laura Varlet​​ à revista francesa Ballast que fez uma série de entrevistas para debater com personalidades que dizem defender estratégias de ruptura com a ordem dominante, denominada "O que fazer"?. Acesse a original aqui, publicada em 12 janeiro de 2022.

Os entrevistados são militantes da mesma corrente internacional que o Movimento Revolucionário de Trabalhadores (MRT) que impulsiona o jornal Esquerda Diário no Brasil, e compartilham da mesma estratégia internacional de construção de partidos revolucionários com independência de classe em busca de uma saída de ruptura com o sistema capitalista. Mesmo tendo grandes diferenças de realidade entre os dois países, as reflexões e as propostas que eles trazem nos ajudam aqui no Brasil de 3 anos de Bolsonaro a pensar os caminhos para enfrentar a fragmentação da classe trabalhadora com um programa socialista e revolucionário que supere o PT pela esquerda, organizando todos setores de oprimidos na nossa batalha contra a extrema-direita, contra um regime antidemocrático herdeiro do golpe institucional, e com as ilusões de conciliação de classe alimentadas pelo PT e Lula, seguidos acrítica ou criticamente pela maior parte da esquerda brasileira, em particular o PSOL.

BALLAST: Há alguns meses, uma de suas declarações (1) desconcertou a esquerda anticapitalista, Anasse: enquanto um certo número de militantes teme que estejamos em um período "pré-fascista", você parece rejeitar a ideia de tal perigo.

Anasse Kazib: Temos que definir o que queremos dizer com isso. Sim, há um aumento de ideias reacionárias na esfera político-mediática e em parte da população: estamos de acordo! Estes discursos são retomados mesmo pela esquerda institucional: Montebourg [ex-Partido Socialista] vai pegar o dicionário da extrema direita sobre o tema OQTFs (2) e transferências de dinheiro; Roussel defende o retorno dos imigrantes ilegais a suas casas (3) ; Jadot agradece a intervenção do RAID e do GIGN em Guadalupe (4). Mas se as ideias políticas de esquerda estão em minoria no debate público, elas estão muito vivas na sociedade, na juventude, no movimento social! O movimento dos Coletes Amarelos em 2018 foi uma verdadeira revolta popular, a mais subversiva desde 1968. A greve contra a reforma da previdência em 2019 colocou a classe trabalhadora organizada de novo em cena, com uma nova geração de origem imigrante (como os operadores de ônibus da RATP que se mobilizaram depois das revoltas de 2005 nas cidades periféricas de Paris). Sem mencionar o movimento Black Lives Matter, o Comitê Adama, as manifestações Nous Toutes ​​ou pelo clima...

"Não acredito na direitização da sociedade como um todo. Nas classes trabalhadoras e para a maioria da população, permanecem as preocupações sociais. - Laura Varlet".

É, na verdade, em grande parte, uma reação radicalizada, à direita, da classe dominante​​ e no debate político a esses fenômenos. Deste ponto de vista, e sem de forma alguma negar o perigo representado pelas idéias transmitidas por forças reacionárias como o Rassemblement National (Marine Le Pen) ou o Zemmour, nem negar o fato de que certos grupos fascistas estão crescendo e agindo - particularmente em cidades como Lyon -, eu acho problemático falar hoje do "pré-fascismo". Porque corremos o risco de dar a impressão de que o fascismo é inevitável, como único horizonte, enquanto que a situação é muito mais polarizada e aberta. E que sua evolução dependerá fundamentalmente do desenvolvimento da luta de classes.

Laura Varlet: Não acredito em uma direitização da "sociedade" como um todo: nas classes trabalhadoras e para a maioria da população, permanecem as preocupações sociais. Mas setores da classe dominante estão radicalizando seu discurso e querem impor respostas de direita à raiva que existe naqueles que estão embaixo. Pensemos na pandemia. Ela acelerou uma crise econômica subjacente: demissões, deterioração das condições de trabalho, pressão sobre os trabalhadores... A questão hoje é saber quem vai pagar pela crise. A extrema direita está tentando fazer as pessoas acreditarem que a única maneira de limitar os danos é atacar estrangeiros ou muçulmanos.

Anasse Kazib: Há um velho revolucionário russo, Leon Trotsky, que disse que, no âmbito da democracia burguesa, a classe dominante conta com a domesticação e a canalização das classes populares através das eleições e do intermédio das direções do movimento operário. O fascismo, por outro lado, é a escolha da burguesia pelo confronto militar contra as organizações do movimento dos trabalhadores: o momento em que a burguesia considera que a democracia burguesa se torna insuficiente para preservar seus interesses. Estamos vivendo este momento histórico? Existe tal instabilidade política, tal situação pré-revolucionária que a burguesia é tentada pelo fascismo? Existe uma força capaz de destruir por completo La France insoumise [LFI], o Partido Comunista [PC], o NPA, a CGT [Central Geral de Trabalhadores], a [União Sindical] Solidaires, Attac [Associação pela Taxação das Transações Financeiras e pela Ação Cidadã] e os movimentos sociais? Não. Pelo menos ainda não, e isto é importante porque nos dá tempo para nos prepararmos. Não estamos dizendo que o fascismo está limitado aos anos 30 e que esta realidade política não pode mais acontecer. Mas se não pararmos de ficar alertando sobre um perigo que ainda não existe, seremos comidos quando chegar a hora! Aqueles que consideram que "o fascismo está à nossa porta", o que estão fazendo para serem consequentes com esta caracterização? Um cara como eu tem que viver na clandestinidade ou ir para o exílio para evitar a prisão ou uma bala na cabeça dos fascistas? Nossa geração - a dos trinta e poucos - viveu um período de confrontos relativamente controlados: nos anos 90, os únicos policiais em manifestações eram os policiais de trânsito! Vimos uma virada autoritária desde 2016 e as manifestações contra a Reforma Trabalhista. Mas uma situação autoritária, repressiva e reacionária não é equivalente à existência de um estado fascista que esmaga o movimento operário: 17 de outubro de 1961 ou as ratonnadas dos anos 80 não foram vistas como eventos fascistas, embora o nível de violência fosse muito maior que hoje!

BALLAST: Em 2018, Anasse,você nos disse que era necessário construir um "partido de trabalhadores". Três anos depois, nós o encontramos como candidato presidencial em nome do Révolution Permanente. Como é este partido?

"Nós não nos definimos como um partido. Por enquanto, falamos de uma organização ou de uma corrente política de extrema esquerda. Um partido é capaz de influenciar uma camada significativa das massas: este não é o nosso caso. [Anasse Kazib] "

Anasse Kazib: Nós ainda não nos definimos como um partido. Por enquanto, falamos de uma organização ou de uma corrente política de extrema esquerda composta por centenas de camaradas. Um partido é capaz de influenciar uma grande parte das massas: este não é o nosso caso. Lutamos contra a explosão do NPA a partir de uma leitura política: defender - juntamente com outras correntes - uma linha do partido de intervenção na luta de classes, enquanto a antiga direção histórica do NPA - vinda da LCR [Liga Comunista Revolucionária] - defende, em última instância, uma estratégia de aliança eleitoral com a esquerda. Assim, promoveram o "Big Bang" com Clémentine Autain, depois as alianças com La France Insoumise nas eleições municipais e regionais. Como comunistas revolucionários, nós lamentamos o fato do NPA só se definir pela negativa - anticapitalista - e não levar abertamente, pela positiva, o projeto emancipatório comunista. Minha candidatura foi proposta internamente numa época em que uma grande parte da direção do NPA, e o próprio Philippe Poutou, não queria uma candidatura: certas elaborações internas, mas também certas declarações públicas, sugeriam que não haveria "candidatura testemunhal", dando a linha de que o lugar seria deixado a Mélenchon [La France Insoumise] ou a uma hipotética reagrupação da esquerda anticapitalista com a esquerda institucional. Como resposta à proposta de minha candidatura, fomos empurrados para fora do partido, excluindo-nos das reuniões e assembleias gerais, negando todos os princípios da democracia operária, ou seja, de debater e convencer uns aos outros da estratégia a ser adotada! Infelizmente, após mais de uma década de crise do NPA e uma enorme "hemorragia" de militantes (o NPA passou de 9.000 membros para pouco mais de 1.000 hoje), a tradição democrática da ex-LCR foi muito prejudicada. A direção atual considera que todos os meios são bons para manter o controle da organização, mesmo quando eles são uma minoria na base.

BALLAST: Mas o Revolução Permanente é sobretudo conhecido como uma mídia online. Não há aqui uma confusão?

Laura Varlet: Révolution Permanente é o jornal de nossa organização. Queríamos inovar em relação aos antigos folhetos preto e branco distribuídos no portão de fábricas - o que precisa continuar a ser feito! Nossas ideias são da atualidade. Estamos pensando em como alcançar um grande número de pessoas usando novas ferramentas: um trotskismo 2.0! (risos)! Não apenas sobre o uso de ferramentas digitais, mas também sobre a linguagem, os temas, o visual e a forma de articular as diferentes lutas. Tudo isso mantendo nosso rumo estratégico, ou seja, a luta para derrubar este sistema. Falamos de lutas: alguns dos artigos e conteúdos mais populares são os que denunciam a ditadura dos patrões dentro das fábricas. Mas, sim, o nome do jornal é o nome da organização, mas muito em breve vai estar colocada a questão da fundação de uma nova organização revolucionária de nossa classe na França. Sem um grande projeto coletivo e militante, podemos lutar, fazer greve, nos revoltar, fazer aparições na TV, etc, nossos oponentes continuarão ganhando repetidamente.

BALLAST: "Não, nossa candidatura não é testemunhal", disse recentemente um de seus militantes, Gaétan Gracia. No entanto, você repete: você não acredita na via eleitoral. Então, qual é o sentido estratégico de sua participação?

Laura Varlet: Nós não somos anti-eleitorais! Nós não achamos que as eleições sejam "pièges à cons" [em referência à expressão usada por Sartre em 1973, que via as eleições como símbolo de traição aos compromissos de nossas organizações] e não colocamos Le Pen, Macron ou Mélenchon como farinha do mesmo saco. As eleições são um momento importante de politização para nossa classe. Quanto ao programa, aquilo que é defendido pelas organizações, nas eleições os trabalhadores e os jovens - seja nas universidades, fábricas ou bairros populares - estão mais atentos às diferentes propostas políticas. O programa de candidatura da Anasse acaba de ser publicado e vemos um anseio por proposições políticas no momento das eleições.

"Não colocamos Le Pen, Macron ou Mélenchon como farinha do mesmo saco. As eleições são um momento importante de politização para nossa classe" [Laura Varlet].

Anasse Kazib: É claro que a eleição presidencial não é a luta de classes, mas ela permite que se faça experiências políticas. Outro dia, um camarada no trabalho me perguntou se eu tinha as 500 assinaturas; eu falei dos casos concretos de prefeitos que tinham medo de perder subsídios. Em um cantão da Normandia, um prefeito me disse diretamente: "Aqui, todos odeiam Macron, mas todos nós queremos assinar para sua candidatura porque ao lado, está Le Havre, e [o primeiro-ministro] Edouard Philippe pode dar margem para financiar projetos". Você vê Mélenchon lutando por assinaturas sendo que, politicamente, eles representam algo e Hidalgo [Partido Socialista] com 700 assinaturas, quando ela não representa nada. O cara de base, não-politizado, entende imediatamente que é um "esquema"! E este camarada acaba me dizendo: "Espero que você consiga suas 500 assinaturas, senão eu não vou votar nas eleições! 90% das pessoas com quem falamos são abstencionistas que só falam de política. Eles falam conosco sobre Zemmour, Le Pen, Macron e como rejeitam tudo o que eles encarnam. Quando falamos que não somos uma candidatura "testemunhal", queremos dizer acima de tudo que não estamos aqui apenas para nos representar, mas para levar a voz e reorganizar, agrupar, uma vanguarda que tem lutado intensamente durante cinco anos. É por isso que é essencial ter pessoas como Assa Traoré, Youcef Brakni, os grevistas da Transdev ou Sasha Yaropolskaya da XY Media, uma mídia transfeminista, na tribuna de nossos lançamentos de campanha.

Laura Varlet: Para nós, o desafio desta campanha é também convencer as pessoas da necessidade de se organizarem politicamente, para além do apoio ocasional, e muito precioso, à candidatura de Anasse. Ou seja, apelamos a todos aqueles que pensam que Anasse deveria poder concorrer a nos dar força, a nos apoiar financeiramente - não temos o financiamento dos [empresários bilionários] Bolloré ou Bernard Arnault! -, a nos ajudar a fazer as viagens para conseguir assinaturas, vir às reuniões e atos de campanha, colar cartazes, etc. Mas também gostaríamos de convencê-los de que é necessário ir além disso, que o projeto político revolucionário e de emancipação que estamos levando precisa do engajamento político do maior número de pessoas. "Uma candidatura revolucionária de trabalhadores e trabalhadoras, jovens e dos bairros populares" é o significado que queremos dar a esta candidatura. E é também por isso que não é um candidato "testemunhal".

BALLAST: Vocês são ambos militantes que atuam nos sindicatos e criticam regularmente as direções sindicais. Mas de que forma elas não são o reflexo de sua base?

Laura Varlet: Antes de tudo, existe um problema material: como são liberados do trabalho há décadas (alguns 100% liberados do "chão de fábrica"), e com um salário muito superior ao do trabalhador médio, os grandes funcionários sindicais não vivem a mesma vida que o trabalhador da base, e isso é importante. Além disso, há o problema de saber se suas políticas refletem ou não a vontade da base. Dizem frequentemente: "Não há botão para desencadear uma greve geral" e, de certa forma, estão certos! Mas a pergunta deve ser feita de outra forma: como permitimos que a criatividade das massas se desenvolva mais amplamente? Quando nossa classe se põe em movimento, quando levanta a cabeça, desmancha no ar todos os planos dos capitalistas... Mas vemos que os dirigentes sindicais e políticos reformistas não tentam organizar a raiva na base, encontrar formas de generalizar e ampliar os conflitos, construir estratégias ofensivas nas mobilizações nacionais. Nos últimos anos, em 2010, em 2016, as estratégias que foram postas em prática foram estratégias de derrota, baseadas em dias isolados de ação. Em 2018, contra a reforma ferroviária, a estratégia foi a da greve "perolada": dois dias de greve, três dias de negociação, dois dias de greve, três dias de negociação com trabalhadores trabalhando, etc. Em resumo, você dá à empresa o calendário para que ela possa se organizar e quebrar a greve! Por outro lado, quando em 5 de dezembro de 2019 tivemos o início de uma greve sem fim definido contra a reforma da previdência, ela foi imposta desde a base, por baixo, sob pressão dos trabalhadores da RATP [empresa de ônibus e metrô de Paris]. Neste caso, como não ver que muito pouco foi feito pelas direções sindicais no sentido de colocar todos os setores estratégicos a fim de lutar ao lado dos trabalhadores do transporte?

"Muitos sindicalistas de base estavam com os Coletes Amarelos e queriam lutar, mas as direções sindicais co-assinaram uma declaração condenando a violência... dos manifestantes! [Anasse Kazib] "

Anasse Kazib: Veja: hoje estão ocorrendo greves por aumento salarial: Leroy Merlin, Decathlon, Sephora, SNCF [Estatal ferroviária]. E as direções sindicais nem dão as caras! O papel de um sindicato não é ser o termômetro da agitação social! Os trabalhadores podem iniciar a greve por conta própria; a greve pertence aos grevistas e as assembleias gerais devem ser soberanas. Mas como sindicato, deveria apoiar a mobilização, dar-lhe os meios para a greve vencer. Não observar o que acontece e depois pedir para ser o interlocutor dos patrões ou do governo para iniciar as negociações, mas para generalizar a greve. Podemos ver até que ponto o que é feito é justamente o contrário. O movimento dos Coletes Amarelos foi exemplar a este respeito. A explosão de raiva que representou mostrou a fúria de uma parte de nossa classe, de setores precários, terceirizados, subcontratados, rurais e bastante abandonados pelos sindicatos. No início do movimento, muitos sindicalistas de base estavam com os Coletes Amarelos e queriam lutar, mas não só as direções sindicais não tentaram generalizar o movimento nas empresas onde têm peso, quanto assinaram juntas um comunicado condenando a violência... dos manifestantes!

Laura Varlet: Não somos anti-sindicais. Somos ativos nos sindicatos, os construímos e participamos em frentes de mobilização com palavras de ordem precisas. Mas nossa corrente política coloca a necessidade de lutar e denunciar sistematicamente as traições das burocracias sindicais - ao mesmo tempo em nos preparamos e buscando desenvolver ao máximo a auto-organização. Somos nós que perdemos dinheiro fazendo greve, que assumimos riscos, portanto cabe a nós decidir quando e como fazer greve, que estratégia usar para vencer e que palavras de ordem queremos defender. Esta é a condição para que cada luta de nossa classe permita que os trabalhadores realmente tomem consciência de sua força e aprendam a se organizar contra qualquer "passividade".

Anasse Kazib: Uma experiência interessante foi a coordenação da RATP-SNCF durante a greve contra a reforma previdenciária: acredite ou não, isso nunca tinha acontecido antes! Sendo que eu imagino que o sindicato dos ferroviários da CGT devem ter o e-mail do sindicato da RATP! No início do movimento [dezembro de 2019], quando falávamos de "burocracia sindical" e "fundo de greve", todos nos olhavam como alienígenas. Os companheiros, especialmente os mais jovens, que não tinham experiência de outras greves, estavam convencidos de que tudo estaria acabado em uma semana: "Como as autoridades vão resistir a uma semana sem metrô e RER [Trens metropolitanos de Paris]?!". A força dos revolucionários no movimento sindical está na experiência de lutas passadas e na análise dialética. Não somos gênios nem adivinhadores: a análise política do que é o Macronismo nos leva à conclusão de que ele é a mãe das reformas! Quando, em 17 de dezembro, após duas semanas de greves sem fim definido, Philippe Martinez [Secretário Geral da CGT] saiu nas escadas do Palácio do Eliseu e chamou um dia de mobilização somente para 9 de janeiro, não é de surpreender que as pessoas conectaram com o que a gente vinha falando sobre a traição da burocracia sindical!

BALLAST: Laura, você recentemente deu seu apoio à Frente de Esquerda dos Trabalhadores (FIT-U) na Argentina. Esta é uma aliança entre quatro partidos trotskistas. Por que uma unidade desse tipo é impossível na França? Para não mencionar a LFI - cujo "reformismo" vocês rejeitam - mas uma unidade entre a NPA, Lutte Ouvrière (LO) e vocês.

Laura Varlet: Na Argentina, a FIT foi inicialmente uma frente eleitoral defensiva para conseguir ultrapassar o aumento no limiar de votos para poder participar nas eleições gerais. Mas isso não a torna menos relevante: é uma demonstração do que a extrema esquerda deveria fazer na França. Cada organização permanece independente e podemos ter diferenças nas práticas políticas, e mesmo nas palavras de ordem durante as mobilizações, mas formulamos perspectivas comuns sobre o cenário político. Com os camaradas do Révolution Permanente, fazemos parte da mesma organização internacional que o Partido Socialista dos Trabalhadores da Argentina (o principal partido da FIT-U) e pensamos que a extrema esquerda na França deveria se inspirar nesta experiência política - ao contrário daqueles que defendem como exemplo as experiências como o Syriza na Grécia, o Podemos no Estado espanhol ou mesmo, mais recentemente, Boric no Chile (que, na mesma noite após vencer as eleições, já disse que é necessário limitar as aspirações das massas, respeitar a estrutura institucional e se recusou inclusive a responder à exigência elementar que é a libertação de todos os presos políticos da revolta de outubro [de 2019]).

"Sempre levantamos a ideia de uma aliança com a Lutte Ouvrière dentro do NPA: buscar a possibilidade de uma candidatura comum ou mesmo debater sobre isso publicamente! [Laura Varlet]".

Na Argentina, a FIT-U está liderando uma batalha contra o acordo neocolonial com o FMI- levado a cabo por um governo chamado de "esquerda", na tradição Kirchnerista - que empobrece os trabalhadores. Eles conseguiram organizar uma grande mobilização de rua em 11 de dezembro de 2021 para desafiar as políticas do governo, em uma frente única sem precedentes entre dezenas de organizações sindicais, políticas e associações de direitos humanos. Durante a campanha eleitoral, eles também martelaram a necessidade de reduzir as horas de trabalho sem perda salarial, para mostrar a irracionalidade do sistema capitalista: isto lhes permitiu chegar em todo um setor das classes populares. Eles são a terceira maior força política do país e conseguiram que o primeiro catador de lixo, de origem indígena, fosse eleito deputado nacional em uma das províncias mais pobres do país! Na França, sempre promovemos dentro do NPA a ideia de uma aliança com Lutte Ouvrière: buscar a possibilidade de uma candidatura comum ou mesmo debater sobre isso publicamente!

Anasse Kazib: A extrema esquerda precisa debater a situação política e os desafios enfrentados pelos revolucionários hoje. Não foi feito um balanço das derrotas: por que durante e após o movimento dos Coletes Amarelos, as pessoas não se juntaram às nossas organizações? É hora de questionar a famosa estratégia política de um "partido amplo à esquerda do Partido Socialista": na época da fundação do NPA, em 2009, a Front de Gauche [iniciativa de Mélenchon em 2008] já vinha emergindo há alguns meses. Portanto, as pessoas fizeram suas escolhas! No Révolution Permanente, estamos convencidos de que é necessário construir uma organização revolucionária claramente delimitada das estratégias reformistas, que acreditam que seria possível "mudar o sistema a partir de dentro das instituições". Dito isto, isso não nos impede de seguir também uma política de frente única nas mobilizações: tivemos a iniciativa, junto com o Comitê Adama, de uma intervenção comum no movimento dos Coletes Amarelos; nos encontramos em certas lutas com militantes do La France Insoumise; convidamos o deputado Éric Coquerel da LFI para apoiar nossas greves; participamos da manifestação contra a islamofobia em 2019. É uma política de alianças por baixo, dentro das lutas, que é essencial contra nossos inimigos! Tomemos o exemplo da greve na refinaria de Grandpuits. Como enfrentar politicamente uma gigante como a Total? Com os camaradas, pensamos de antemão em uma aliança com os ecologistas. Ao chamar a Juventude pelo Clima, a Rebelião da Extinção, os Amigos da Terra e o Greenpeace, fizemos uma aliança de petroleiros com organizações ambientais contra o plano de demissões: "Fim do mundo, fim do mês: uma só luta"! Como Adrien Cornet, petroleiro, militante sindical da CGT em Grandpuits e militante do Révolution Permanente, diz, "cabe aos trabalhadores fazer a transição ecológica porque somos nós que vivemos ao redor das fábricas". Vivemos ao lado das fábricas e não queremos que elas explodam à noite como ocorreu com a Lubrizol. Caminhamos com nossos filhos e nossas famílias nas florestas e perto dos rios, não é do nosso interesse poluir tudo. Precisamos nos armar o máximo possível, não nos contentar em dizer "Tire as mãos de nossos empregos, são 700 famílias na rua". É preciso procurar termos mais consistência, junto ao melhor do setor ecologista. Caso contrário, você deixa a ecologia para Jadot e seu capitalismo verde aplaudido pelo MEDEF (Movimento de Empresas Francesas) e suas ciclovias!

BALLAST: Vocês afirmam abertamente serem Trotskistas (5). Você, Anasse, inclusive escreveu o prefácio da reedição do livro Programa de Transição de Trotski publicado pelas Éditions communard-e-s. Como o trotskismo ainda é, como você diz, uma "bússola política" para os próximos anos?

Anasse Kazib: O trotskismo é para nós o nome do marxismo revolucionário após o stalinismo. E está mais vivo do que nunca. Porque estamos em um período de instabilidade, de crise orgânica do sistema bipartidário e da social-democracia. Eu costumo dizer: eu passei de ler a revista [de quadrinhos] Picsou para ler Marx e Trotski. No início, eu era muito sindicalista: "o sindicato, greves e lutas, isso era a saída para tudo; a política é uma merda". E quando camaradas me falaram de Trotski, eu respondi: "Essas coisas de Gulag de vocês não me interessam!" Trotski pra mim era um parágrafo de um livro didático da terceira série. Eu sou um exemplo vivo do que o trotskismo pode ser hoje: a fusão entre um trabalhador sindicalizado, de origem imigrante e de bairros operários, e o marxismo revolucionário. O que me impressiona é a capacidade das análises de Trotsky de lançar luz sobre os processos políticos de hoje. Como os textos escritos nos anos 1920 e 30 me explicam com tanta precisão o que eu tenho diante de mim em 2021? Li pela primeira vez seus textos sobre as greves de 1936, na época da lei El Khomri, em 2016. Na época, eu pensava que as direções sindicais no passado eram sérias, revolucionárias. Trotski diz, por volta de fevereiro de 1934: "As massas queriam lutar. (...) Mas esta limitação não foi provocada pelas massas: ela foi ditada de cima. O único instrumento que as organizações dirigentes utilizaram para a preparação da luta foi uma mangueira para apagar o fogo. A única palavra de ordem que as massas ouviram foi: Shh! Silêncio! (...) A base quer lutar, as direções freiam. Este é o principal perigo e pode levar a uma verdadeira catástrofe". Ele pôs em palavras o que eu sentia: "burocracia sindical". Eu estava há um mês em greve na SNCF e as lideranças sindicais propunham dias de paralisação salteados: Martinez na Nuit Deboutpronunciou o famoso "Eu não tenho um botão para deslanchar uma greve geral". Eu falo para mim mesmo: "Que loucura, Trótski já tinha entendido tudo, as direções não querem que a gente ganhe, eles querem é manter ’seus jantares’ com o governo". Em 6 de dezembro de 2018, como eu falei antes, sindicatos de trabalhadores - exceto a SUD-Solidaires, felizmente - publicaram uma carta denunciando a "violência" dos manifestantes, como a dos atos dos Coletes Amarelos em 1 de dezembro, pedindo para serem os interlocutores privilegiados do governo! Trótski novamente: em tempos de "guerra", ou seja, em tempos de aguda luta de classes, a burocracia sindical desempenha um papel central para a burguesia porque ela é cooptada e tem seu próprio interesse em manter a ordem.

"O trotskismo é para nós o nome do marxismo revolucionário após o stalinismo. E está mais vivo do que nunca. Porque estamos em um período de instabilidade, de crise orgânica do sistema bipartidário e da social-democracia". [Anasse Kazib].

Nossa classe não conhece Trótski, ou mesmo o marxismo. Mas como tive muitas aparições na TV, posso assegurar que a burguesia conhece. Seus olhos não enganam. No [programa de tv] Les Grandes Gueules, com dois milhões de ouvintes, falar sobre revolução e a perspectiva do poder dos trabalhadores é a pior coisa para a burguesia. Nunca fui tão odiado como quando falei sobre política marxista - muito mais do que durante qualquer ação de greve que já tenha feito. Nossas palavras estão voltando ao debate público, a nova geração não pensa mais que você é louco ou delirante quando fala de "luta de classes", "capitalismo" ou "burguesia". Nós somos o turo-fu (6)! (risos) Talvez isso não mude nada a curto prazo. Mas se, nesta eleição presidencial, conseguirmos convencer mais e mais pessoas de que existe um sistema contra os nossos interesses, que temos que enfrentá-lo e desapossá-lo daquilo que forja seu poder e sua riqueza, e que convencer mais pessoas de que, para isso, temos que nos organizar politicamente, continuaremos a avançar.

BALLAST: Vocês falaram da "vanguarda". No entanto, esta ideia está hoje bastante desacreditada.

Laura Varlet: A ideia de uma vanguarda, longe dos estereótipos, leva em conta o fato de que a consciência das massas não é uniforme, que sempre há indivíduos que acumularam mais experiência, mais conhecimento das lutas passadas. E isto é precioso porque significa que não temos que começar sempre do zero. A vanguarda, neste sentido, e mais ainda o partido, é a memória coletiva de nossa classe: aprender com as greves, as derrotas, as armadilhas que foram colocadas para nós, as traições, a repressão do Estado, a fim de formular uma estratégia para vencer. Para nós, não é "auto-organização ou partido", é partido e auto-organização. Por exemplo, na greve dos trabalhadores de limpeza ONET nas estações da SNCF, houve tanta criatividade! Ninguém "explicou" a eles como fazer piquetes todas as noites. Elas e eles viram que a direção e a polícia viriam para quebrar a greve à noite. Os trabalhadores são suficientemente inteligentes para encontrar respostas para os problemas que surgem! Mas devemos evitar ter que repetir a experiência de A a Z todas as vezes. Quando a repressão veio contra as e os grevistas da ONET, a gente tinha a experiência de lutas passadas: temos que nos voltar para o exterior, para a população para obter um apoio maciço, o que os grevistas conseguiram fazer! Não defendemos a idéia de uma vanguarda no sentido de pessoas mais inteligentes que outras e que irão determinar e impor a estratégia. Mas os revolucionários desempenham um papel valioso: propondo uma orientação, caminhos de reflexão extraídos das derrotas e vitórias do passado. Infelizmente, o sistema capitalista não dá tempo e meios para cada trabalhador aprender com sua própria história antes das grandes revoltas, e a grande massa acaba aprendendo no calor da ação. O objetivo é uma fusão entre a experiência de nossa classe e os elementos mais subversivos e combativos nas lutas de hoje, para não termos que parar nas conquistas parciais, mesmo quando ganhamos uma luta, mas para desenvolver a mobilização para lutar para mudar tudo.

BALLAST: Vocês dizem "nossa classe", "os trabalhadores", "os operários", "os proletários" ou "as massas trabalhadoras". Dois pontos: por que "o povo" não é o sujeito revolucionário na opinião de vocês e como vocês lidam com a perda do poder de atração do campo lexical obreirista?

Anasse Kazib: Se certos termos não são mais utilizados, é também uma vontade política. A burguesia não precisa apenas de nossos braços para nos explorar, ela também precisa nos dominar através do pensamento. Como disse Marx, o pensamento dominante é o da classe dominante. Sabemos muito bem que muitos proletários se identificam com a classe média e não se reconhecem como parte de uma classe social que é a classe trabalhadora. Uma camarada me disse outro dia: "Sou uma pequeno-burguesa, ganho 1.200 euros por mês". Mas e aí? A gente desiste da batalha e paramos de falar da "classe trabalhadora"? Este é o trabalho político que fizemos com os Coletes Amarelos. No início, muitos nos diziam "Aqui está o povo, os cidadãos, os franceses", e depois, multiplicando as perguntas ("Aqueles que não são franceses não podem vir pros atos? Macron é um cidadão, não?"), chegávamos à conclusão de que estavam falando dos explorados, dos oprimidos, uma categoria social que vive sob domínio de classe. Nosso maior orgulho e vitória neste movimento é o canto que generalizou nacionalmente nos Coletes Amarelos, que modestamente cantamos pela primeira vez em 24 de novembro em um ato de ferroviários na Champs-Élysées: "Estamos aqui pela honra dos trabalhadores e por um mundo melhor". Em um movimento que era acusado de serem nacionalistas de extrema-direita, pequenos patrões, fascistas!

"É agregando toda a diversidade desta classe trabalhadora muito heterogênea, mas que tem, se estiver unida enquanto classe, uma força inegável contra aqueles que querem nos escravizar, que seremos capazes de ter sucesso". [Laura Varlet]

Laura Varlet: Esta dificuldade que nossa classe tem em se reconhecer enquanto tal é uma vitória ideológica do neoliberalismo dos anos 80 e 90: a classe trabalhadora não se reconhece mais como uma classe. Mas tenho a impressão de que esta identidade de classe está recuperando força hoje. Com a pandemia, todos puderam vê-la: os chefes estavam escondidos em suas segundas casas e nós estávamos fazendo os trens rodarem, vendendo passagens, dirigindo ônibus, administrando hospitais. Não estamos é uma lógica "obreirista", estamos falando da classe trabalhadora em toda sua diversidade. Não apenas pessoas brancas de macacão azul na linha de montagem da Peugeot. É também a classe trabalhadora racializada e feminina, os trabalhadores de supermercados, da logística, faxineiras, motoristas de ônibus, etc. É articular também as questões LGBTQI+: uma porta-voz de nossa campanha é um ativista transfeminista imigrante. É agregando toda a diversidade desta classe operária muito heterogênea, mas que tem, se estiver unida como classe, uma força inegável contra aqueles que querem nos escravizar, que seremos capazes de ter sucesso.

BALLAST: Há todo um setor de assalariados que não se encontra nestas referências de classe: são os diretores e gerentes. Eles representam 20,4% da população ativa - ou seja, um pouco mais do que os trabalhadores (7). Como lidar com esses assalariados que, embora sejam privilegiados, também podem viver sob pressão capitalista? Eles estão perdidos para nós ou devemos tentar conquistá-los?

Laura Varlet: Esta é uma questão complexa. As situações podem ser muito diferentes. Por exemplo, na SNCF, alguns gerentes se tornaram gerentes através da senioridade e reconhecimento de suas qualificações. Eles ainda estão sob constante pressão da hierarquia. Outros fazem parte da equipe administrativa e, embora sejam formalmente empregados, sua posição na cadeia de comando e seu nível de remuneração lhes permitem acumular capital. O CEO da SNCF, Jean-Pierre Farandou, ganha 450.000 euros por ano: ele implementa todas as reformas desejadas pelo governo e não tem nada a ver com os interesses dos trabalhadores ferroviários ou dos usuários do serviço público ferroviário. Portanto, não temos nada em comum com ele: pelo contrário, tudo se opõe a nós.

Anasse Kazib: E há diferentes relações com as equipes. Um gerente pode colocar seu compromisso a serviço da classe trabalhadora. Em 2019, no Landy Technicentre, todos os chefes de equipe entraram em greve com os maquinistas para exigir salários. Isto é diferente do gerente que deseja se tornar o dirigente do setor, que pune os grevistas, exige demissões, etc.

BALLAST: A questão policial e militar estava muito presente nos textos históricos do movimento socialista e revolucionário. Hoje, quase ninguém pensa mais sobre isso. No entanto, na França, há mais de 200.000 militares envolvidos na defesa (8) e cerca de 150.000 policiais. Como vocês pensam sobre a tomada concreta do poder estatal diante deste poder de fogo - especialmente porque sabemos que uma boa parte dele já é simpática à extrema direita?

Anasse Kazib: Muitas vezes a discussão sobre as forças militares negligencia a importância da questão política. O uso do exército sempre pode ser voltado contra o governo, mesmo uma polícia e exército profissionais. As deserções podem ocorrer em momentos de crise revolucionária. Muitos da esquerda partilham a análise de que, do lado da classe dominante, teremos caras armados até os dentes, satélites, drones, e que terminam tudo em dois segundos. Há todo um imaginário televisivo de transmitir um sentido de potência esmagadora que não é ingênuo - por exemplo alimentar a ideia da inteligência artificial que controlaria tudo. O objetivo é dominar as mentes, de criar uma espécie de fatalidade. Mas não esqueçamos o lugar primordial que ocupa a classe trabalhadora em todos os âmbitos ligados ao armamento e à comunicação. Infelizmente, somos nós que fazemos funcionar as máquinas para fabricação de armas, na manutenção técnica, em registros de telecomunicações. Imaginemos um processo revolucionário onde os engenheiros e trabalhadores da Orange, SFR e Bouygues entram em greve, desativando todas as infra-estruturas de telecomunicações. Em um período revolucionário, quando a pequena burguesia se junta ao proletariado, a força militar do oponente pode entrar em colapso. Não é apenas uma história de confronto militar, mas de confronto político e ideológico e de controle dos meios de produção. Em nossa estratégia da greve geral revolucionária, os meios de produção são paralisados: como colocar gasolina imaginária em seus tanques, seus carros blindados, seus canhões de água?

BALLAST: Vocês denunciam regularmente o "Estado burguês". Qual é seu horizonte: substituí-lo por um Estado operário ou abolir o Estado a favor de outra forma de coordenação coletiva?

"Em nossa estratégia da greve geral revolucionária, os meios de produção são paralisados: como colocar gasolina imaginária em seus tanques, seus carros blindados, seus canhões de água? [Anasse Kazib] "

Laura Varlet: A primeira coisa é que nunca haverá uma revolução "pura". Esta é uma discussão que havíamos levantado na época dos Coletes Amarelos, em debate com outras correntes que afirmam ser revolucionárias: se tivermos que esperar que tudo aconteça como gostaríamos, que todos os proletários tomem consciência de fazer uma revolução e derrubar o Estado, isso nunca acontecerá! A questão relevante é sobre nossa intervenção: a partir de nossa leitura e de nossa estratégia revolucionária. Vimos cenas insurrecionais na Champs Élysées, os Coletes Amarelos diziam: "Vamos entrar no Eliseu", mas não haviam pensado no que fazer a seguir. Nós trotskistas dizemos muitas vezes que a greve geral coloca em questão o poder, mas não a resolve: a greve geral nos permite parar tudo e perguntar quem dirige a sociedade e quem tem poder sobre os meios de produção? Paralisamos a produção e mostramos que são os trabalhadores que fazem a sociedade funcionar, mas isso não prefigura em si o que deve ser construído no lugar do sistema capitalista de dominação. Para nós, a greve geral é o momento para dizer que cabe aos próprios trabalhadores decidir, apropriar dos meios de produção e decidir o que produzir, como produzir, respeitando os seres humanos e o planeta. O Estado de transição é em parte a auto-organizado na base com formas de coordenação de todos os setores explorados da sociedade: os sovietes na Rússia, os cordões industriais no Chile, que eram embriões desta nova forma de Estado. Nenhum deles chegou ao seu fim: a conquista de uma nova sociedade livre de todas as formas de opressão e exploração. Mas todos eles prefiguraram a forma de Estado dos trabalhadores que nós defendemos. A história nos ensina que diante da revolução, diante das classes populares que levantam a cabeça e estão dispostas a fazer qualquer coisa para defender seus interesses e um mundo melhor, a classe dominante se organiza e retalia. Carlos Ghosn, Bolloré ou Arnault nunca admitirão a derrota! Nesta situação, não se pode simplesmente decretar o fim de todas as formas de Estado, como uma ferramenta de domínio de uma classe sobre outra, como propõem os anarquistas. O Estado de transição responde a esta situação de confronto, à necessidade de organizar a resistência contra os antigos exploradores que não se deixarão vencer tão facilmente - mesmo que, no final, este Estado de transição esteja destinado a desaparecer.

BALLAST: Quando?

Laura Varlet: Quando não houver mais nenhuma classe social.

Anasse Kazib: Muitos manifestantes Coletes Amarelos chegaram à conclusão de que espontaneidade e determinação sem organização não são suficientes. Trotski dizia que o fracasso da revolução espanhola na década de 1930 foi quase exclusivamente devido à ausência de um partido revolucionário. Em uma situação revolucionária, o partido desempenha o papel de um estado-maior, um órgão de reflexão política e estratégica. Por outro lado, a burguesia também está dividida, mas quando é atacada, ela responde em bloco: a repressão policial, patronal, midiática e judicial tem sido perfeitamente coordenada. Luc Ferry não é um louco por pedir publicamente que fossem disparadas balas reais nos Coletes Amarelos: ele é simplesmente um burguês que está ciente da situação de insurreição. Da mesma forma, o número 2 do MEDEF, Thibault Lanxade, escreveu uma carta aos patrões pedindo-lhes a "aceitar as regras" e aumentar os salários, pois corriam o risco de perder muito mais do que poderiam dar hoje se a classe trabalhadora entrasse em cena com todas as suas forças. Até meados de dezembro de 2018, os Coletes Amarelos ocupavam trevos rodoviários, bloqueavam áreas industriais ou comerciais e bombas de gasolina. Não foi uma greve "pura", mas houve essa vontade de atacar a produção sem que nenhum militante marxista lhes explicasse isso! Se amanhã renascer um movimento de Coletes Amarelos ’extra-large’, como desejamos, todos os melhores elementos dos Coletes Amarelos virão com sua experiência, tentando influenciar, dar uma direção de modo a não repetir os mesmos erros. Adoro esta frase da Rosa Luxemburgo: "[A] vitória final só pode ser alcançada por uma série de derrotas. [...] O caminho para o socialismo - considerando as lutas revolucionárias - está pavimentado de derrotas". Minha candidatura hoje - e todo o trabalho que fazemos com os militantes do Revolução Permanente na luta de classes, mesmo depois do momento das eleições - tenta modestamente lançar as bases para a construção de uma força militante e política que se prepare para estes confrontos de classe decisivos que, sem dúvida, virão. Mais cedo ou mais tarde. E para isso, convidamos vocês a se juntar a nós nesta aventura!

Tradução: Lina Hamdan

1 - Tweet de 27 de junho de 2021, após o segundo turno das eleições regionais francesas: "Que tapa na cara para o RN [Rassemblement National, extrema-direita], o fascismo à nossa porta em 2022 finalmente não está tão perto. Alguns intelectuais terão que corrigir sua teorização sobre a chegada do fascismo em 2022 com a eleição de Le Pen"

2 - Obrigação de abandonar o território francês: ordem de expulsão das pessoas que não têm autorização de residência no território francês.

3 - Perguntado pela CNews sobre os requerentes de asilo que não obtiveram o status de refugiado, Fabien Roussel declarou em 10 de junho de 2021: "Se não estão em condições legais de permanecer em solo francês, estão em condições legais de sair e serem escoltados para casa".

4 - Perguntado no canal de TV LCI em 21 de novembro de 2021 sobre as revoltas populares em Guadalupe e a resposta repressiva do Estado francês, Yannick Jadot (deputado pelo Verdes) disse: "É normal que o Estado use a força para tentar restaurar a paz".

5 - Em resposta às acusações, em sua maioria liberais, levantadas contra Trótski desde a repressão dos marinheiros de Kronstadt e da Makhnovchina, o Révolution Permanente publicou um artigo em janeiro de 2021. Como nossa entrevista se limitou à estratégia contemporânea, não pudemos voltar a esses debates históricos - ainda que cruciais. Portanto, vamos ler o texto deles para conhecer sua posição e continuar a discussão.

6 - Futuro escrito ao inverso. Popular entre a juventude na França que busca inverter a ordem das sílabas para comunicar à sua própria maneira.

7 - "Pela primeira vez, O número de diretores e gerentes nas taxas totais de assalariados excede a dos operários: atinge 20,4%, em comparação com 19,2% para os operários. No início dos anos 80, os operários eram quase 4 para 1". [fonte: Insee | 18 de março de 2021]

8 - "Les chiffres clés de la Défense", Ministério da Defesa, edição 2020.

 
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