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A China é um país imperialista? As implicações de uma “classificação”
Lorenzo Lodi

A questão do lugar que a China ocupa na ordem internacional é central para caracterizar para onde o sistema capitalista mundial está se dirigindo e tem sido objeto de amplo debate devido à sua complexidade. No Ideias de Esquerda publicamos várias contribuições como parte de um processo de elaboração e discussão sobre o assunto. Nesta ocasião publicamos um artigo de Lorenzo Lodi que faz parte do número 1, outono de 2021, da revista Egemonia, uma publicação teórica de La Voce delle Lotte que faz parte da Rede Internacional Esquerda Diário.

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Ilustração: Marito Ce

[De Florença, Itália] O desenvolvimento da pandemia de Covid-19 intensificou o clamor midiático e acadêmico sobre o confronto entre Estados Unidos e China, fruto de uma retórica que tende a apresentar esta última como uma potência imperialista. Esse termo é usado, sobretudo, para fins de propaganda, com o objetivo de demonizar o gigante asiático como um ator cada vez mais agressivo no plano geopolítico. No entanto, quando a definição é usada “cientificamente”, limita-se a apontar a crescente influência econômica e diplomática da China na Ásia e na África, o que anda de mãos dadas com o surgimento da China como a segunda potência mundial em produto interno bruto e aspirando a rivalizar com os Estados Unidos em setores de alta tecnologia (5G, inteligência artificial, carros elétricos, etc.). No entanto, é necessário caracterizar em profundidade a importância da ascensão geopolítica e econômica da China para a construção de uma estratégia revolucionária internacionalista.

Introdução

O objetivo deste artigo não é tanto comparar a China com outros atores globais por meio de indicadores quantitativos de influência econômica, militar e diplomática, sem compreender a essência social e econômica das relações internacionais. Em vez disso, pretende-se contribuir para o debate da esquerda radical e do marxismo em torno das seguintes questões: em que sentido se pode falar de imperialismo? A China é um país imperialista? Não se trata, é claro, de uma questão de classificação: o caráter imperialista ou não imperialista de um país não coincide necessariamente com seu poder, mas está entrelaçado a ele e define suas possibilidades de desenvolvimento. Portanto, uma caracterização precisa da China pode nos ajudar a entender a especificidade das tensões geopolíticas e de classe que implicam em sua tentativa de escalar as hierarquias globais, como tentaremos argumentar no último parágrafo.

Na verdade, para alguns a pergunta que aqui nos colocamos não faz muito sentido, visto que a República Popular (RP) ainda é um país essencialmente socialista (embora com “características chinesas”) e, portanto, por definição, não imperialista (Roberts 2015, Gabriele 2019, Bellamy Foster 2021). Aqui, o ponto de partida é, ao contrário, aquele que reconhece a restauração capitalista no gigante asiático após 1989, quando a repressão ao movimento da Praça Tiananmen foi seguida de um salto qualitativo no processo de abertura do mercado iniciado no final dos anos 1970 por Deng Xiaoping [1] e que culminou com a adesão do país à Organização Mundial do Comércio em 2001.

Antes de continuar nossa discussão, acreditamos que vale a pena descartar brevemente os partidários do caráter não capitalista da China, que afirmam que a persistência da centralidade do Estado e do Partido Comunista (PC) seria capaz de dobrar a lei do valor às necessidades políticas. De fato, a propriedade da terra chinesa continua estatal, mas o usufruto – que dura entre 50 e 70 anos – pode ser transferido, admite Gabriele, defensor do caráter socialista do setor agrícola chinês. A menos que confundamos relações de produção concretas com relações estritamente jurídicas, esse fato nos mostra, ao contrário, a recuperação substancial do mercado fundiário: é verdade que a cessão de terras ocorre sob a égide das autoridades locais; no entanto, além de terem uma duração muito longa, as concessões na maioria dos casos terminam em projetos agroindustriais e especulação imobiliária de particulares, enquanto o preço dos contratos é basicamente determinado pela lei da oferta e da procura (Tian 2014). O envoltório político em que se enredam as relações agrárias não impede, portanto, que ocorram verdadeiros processos de centralização, objetivo das principais lutas camponesas ocorridas na última década (Chuang Journal 2015). Por outro lado, as empresas estatais constituem os principais polos produtivos do país, mas não contribuem com mais de 25% do PIB. Novamente, é preciso dizer, o ponto central não é tanto o estatuto jurídico das EPE (Empresas de Propriedade Estatal), mas o fato de que, embora sejam públicas, não representam um enclave protegido da economia internacional e, portanto, são substancialmente limitados pelas demandas de valorização do capital: essas estatais não apenas competem diretamente no mercado mundial, mas são altamente dependentes do setor privado para as exportações, que representam 30% das vendas totais do setor estatal. Por fim, o controle público do sistema financeiro e o forte controle do PC sobre o setor privado não são suficientes para impedir que a lei do valor e, portanto, a tendência à superprodução dominem o processo econômico. Isso fica ilustrado pelo excesso de capacidade que se seguiu à crise de 2009, amortecido por um enorme aumento da dívida pública e privada, impulsionado pelo investimento keynesiano em grandes projetos de infraestrutura (Minqi 2016, Rolf 2021; veremos, digamos brevemente, se o recente crash do banco de investimento Evergrande sinaliza o esgotamento deste modelo). Ao mesmo tempo, há uma tendência de buscar no exterior canais para absorver o excesso de capital; este é o significado da “Rota da Seda” e da crescente penetração do capital chinês no Terceiro Mundo, especialmente em África, através de empréstimos que visam garantir contratos multimilionários para as suas próprias empresas (Rolf 2021).

Portanto, se é verdade – seguindo Hobson (1976), Luxemburgo (1913) e Lênin (1916) – que o imperialismo coincide com a tendência de uma formação social capitalista de resolver suas contradições econômicas internas projetando-se para fora, a China certamente opera de uma maneira imperialista. Para Lênin, no entanto, o imperialismo não é diretamente um atributo de um país, mas sim uma fase de desenvolvimento capitalista e uma realidade político-econômica que coincide com a divisão do mundo por um punhado de empresas monopolistas por meio da exportação de capital (Lênin, 1916). Segundo alguns autores e tendências que se referenciam no marxismo revolucionário (como a International Socialist Review, Red Flag e Specter Magazine; permanecendo na Itália SCR-Tendenza Marxista Internazionale e Sinistra Anticapitalista-IV Internacional Mandelista), o impressionante desenvolvimento das multinacionais encabeçadas por Pequim, e o crescimento do Investimento Estrangeiro Direto (IED) da China, demonstrariam o caráter imperialista também com base neste critério. Essa leitura contém – acreditamos – importantes elementos de verdade, mas é basicamente unilateral, como tentaremos argumentar. Na verdade, a abordagem do líder bolchevique ainda é atual em seus traços gerais, mas deve ser atualizada em seu conteúdo concreto; caso contrário, seu espírito seria traído, apenas para permanecer fiel à letra das declarações que têm mais de um século.

Limites e contradições da ascensão da China

A estrutura dos grandes grupos capitalistas e a maneira específica como eles dominam a economia mundial mudaram significativamente desde a época de Lênin. Naquela época, os chamados “monopólios” continuavam a depender em grande medida do mercado interno, embora começassem a adquirir uma crescente projeção internacional no nível dos fluxos financeiros. Além disso, eram empresas verticalmente integradas que produziam principalmente produtos acabados no território nacional, enquanto o principal objetivo do investimento estrangeiro era o fornecimento de matéria-prima barata vinda das colônias. Desde a década de 1980, com a modularização da produção, o declínio das taxas de lucro dos setores maduros nos países centrais e a liberalização dos fluxos de bens e capitais, o investimento estrangeiro tem sido direcionado principalmente para a exploração das diferenças de custos trabalhistas entre países para construir cadeias de produção transnacionais (Smith 2016). Este adjetivo, para ficar claro, não designa a emancipação dos principais grupos capitalistas de seus respectivos sistemas político-econômicos nacionais, dos quais as grandes corporações continuam a depender para sua proteção diplomático-militar e dos quais mantêm seus centros nevrálgicos (gestão, produção especializada, pesquisa e desenvolvimento, etc.). Porém, em termos de mercado e de articulação da divisão do trabalho, o horizonte dos atores que dominam a configuração atual do capitalismo é agora transnacional. É desnecessário dizer que para avaliar a maturidade imperialista da formação de um Estado não basta inquirir sobre os dados a respeito da dimensão das principais empresas, mas antes tentar perceber se são entidades cuja projeção é verdadeiramente global.

Ranking dos países pelo total de ativos externos das principais empresas transnacionais

Como pode ser visto na tabela 1, a China tem 10 empresas entre as 100 maiores em termos de posse de ativos estrangeiros, enquanto ocupa a sexta posição em termos de valor desses ativos. No entanto, o emprego no estrangeiro das maiores multinacionais chinesas é apenas uma pequena percentagem do seu emprego nacional (em média 16%), um sinal da orientação ainda predominantemente doméstica dos grandes grupos ligados a Pequim (em comparação com os pertencentes aos centros imperialistas tradicionais). Embora seja verdade que a classificação da UNCTAD inclui gigantes transnacionais emergentes, como a fabricante de telefones celulares Huawei, a maioria das empresas consideradas são empresas estatais ativas nos setores de produtos químicos, metais básicos, construção e energia, cujo objetivo é principalmente o mercado nacional. Na verdade, esses elementos parecem conflitar com os dados globais sobre o investimento estrangeiro chinês, que já ultrapassou o investimento interno. Porém, como aponta Minqi Li, ainda em 2018, 78% dos ativos asiáticos procedentes da RP (por sua vez, 63% do total) vão para Hong Kong, Macau, Taiwan e Cingapura: um truque usado por empresários chineses para obter incentivos fiscais no investimento estrangeiro (fazendo com que a repatriação de capital apareça como tal) em vez de explorar a força de trabalho local, como grandes empresas ocidentais e japonesas fazem nas áreas costeiras do Dragão (Minqi 2021). Portanto, o crescimento de grandes grupos transnacionais com sede na China também deve ser pesado contra a enorme influência de empresas estrangeiras no comércio internacional do país.

A Tabela 2 mostra a proporção das exportações chinesas em mãos de empresas não nacionais, especialmente no setor de eletrônica e informática, que sozinha representou 23% do total das exportações em 2016 e em que o controle estrangeiro é de 51% (embora o valor real pode estar mais perto de 30 a 40% – líquido de exportações de empresas chinesas de fato, mas com sede em Hong Kong, Macau, Taiwan e Cingapura; Loveley & Huang, 2018). O peso das multinacionais estrangeiras também é muito importante na indústria automotiva (53%), indústria que ainda tem uma modesta importância nas exportações chinesas, mas que é essencial para ganhar status de potência imperialista, dada sua relevância na dinâmica da inovação.

Outro aspecto fundamental para dar conta da posição de um país na hierarquia do capitalismo mundial é, de fato, o controle exercido sobre a tecnologia e as marcas: é graças a esse monopólio – defendido politicamente pelos tratados de propriedade intelectual (TRIPS) – que as multinacionais dos países imperialistas são capazes de ditar preços e condições de trabalho, não apenas para as subsidiárias diretas, mas também para uma miríade de empresas “independentes” que participam como fornecedores subordinados nas cadeias globais de valor. Nesse sentido, o “Dragão” avança de forma impressionante: há alguns anos é o país que mais registra patentes no mundo, enquanto as multinacionais chinesas são as segundas mais representadas no ranking Reuters-Thompson de “líderes tecnológicos mundiais”. Em relação ao primeiro aspecto, deve-se destacar que apenas 4% das patentes apresentadas por universidades e centros de pesquisa chineses (quase 40% do total) são efetivamente traduzidas em novos processos de produção, contra 45% na academia americana (He, 2021 ). Além disso, os dados sobre o potencial de crescimento da China para inovação não refletem necessariamente a posição de Pequim na hierarquia de tecnologia global. Olhando para os fluxos de pagamento de direitos de patentes, marcas registradas, etc., parece que a China é um importador líquido de propriedade intelectual (enquanto os centros imperialistas tradicionais são exportadores), um sinal da persistente dependência do país em tecnologia e das redes de comercialização das economias mais avançadas, bem como dos países mais periféricos, como Índia e Brasil.

Gráfico 1: Pagamentos líquidos de royalties sobre propriedade intelectual (% do PIB)

Todos os aspectos que delineamos até agora são cruciais para situar a China nas dimensões estruturais que qualificam o imperialismo contemporâneo. Resta saber se eles estão associados a uma posição de país “explorado” ou “explorador”. Esse elemento é decisivo para completar a caracterização de uma estrutura econômico-estatal como imperialista ou dominada, como o próprio Lênin (1916) apontou, embora se concentre mais nas transferências de receitas financeiras entre o centro e a periferia do que nos mecanismos profundos de produção e distribuição de mais-valia à escala internacional. O ponto de partida teórico para abordar a questão cientificamente é reconhecer que o sistema de preços relativos – isto é, dados monetários sobre PIB, comércio exterior etc. – não reflete o valor efetivamente produzido (determinado pelo tempo de trabalho socialmente necessário incorporado ao mercadoria), mas sim como ela se distribui pelas unidades produtivas individuais, sejam elas empresas ou sistemas econômicos nacionais; apenas no nível agregado existe uma correspondência entre valores e preços. Esta é a lógica básica a que conduz a teoria econômica de Marx (1971), a partir da qual os modelos marxistas de “troca desigual” foram desenvolvidos após a Segunda Guerra Mundial (Emmanuel, 1971; Amin, 1977; Ricci 2021) [2], segundo os quais as assimetrias tecnológicas e político-econômicas entre os países imperialistas e os subordinados ditam uma transferência dos excedentes destes para os primeiros. Nessa linha, os países que dominam os setores com alto capital orgânico (que tendem a coincidir com os mais tecnológicos) se beneficiam de uma renda quase monopolista e podem vender seus produtos a preços acima de seu valor. Em países periféricos, em contraste, os capitalistas podem ver seu capital adequadamente remunerado – apesar de sua posição subordinada na economia mundial – vendendo mercadorias abaixo de seu valor por meio da superexploração do trabalho. Além disso, a maior produtividade dos centros imperialistas em relação à periferia leva a desequilíbrios na balança de pagamentos e a uma desvalorização da taxa de câmbio desta última – portanto, dos bens exportados –, o que dá origem a um mecanismo de troca ainda mais desigual. Intuitivamente, a eficácia dessa abordagem fica evidente quando se pensa no fato de que a China, apesar de ser a “oficina do mundo”, tem uma renda per capita que segue sendo cerca de 1/4 da dos países ocidentais. Portanto, considere a “cadeia de valor” do iPhone, onde o valor agregado que a Foxconn se apropria – quem realmente fabrica o dispositivo – é apenas uma fração do produto acabado que a Apple vende, graças a possibilidade de reduzir os salários dos trabalhadores chineses até o osso (Smith, 2016).

Por último, embora a China tenha um superávit em sua balança de pagamentos em relação aos Estados Unidos, ela contribui para a supervalorização do dólar – e a senhoriagem internacional – ao investir os superávits comerciais em títulos do governo dos Estados Unidos (Minqi, 2021). No entanto, como Ricci mostrou recentemente, é possível avaliar com precisão o grau de desigualdade das trocas e identificar quais países são expropriadores e quais são expropriados, comparando o valor monetário das horas de trabalho mundiais com o de economias individuais e levando em consideração as diferenças entre as taxas de câmbio reais e as da paridade do poder de compra (Ricci, 2021) [3].

O Gráfico 3 mostra claramente que a China, ao contrário dos países ocidentais, continua a experimentar uma transferência de valor líquido de 6% do PIB. Certamente, este é um número que triplicou na última década, a maior taxa entre as regiões em desenvolvimento, o que mostra que, assim como não se pode descartar a RP como um país imperialista, tão pouco se pode atribuir a ela um caráter periférico ou semiperiférico com um significado estático.

China e o “Terceiro Mundo” contra o imperialismo?

Nos parágrafos anteriores, tentamos mostrar como a China permanece em grande parte um país subordinado nas hierarquias capitalistas internacionais; no entanto, neste ponto queremos enfatizar novamente que seu modelo de acumulação não equivale a uma tentativa de construir um capitalismo nacional. Ao contrário, o desenvolvimento da China é acompanhado pelo crescimento de gigantes transnacionais nos setores de alta tecnologia e na tentativa de resolver suas contradições – sobretudo a tendência à superprodução – por meio de mecanismos tipicamente imperialistas, como o investimento estrangeiro nos países em desenvolvimento. Assumir uma caracterização complexa do Dragão não significa ficar do lado de Pequim contra Washington, uma vez que a crescente projeção geopolítica do primeiro não só responde a uma lógica defensiva diante dos movimentos do segundo, mas a uma dinâmica agressiva intrinsecamente ligada ao seu próprio modelo de acumulação. Portanto, como está perfeitamente dentro da lógica capitalista e imperialista, também rejeitamos a ideia de que a ascensão chinesa melhore as relações de força entre as classes a nível internacional, aumentando a margem de manobra dos países do “hemisfério sul” que desejam lançar projetos de desenvolvimento independentes, associados a um crescimento numérico e político do proletariado. Se é verdade que as condições dos empréstimos oferecidos por Pequim aos países periféricos não obedecem aos ditames do Fundo Monetário Internacional, também é verdade que se destinam essencialmente à construção de infraestruturas destinadas à penetração da mercadoria chinesa no mercado local. e controlar o acesso aos recursos naturais, em competição com as potências imperialistas – e não no estabelecimento de um modelo alternativo. Isso, com o efeito de reproduzir, senão agravar, a extroversão e a dependência da exportação de matérias-primas das economias envolvidas, hipotecando seu desenvolvimento produtivo. A este respeito, ver os dados sobre as exportações de produtos manufaturados da África Subsaariana e da América Latina, que tiveram a tendência a diminuir em relação às de minerais e produtos tropicais, durante os últimos 20 anos marcados pelo acesso à OMC e, portanto, para a integração definitiva da RP no mercado mundial. A causa fundamental é, sem dúvida, a estratégia de realocação da produção na Ásia por multinacionais ocidentais, mas é claro que a ascensão da China para se tornar o principal parceiro comercial e uma importante fonte de investimento estrangeiro para o “terceiro mundo” apoiou a tendência e piorou ainda a situação.

Exportações de manufaturados, % das exportações totais

A modo de conclusão: as implicações de uma classificação complexa

À luz de nossa análise, fica claro que a China mantém características que a tornam um ator substancialmente subordinado em relação ao centro do sistema mundial, embora seu desenvolvimento apresente traços imperialistas cada vez mais marcantes. Que sentido faz então enfatizar que a República Popular não é uma potência imperialista tout court? No plano político, essa abordagem nos parece necessária para nos afastarmos de um certo catastrofismo abstrato e evitar uma atitude servil aos meios de comunicação ligados ao grande capital euronorte-americano, interessados em exagerar o alcance da “ameaça chinesa” para criar um clima de cerco e reforçar a legitimidade instável das democracias ocidentais.

Na verdade, a República Popular só poderia aspirar à vitória em um conflito mundial se conseguisse romper a frente dos tradicionais centros imperialistas, o que, no entanto, é reforçado pela necessidade de manter a China em uma condição semiperiférica. Claro, um possível eixo estratégico com Moscou – uma potência à margem das hierarquias imperialistas, mas não das político-militares – tornaria muito difícil para Washington impedir uma nova afirmação de Pequim; no entanto, China e Rússia têm interesses conflitantes na Ásia Central (onde a Rota da Seda ameaça a hegemonia de Moscou sobre os países do espaço pós-soviético), enquanto as relações entre seus respectivos capitais financeiros e industriais são quase inexistentes. Além disso, mesmo juntas – por enquanto – as potências em questão não têm um potencial bélico comparável ao dos Estados Unidos, e a situação é ainda mais desequilibrada quando se considera a OTAN como um todo. Dito isto, é verdade que os grandes países da União Europeia incluídos na “aliança atlântica” nem sempre têm interesses coincidentes, nem nas suas relações mútuas nem com os EUA (pense nas nuances que surgiram na reunião do G7 de junho entre os “parceiros europeus” sobre como lidar com o atual confronto com a China – que, no entanto, é dado como certo). Vale a pena lembrar também o “incidente” diplomático entre Washington e Paris em setembro passado, após a não participação desta no sistema de alianças do Pacífico e o consequente cancelamento pela Austrália de uma ordem militar de 56 bilhões.

No entanto, Pequim não parece ser capaz de capitalizar isso econômica e geoestrategicamente, apesar da vulgata da mídia que destaca o papel crescente do investimento chinês direto na Europa. Na verdade, é um fenômeno superestimado, principalmente em nosso país; mas se olharmos para o stock de IED correspondente às empresas do gigante asiático na Itália, vemos que são muito menores do que os de outros países imperialistas.

Investimento estrangeiro direto (IED) de entrada, Itália 2020

Alguns negócios verdadeiramente significativos, como a participação de 30% da Chemchina na Pirelli, olhando mais de perto, parecem mais acordos de conveniência contingentes do que sinais da influência crescente do capital baseado em Pequim: por um lado, a Chemchina pode se apropriar de uma parte do know-how, por outro, a Pirelli – cujos centros de gestão e P&D, é preciso notar, ainda se encontram em Milão – pode aumentar sua capitalização e sua capacidade de penetração no mercado chinês. Enquanto isso, as grandes famílias do capitalismo italiano – que continuam entre os principais acionistas – parecem aguardar a primeira oportunidade para voltar à tona: neste verão, Tronchetti Provera aumentou sua participação de 10% para 14% das ações da Pirelli, talvez com vista a uma fusão com a Bombassei (proprietária da Brembo, empresa líder em sistemas de frenagem, hoje com 5%). Este esquema, em que as empresas chinesas se limitam a uma participação maioritária, deixando substancial autonomia à contraparte, parece ser frequente, como mostra um relatório recente sobre o investimento direto chinês na UE: mesmo no caso da aquisição da Volvo pela Geely, os centros de gestão permaneceram em Estocolmo, enquanto a venda de carros suecos na Ásia cresceu mais do que a de carros chineses na Europa (Knowerich & Miedtank, 2018). Diante de intromissões mais explícitas destinadas a desafiar a liderança tecnológica ocidental, os governos das principais potências da UE também estão se movendo para colocar restrições cada vez mais severas à aquisição de empresas nacionais por investidores chineses, como os casos apresentados na tabela a seguir, que são somado ao uso do “poder de ouro” no abastecimento das empresas de alta tecnologia da Gigante Asiática que participam da construção da rede 5G (a última, a de Draghi contra a Huawei em abril passado).

Desta forma, a capital do Dragão – estatal ou privada – não consegue romper as fileiras da burguesia europeia; não consegue nem tirar proveito das contradições entre ela e o médio-pequeno capital, que – menos internacionalizado e concentrado em setores de baixo valor agregado – é o que mais tem sofrido com a abertura da China ao mercado mundial de décadas recentes. Nesse sentido – permanecendo na Itália – fica evidente como o apelo à lealdade atlântica tem sido uma alavanca importante – embora não a única, nem decisiva – para empurrar Salvini a entrar no governo Draghi, enquanto as inclinações pró-chinesas de Giuseppe Conte parece ter desempenhado um papel fundamental em pressionar Beppe Grillo a vetar a transferência da direção do Pentastelite para o advogado da Puglia (isso mostra, aliás, o quão longe de favorecer a classe trabalhadora italiana, o crescimento chinês favorece de fato compactuar com os dominantes).

Como assinala Esteban Mercadante (Mercatante, 2020), é necessário evitar tomar precipitadamente como certo o caráter imperialista da China para não perder de vista os processos centrais que devem ocorrer dentro dela antes de atingir a maturidade plena neste aspecto. A esse respeito, Minqi Li (2021) argumenta que, sendo a construção de uma aristocracia operária uma das características fundamentais de um país imperialista, existem limitações estruturais para que a RP se converta em tal, já que é impossível elevar a renda per capita da China aos níveis ocidentais, em um estágio em que o capitalismo manifesta todas as suas limitações produtivas e ecológicas. No entanto, é questionável que a expansão da classe média possa continuar a ser considerada como uma característica fundamental do imperialismo contemporâneo. Como já apontamos, ela se baseia no controle das cadeias produtivas transnacionais por meio do monopólio dos setores de alta tecnologia, situação em que a estrutura social do centro capitalista tende a se polarizar entre uma massa de trabalhadores pouco qualificados e de baixa renda, frequentemente empregados em serviços, e uma estreita elite técnico-profissional.

Nesse sentido, o principal obstáculo à ascensão imperialista da China não nos parece ser os limites absolutos do capitalismo, mas o fato de que, para escalar as hierarquias tecnológicas mundiais e as cadeias globais de valor, e assim passar da “oficina de o mundo” ao centro nevrálgico de um novo polo dominante do capitalismo transnacional, a China teria que concluir um difícil processo de reestruturação industrial, que por sua vez implicaria um ataque de corpo inteiro à classe trabalhadora formada nos últimos trinta anos. De fato, essa dinâmica já está em curso, como mostra a redução do peso da indústria de manufaturados no PIB a favor dos serviços (de 30% em 2010 para 26% hoje; dados do Banco Mundial), sintoma tanto de uma tentativa de modernização como uma ofensiva contra os trabalhadores. Como escreve o China Labour Bulletin (2021), “milhões de trabalhadores em indústrias tradicionais foram despedidos e muitos dos novos empregos criados no setor de serviços são precários e muito mal pagos”. Portanto, dado que o avanço chinês nas hierarquias imperialistas está longe de ser completo, devemos esperar que essa tendência continue, intensificando o nível de confronto entre o Partido Comunista e os assalariados chineses, em cuja capacidade de organização e resistência reside, em última instância, o destino do país. É então neles, e na construção da solidariedade internacional da classe trabalhadora, onde devemos depositar nossas esperanças para que a rivalidade entre Estados Unidos e China não termine em um confronto com resultados catastróficos para a humanidade.

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Referências bibliográficas

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Tradução ao espanhol: Federico Roth.
Tradução ao português: Iaci Maria.

 
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