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20 anos do 11S
Estados Unidos: da guerra contra o terrorismo ao conflito entre potências
Claudia Cinatti
Buenos Aires | @ClaudiaCinatti
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Tradução: Iaci Maria

As cerimônias pelo 20º aniversário dos ataques hediondos ao World Trade Center são marcadas por um clima de derrota. O Afeganistão, onde tudo começou, é mais uma vez governado pelo Talibã, que em apenas uma semana assumiu o controle do país, ocupado pelos Estados Unidos e pela OTAN por duas décadas. A imagem humilhante da retirada dos Estados Unidos do Afeganistão, e de milhares de afegãos que colaboraram com o Ocidente desesperados para fugir do país, acompanhará o presidente Joe Biden como sua sombra. Como se isso não bastasse, a despedida das tropas dos EUA contou com um ataque suicida no aeroporto de Cabul, reivindicado pelo Estado Islâmico de Khorasan (ISIS-K), no qual morreram 13 soldados norte-americanos e mais de 100 civis afegãos.

Internamente, no aniversário desta nova década desde o 11 de setembro, a situação é dominada por uma polarização política renovada. Os republicanos – e a ala Trump em particular – voltaram à ofensiva, convencidos de que encontraram o calcanhar de Aquiles do presidente Biden mais rápido do que o esperado. A frase mais repetida na mídia conservadora é que Biden “aspirava a ser Roosevelt e acabou como Jimmy Carter”, referindo-se à crise de reféns na embaixada dos Estados Unidos no Irã em 1979. Nem importa que tenha sido o ex-presidente Donald Trump aquele que assinou as coordenadas da derrota dos Estados Unidos nas negociações com o Talibã em Doha em fevereiro de 2020.

O presidente Biden está tentando virar a página para voltar à agenda doméstica, em particular lançando planos de infraestrutura e evitando que uma nova onda da pandemia coloque em questão a recuperação econômica da qual, em grande medida, depende seu êxito. Mas, por enquanto, ele não consegue restaurar o clima de lua de mel dos primeiros seis meses de sua presidência. Sua popularidade continua diminuindo e suas medidas mais recentes, como a vacinação obrigatória contra a Covid-19 para funcionários públicos federais, desperta resistência e dá argumentos “libertários” aos grupos de extrema direita anti-vacinas.

De acordo com uma pesquisa do Washington Post-ABC News, o fim retumbante das “guerras sem fim” e a iminência de uma nova onda da pandemia do coronavírus alimentam um clima de paixões tristes: 46% e 50% dos entrevistados responderam, respectivamente, que os ataques de 11 de setembro e a pandemia de coronavírus mudaram o país para pior.

No próximo período veremos em que medida a foto da catastrófica retirada do Afeganistão condiciona o filme, especialmente se terá uma influência negativa sobre os democratas nas eleições legislativas do próximo ano. E, sobretudo, qual é o significado estratégico da derrota dos Estados Unidos na guerra contra o terrorismo, quando se prepara para um cenário de competição e conflito entre grandes potências, primeiro com a China, seguida pela Rússia e outras potências regionais menores, mas com ambições, como o Irã e até a Turquia.

O 11 de setembro e o fim do “momento unipolar”

Se, segundo o historiador Eric Hobsbwam, a queda da União Soviética pôs fim ao “curto século XX”, os atentados terroristas de 11 de setembro marcaram o fim do curto ciclo da “hiperpotência norte-americana”, definitivamente enterrada por um evento de magnitude semelhante, embora em outro recorte: a crise capitalista de 2007 e a Grande Recessão que se seguiu.

O chamado “momento unipolar” das usinas neoconservadoras foi um período excepcional de domínio incontestado dos Estados Unidos após o desaparecimento da União Soviética da cena política. Os anos 1990 foram a miragem do poder norte-americano sem limites: os Estados Unidos triunfaram na Guerra Fria. E na primeira Guerra do Golfo de 1991, sob a presidência de George Bush (pai), ostentavam um imponente potencial militar, desenvolvido pós-Vietnã durante os anos Reagan. Sem inimigos ou ameaças à vista da estatura da ex-URSS, o dólar e o Pentágono – dois pilares da hegemonia dos EUA – pareciam sólidos o suficiente para suportar o peso de um “novo século americano”.

A expressão máxima desse triunfalismo foi a formulação infame de “fim da história” por Francis Fukuyama, um intelectual do círculo de Leo Strauss, que usou nada menos do que a filosofia da história hegeliana para dar justificativa ideológica ao domínio universal do “Ocidente”, isto é, dos Estados Unidos: a fórmula da democracia burguesa mais o liberalismo econômico era o último objeto de desejo.

Porém, no suposto apogeu de sua hegemonia, já emergia uma espécie de confusão estratégica para a principal potência imperialista. A União Soviética, o inimigo que ordenou os campos geopolíticos e militares nos últimos 50 anos, não existia mais. E não houve substituto para a Grande Estratégia de Contenção, formulada por George Kennan em 1946, que havia sido política de estado durante a Guerra Fria, além das oscilações entre “isolacionistas” e “intervencionistas” de administrações republicanas e democratas que se alternavam na Casa Branca.

A primeira Guerra do Golfo contra o Iraque, liderada e vencida por Bush pai, enquadra-se na racionalidade “realista” da política externa e militar imperialista orientada pelo interesse nacional. Afinal, Saddam Hussein havia aproveitado o momento de confusão para tentar manter o Kuwait e seu petróleo, o que sem dúvida afetava os interesses estratégicos dos Estados Unidos e de seus aliados, como a Arábia Saudita, na região.

As presidências subsequentes de Bill Clinton inauguraram o que foi chamado de “intervencionismo liberal”. Este foi um novo tipo de guerra assimétrica justificada por razões “humanitárias” que se tornou doutrina no establishment democrata. O exemplo paradigmático dessas intervenções militares da década de 1990 foi a guerra do Kosovo, onde os Estados Unidos não tinham interesses nacionais, mas dois objetivos geopolíticos: o primeiro, mostrar-se como a “nação indispensável” diante da impotência dos aliados europeus para conter o desmembramento dos países dos Balcãs. O segundo, e talvez mais importante, é estender a OTAN às fronteiras da Rússia como parte de uma política de hostilidade aberta. No entanto, o equilíbrio é contraditório, já que outras intervenções desse tipo, como a da Somália, terminaram em um fiasco ruinoso para a potência norte-americana.

As consequências da “guerra ao terrorismo”

Após os atentados terroristas às Torres Gêmeas, o presidente republicano George W. Bush adotou a estratégia da “guerra ao terrorismo” idealizada pelos neoconservadores, que, embora procedessem do meio acadêmico, tiveram representantes em cargos-chave da administração republicana, como o vice-presidente Dick Cheney. Consistia em superar, com uma estratégia unilateral e baseada no poder militar, o declínio do imperialismo norte-americano, cuja vulnerabilidade havia sido exposta diante dos olhos do mundo.

Embora 19 dos atacantes de 11 de setembro tenham vindo da Arábia Saudita (que, de acordo com documentos confidenciais, desempenhou um papel importante no planejamento dos atentados terroristas), os Estados Unidos declararam guerra ao Afeganistão porque era onde Osama Bin Laden estava se refugiando e onde estavam seus campos de treinamento da Al Qaeda.

A guerra do Afeganistão, conhecida como Operação Liberdade Duradoura, teve inicialmente grande legitimidade internacional e forte apoio interno dado pelos próprios atentados terroristas. Mas depois de expulsar o Talibã do poder em outubro de 2001, os Estados Unidos decidiram estender a ocupação do Afeganistão e ampliaram seus objetivos para a “construção nacional” e depois a “contra-insurgência”.

A “guerra ao terrorismo” transformou-se na chamada “guerra preventiva”, pela qual os Estados Unidos assumiram o direito de atacar militarmente de antemão os governos tidos como inimigos e impor uma “mudança de regime”.

Dentro dessa lógica está inscrita a guerra por escolha dos Estados Unidos contra o Iraque em 2003, que ao contrário do Afeganistão só foi acompanhada por um punhado de aliados incondicionais, como o Reino Unido. O regime de Saddam Hussein era uma ditadura detestável, mas não havia nenhuma conexão entre seu governo e os ataques terroristas. Nem mesmo com a Al Qaeda. O casus belli era uma fake news: que Saddam Hussein possuía armas de destruição em massa.

As “guerras gêmeas” do Iraque e do Afeganistão construíram um consenso bipartidário que eliminou a oscilação tradicional entre os setores “isolacionistas” e “intervencionistas” do establishment republicano e democrata. Obama conquistou a presidência com a promessa de acabar com as “guerras eternas”, mas acabou aumentando a presença militar no Afeganistão apesar de em 2011, graças à inteligência do Paquistão, ter conseguido assassinar Bin Laden. Sob sua presidência chegou a haver 100 mil soldados norte-americanos em solo afegão. E estendeu a “guerra ao terrorismo” a outros países como Iêmen, Líbia e Síria.

A guerra do Iraque fazia parte da estratégia neoconservadora de “redesenhar o mapa do Oriente Médio”. E certamente redistribuiu o poder regional, mas não da forma que os neoconservadores imaginaram. O principal efeito colateral da derrubada de Saddam Hussein foi o fortalecimento do Irã, que passou de ter um inimigo para ter um governo aliado no Iraque, que respondeu às suas ambições regionais.

Uma consequência derivada do exposto acima, e que ainda sobredetermina o jogo geopolítico no Oriente Médio, é a guerra fria entre a Arábia Saudita e o Irã – como uma expressão estatal da guerra civil intra-islâmica entre sunitas e xiitas – que levou à guerra no Iêmen.

Do ponto de vista do objetivo explícito de “combater o terrorismo”, foi um multiplicador de variantes islâmicas radicais, que tiveram sua expressão mais aberrante – pelo menos até agora – no surgimento do Estado Islâmico (Daesh), que no momento de sua ascensão, estabeleceu um califado em parte do território do Iraque e da Síria.

Seria uma simplificação dizer que os Estados Unidos criaram o Estado Islâmico, o mesmo que dizer que criaram, anteriormente, os “mujahideen” que lutaram contra a União Soviética no Afeganistão na década de 1980. Mas não há dúvida de que a ocupação norte-americana e o superaquecimento do confronto entre xiitas e sunitas acrescentaram combatentes às fileiras do Estado Islâmico (ISIS), que por sua vez se revelou uma ferramenta para diferentes causas reacionárias, como a luta da Turquia contra os curdos na Síria, ou a liquidação das tendências mais progressistas que emergiram das revoltas da “Primavera Árabe”.

Este ressurgimento do terrorismo islâmico e a transformação de estados como a Líbia e a Síria em “estados falidos” se espalharam pela Europa na forma de atentados terroristas aberrantes, reivindicados por franquias do ISIS. Muitos combatentes internacionais do ISIS vieram de países europeus, onde se desenvolveu uma islamofobia brutal. Além das ondas de refugiados que fogem de guerras imperialistas ou guerras civis reacionárias incentivadas por potências regionais.

O Estado Islâmico foi derrotado na Síria e no Iraque e seu califado não existe mais. Mas isso não significa que não possa agir novamente, como mostrou o atentado em Cabul em meio à retirada americana.

Os efeitos duradouros do 11 de setembro

Em seu livro Reign of Terror: How the 9/11 Era Desestabilized America and Produced Trump, publicado em agosto de 2021, o jornalista Spencer Ackerman (que recebeu o prêmio Pulitzer por seu trabalho no The Guardian sobre o relatório de Edward Snowden) argumenta que o “fenômeno Trump” é um produto direto da “guerra ao terrorismo”. De acordo com Ackerman, o famoso “America First”, que deveria colocar o interesse nacional norte-americano em primeiro lugar, não é uma ruptura como pode parecer, mas a conclusão lógica da era do 11 de setembro. E antes de Trump, Obama que buscou uma versão “sustentável” da “guerra ao terrorismo”.

A explicação do trumpismo apenas pelas consequências do 11 de setembro parece um exercício reducionista. A crise capitalista de 2007, a polarização social e política e o esgotamento da hegemonia neoliberal tiveram seu papel. No entanto, há um elemento de continuidade que torna o argumento de Ackerman interessante: que Trump entendeu a metamensagem (o “subtexto grotesco” como ele colocou) implícita na “guerra ao terrorismo”: a percepção dos “não-brancos” – muçulmanos e, mais em geral, imigrantes – como uma ameaça hostil.

Isso explicaria, entre outras coisas, o fenômeno persistente de terrorismo de extrema direita de cidadãos norte-americanos radicalizado por teorias da conspiração como a da “grande substituição” da população branca e seus valores por comunidades de imigrantes. E que a principal ameaça vem, na verdade, do “aparato contraterrorista” do próprio estado.

O outro elemento apontado por Ackerman é que o 11 de setembro alimentou um “excepcionalismo” carregado por parte do imperialismo norte-americano que distorceu o impacto geopolítico da superextensão imperial no plano interno e a resistência em nível doméstico ao ataque às liberdades democráticas e o reforço de um estado hiper vigilante.

Sem dúvida, devido aos seus objetivos ambiciosos, o fracasso da “guerra ao terrorismo”, longe de projetar poder para o resto do mundo, expôs a “superextensão” dos Estados Unidos. Em seu livro Ascensão e queda das grandes potências (1987), o historiador britânico Paul Kennedy, analisando o poder norte-americano em comparação com o britânico e as potências hegemônicas que o precederam, argumentou que há uma relação necessária entre a fortaleza econômica e o domínio de uma grande potência pois, junto com o poder militar, foram os aspectos centrais para influenciar decisivamente os assuntos mundiais. Sua conclusão foi que a liderança dos Estados Unidos enfrentava o perigo documentado pelos historiadores de que havia selado a ascensão e queda das grandes potências precedentes e que ele chamou de “excessiva extensão imperial”. Isso significava que a soma de seus interesses e obrigações internacionais excedia sua capacidade de sustentá-los. Em ensaio publicado no semanário The Economist, sobre o fim da “guerra ao terrorismo”, o declínio norte-americano e a ascensão da China, Kennedy argumenta que há mudanças estruturais que colocam em xeque a posição de liderança dos Estados Unidos: a emergência de potências concorrentes que representam uma redistribuição do poder mundial; a competição econômica da China e seu relativo avanço militar.

Em certo sentido, a “guerra ao terrorismo” terminou antes da retirada do Afeganistão, quando o governo Trump (e posteriormente o Congresso) adotou a nova Estratégia de Defesa Nacional que colocou como prioridade a “competição interestatal” e a preparação para o conflito de longo prazo entre grandes potências. Neste documento, as ameaças à “segurança nacional” vêm das chamadas “potências revisionistas” – China e Rússia, em primeiro lugar, seguidas pela Coreia do Norte e Irã – que buscam “revisar” a ordem estabelecida pelos Estados Unidos depois da Guerra Fria. Eles são contra, mas não têm forças para enfrentá-los como um todo. Por isso disputam em nível regional, onde as lideranças norte-americanas mostraram suas debilidades.

Esta justificativa de estado do imperialismo norte-americano de conter a ascensão da China e evitar a consolidação de sua aliança pragmática com a Rússia, em última análise, explica os aspectos de continuidade entre Trump e Biden que subsistem além das diferenças óbvias e da intenção da atual administração de reconstruir o “multilateralismo” prejudicado durante os quatro anos de nacionalismo trumpista.

Em 1936, Leon Trótski refletiu sobre as consequências para os Estados Unidos de terem ascendido à posição de “principal potência imperialista do mundo” em uma época histórica de declínio capitalista. Sua conclusão foi que, ao estender “seu poder pelo mundo, o capitalismo dos EUA traz às suas bases a instabilidade do sistema capitalista mundial” e que, portanto, “a economia e a política dos EUA dependem das crises, das guerras e das revoluções em todas as partes do mundo”. Embora em condições diferentes das da década de 1930, é essa relação que confere um caráter cada vez mais convulsivo aos cenários que vão se abrindo.

 
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