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As influências de Trótski sobre o dependentismo
Seiji Seron

Reproduzimos a seguir um excerto ligeiramente modificado de “As influências de Leon Trótski sobre o dependentismo”, artigo apresentado por Seiji Seron na última terça-feira (03), em simpósio temático do evento “Trótski Em Permanência”. O artigo completo será oportunamente publicado nos anais do evento.

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Assista aqui ao simpósio temático 4.

I.

Leon Trótski exerceu uma forte influência sobre o pensamento social brasileiro, influência esta que, até hoje, é pouco admitida [1]. Uma das vertentes desse pensamento na qual tal influência é mais perceptível é a “teoria da dependência”, termo que se refere à produção de um conjunto de intelectuais latino-americanos a qual tentava explicar por que as economias latino-americanas não se tornaram desenvolvidas, a despeito de terem se industrializado, em maior ou menor medida, seguindo as políticas de substituição de importações, prescritas pela Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL), um órgão das Nações Unidas, criado em 1948. Segundo Beigel (2014), esses intelectuais convergiram para Santiago do Chile, cidade que se tornou o “laboratório” da teoria da dependência, por efeito dos golpes militares de 1964, no Brasil, e de 1966, na Argentina.

“Vistos como conjunto, os ‘dependentistas’ foram uns trinta cientistas sociais, nascidos entre fins da década de 1920 e meados da de 1940. À exceção de Celso Furtado, a grande maioria tinha entre 27 e 37 anos; a metade era formada por economistas e a outra metade por sociólogos, advogados ou cientistas políticos. Tirando André Gunder Frank, Franz Hinkelammert e Armand Mattelart, os demais eram latino-americanos. Noventa por cento eram sul-americanos; a metade composta por brasileiros.” (Beigel, 2014; p. 79)

Ainda segundo Beigel, não há uma única teoria da dependência, ou um único enfoque analítico, mas apenas um problema teórico comum. Mas, de modo geral, todos os dependentistas compartilham o rechaço: a) às teorias da modernização estadunidenses, que concebem o processo de desenvolvimento como uma sequência unilinear de etapas, idêntica em todos os países, e o subdesenvolvimento como uma destas etapas, já percorrida pelos países desenvolvidos; b) ao estruturalismo cepalino, que contrapunha setores “arcaicos” e “modernos”, atribuindo o subdesenvolvimento à obstaculização da expansão destes por aqueles; e c) à doutrina dos Partidos Comunistas (PCs), stalinistas, para os quais a colonização da América Latina tinha um caráter “feudal”. Além dos golpes militares supracitados, a Revolução Cubana e a profissionalização das ciências sociais latino-americanas foram também fatores geradores do pensamento dependentista (Silva e Costa, 2018).

Uma primeira leva de dependentistas formou-se entre os próprios cepalinos, principalmente, entre os membros do Instituto Latino-Americano de Planificação Econômica e Social (ILPES), afilhado à CEPAL. Este é o caso de Fernando Henrique Cardoso e Enzo Faletto, co-autores do célebre Dependência e desenvolvimento na América Latina, entre outros. Além da CEPAL e da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO), também foram notáveis centros de produção do pensamento dependentista o Centro de Estudos da Realidade Nacional (CEREN), da Universidade Católica, e o Centro de Estudos Socioeconômicos (CESO), da Universidade do Chile (Beigel, op. cit.). [2] Seja como for, as duas formulações mais célebres da teoria da dependência são a de Cardoso e Faletto, dita weberiana, por um lado, e a da “corrente radical” da dependência, dita marxista, por outro. Pertenceriam a esta corrente os brasileiros Ruy Mauro Marini, Vânia Bambirra e Theotônio dos Santos, o germano-estadunidense André Gunder Frank, os chilenos Orlando Caputo e Roberto Pizarro (Beigel, op cit.; Silva e Costa, op. cit.; Wasserman, 2017).

Por negar a capacidade das burguesias latino-americanas de realizar as transformações necessárias ao desenvolvimento, a teoria da dependência é comumente associada às teorias de Trótski do desenvolvimento desigual e combinado e da revolução permanente. Tal associação é feita, por exemplo, por Ronald Chilcote (2012) e Guido Mantega. Porém, ambos cometem equívocos de interpretação dessas ideias de Trótski e, por causa de tais equívocos, exageram as semelhanças ou convergências entre tais ideias e a teoria da dependência. Essas eventuais convergências não acarretaram nenhuma adesão dos dependentistas ao trotskismo, nem dos “radicais”, muito menos de Fernando Henrique, que concluiu ser melhor para o Brasil tentar se “desenvolver” associando-se, ou melhor, submetendo-se despudoradamente ao imperialismo, do que através de uma “improvável” ou “impossível” revolução, seja esta do caráter que for (Silva e Costa, op. cit.).

II.

É inegável que há várias semelhanças entre o pensamento dependentista e o de Trótski, a principal das quais é a concepção da economia mundial como uma totalidade.

“Ao ligar países e continentes em distintos estágios de desenvolvimento em um sistema de dependências e contradições, aproximando seus níveis de desenvolvimento e imediatamente os afastando, contrastando os países de modo irreconciliável, a economia mundial se tornou uma poderosa realidade que domina a economia dos diversos países e continentes.” (Trótski, 2020; p. 135)

Em outras palavras, a economia mundial é considerada pelo marxismo...

“não como simples adição de suas unidades nacionais, mas como uma poderosa realidade independente, criada pela divisão internacional do trabalho e pelo mercado mundial, que, em nossa época, domina do alto os mercados nacionais.” (Trotski, 1985; p. 4)

Em Desenvolvimento e dependência na América Latina, lê-se que

“a situação de subdesenvolvimento produziu-se historicamente quando a expansão do capitalismo comercial e depois do capitalismo industrial vinculou a um mesmo mercado economias que, além de apresentarem graus variados de diferenciação do sistema produtivo, passaram a ocupar posições distintas na estrutura global do sistema capitalista. Desta forma, entre as economias desenvolvidas e as subdesenvolvidas não existe uma simples diferença de etapa ou de estágio do sistema produtivo, mas também de função ou posição dentro de uma mesma estrutura econômica internacional de produção e distribuição.” (Cardoso e Faletto, 1975; p. 25-6)

O mesmo era assinalado por dos Santos, para quem “a economia mundial tem que ser tomada como determinante em última instância.” (apud Bambirra, 2013; p. 40) A determinação é apenas “em última instância” porque dos Santos e Vânia Bambirra definem a dependência como uma situação condicionante, que estabelece limites, mas também possibilidades [3]. Assim como Cardoso e Faletto, Bambirra nota que

“o ‘atraso’ dos países dependentes foi uma consequência do desenvolvimento do capitalismo mundial e, ao mesmo tempo, a condição desse desenvolvimento nas grandes potências capitalistas mundiais. Os países capitalistas desenvolvidos e os países periféricos formam uma mesma unidade histórica, que tornou possível o desenvolvimento de alguns e inexorável o atraso de outros.” (Bambirra, 2013; p. 44 – itálicos no original)

III.

Em contrapartida, há uma importante diferença entre trotskistas e dependentistas a respeito da caracterização das colônias latino-americanas. Enquanto estes últimos tenderam a unilateralizar a definição do caráter fundamentalmente capitalista da colonização, os primeiros ressaltaram o desenvolvimento combinado das formações coloniais, ou a imbricação de elementos capitalistas e pré-capitalistas, sejam escravistas ou mesmo semi-feudais. Para Löwy (1998), é Gunder Frank quem mais enfatiza o caráter exclusivamente capitalista das colônias. Porém, também pode ser assim interpretada a afirmação de Dialética da dependência, de Ruy Mauro Marini (2011), de que, na América Latina, há menos “pré-capitalismo” e mais um “capitalismo sui generis”, isto é, há menos insuficiência de capitalismo, e mais deformações e distorções do que seria um processo de desenvolvimento capitalista “normal”, tal qual o das economias centrais.

Todavia, Mantega alega que teorias de Gunder Frank e Marini são “variantes” do desenvolvimento desigual e combinado e coincidem com a tese de Trótski de que as forças produtivas da humanidade pararam de crescer (Chilcote, op. cit.). De fato, Mantega e outros adversários de Marini e da “corrente radical” da dependência como um todo irão acusá-los de catastrofistas, estagnacionistas, ou ainda de teorizarem uma suposta “inviabilidade” do capitalismo periférico (Katz, 2020; Silva e Costa, op. cit.; Wasserman, op. cit.). No entanto, nenhuma destas acusações pode ser feita a Trótski. Em sua crítica ao programa que o VI Congresso da Internacional Comunista (IC) posteriormente aprovaria, Trótski assinala que o capitalismo tende tanto a diminuir quanto a aumentar a desigualdade entre as economias nacionais.

“É a combinação dessas duas tendências fundamentais, centrípeta e centrífuga, nivelamento e desigualdade, ambas consequências da própria natureza do capitalismo, que nos explicam [sic] o entrelaçamento vivo do processo histórico.” (Trótski, 2020; p. 95 – itálicos no original)

É verdade que, em O programa de transição, Trótski afirma que as forças produtivas pararam de crescer (Trotsky, 2008). Porém, isto não deve ser interpretada de maneira dogmática, livresca. Após a Segunda Guerra Mundial, houve um desenvolvimento “parcial” e excepcional das forças produtivas, possibilitado apenas pela própria Guerra e, sobretudo, mediante os pactos, celebrados em Yalta e Potsdam, entre o imperialismo e o stalinismo, cuja traição aos processos revolucionários que ocorrem em países como França, Itália e Grécia, imediatamente após a Guerra, permitiu o reestabelecimento do equilíbrio capitalista mundial (Albamonte e Castillo, 2008) [4]. Na década de 1930, a afirmação do não-crescimento das forças produtivas tinha um sentido bastante literal, mas não é isso o essencial da tese de Trótski, e sim que as premissas objetivas da revolução proletária já amadureceram mundialmente [5]. Assim como Lênin, Trótski não negava que certos países ou certos ramos da economia continuariam crescendo, e poderiam crescer, inclusive, em ritmos até então inéditos. Entretanto, esses ramos e países se desenvolveriam de maneira cada vez mais espasmódica e desigual, uns em detrimento dos outros (Lenin, 2012; p. 167; Trótski, 2020; p. 136).

IV.

Mais consistente é a argumentação de João Manoel Cardoso de Mello (1982) de que o dependentismo “radical” representa apenas uma radicalização da problemática cepalina. Embora Cardoso de Mello só se refira nominalmente a Gunder Frank, o mesmo pode ser dito de Marini [6]. Mantega reconhece ainda as influências de Nikolai Bukhárin e Rosa Luxemburgo, além das de Trótski e de Paul Baran, sobre a “corrente radical” da dependência (Chilcote, op. cit.). Mas não são poucas as divergências entre todos esses que Mantega elenca como referências do dependentismo “radical”, e às quais deveria ser acrescentada ainda o próprio desenvolvimentismo cepalino, tornando questionável a importância que se atribui a Trótski para a vertente dos “radicais”.

A similaridade entre a teoria do imperialismo de Rosa Luxemburgo e a teoria do subimperialismo de Marini é admitida tanto por simpatizantes quanto por críticos deste último (Katz; op. cit.; Silva, 2019). Para Luxemburgo, a demanda “endógena” seria insuficiente para absorver toda o produto de uma economia capitalista “pura”, isto é, em que há apenas trabalhadores assalariados e capitalistas. A reprodução ampliada do capital dependeria de fontes de demanda “exógenas”, de regiões onde o modo de produção capitalista ainda não se desenvolveu e para as quais pudessem ser exportados os bens de consumo que não puderam ser consumidos pelos capitalistas e trabalhadores. O imperialismo objetivaria, então, a conquista destes mercados externos, cujo esgotamento comprometeria severamente a acumulação capitalista.

Já o subimperialismo seria uma consequência da superexploração, isto é, do pagamento de salários menores do que o valor da força de trabalho a fim de compensar as transferências de valor da periferia para o centro ocasionadas pelo comércio internacional. A superexploração deprime a demanda de consumo dos trabalhadores assalariados e, por conseguinte, estreita o mercado interno. Um país dependente que se industrializa significativamente precisará adotar, portanto, uma política agressiva de exportação de bens industrializados para outros países dependentes, industrialmente menos desenvolvidos, ou o processo de industrialização daquele país irá retroceder, caso contrário (Marini, op. cit.; Bambirra, op. cit.). É assim que o “milagre” brasileiro e a crise econômica e política que o precede são explicados por Marini. Em ambas as teorias, as exportações são a solução deus ex machina dos problemas de subconsumo de que padeceria a acumulação capitalista (Silva, op. cit.). Não há nada parecido em Trótski!

Ainda segundo Mantega, subjaz a teoria “radical” da dependência a ideia de que o estancamento das forças produtivas torna a sobrevivência do capitalismo mundial dependente fundamentalmente da capacidade deste de extrair excedentes das economias periféricas, e a origem de tal ideia estaria naquilo que haveria de comum entre Luxemburgo e Trótski, para quem as nações periféricas teriam, portanto, uma suposta capacidade “estratégica” de provocar o colapso do imperialismo ao interromperem, por meio da revolução socialista, essa extração de excedentes (Chilcote, op. cit.; Silva e Costa, op. cit.). Os juízos de Mantega a respeito do dependentismo “radical” baseiam-se, portanto, em uma vulgarização da teoria da revolução permanente, em uma incompreensão do caráter de “grande estratégia” desta teoria, que enfatiza os nexos entre a revolução socialista, as lutas democráticas e de libertação nacional e as revoluções políticas, em países onde a transição ao socialismo foi interrompida pela burocratização do Estado operário. Todos estes processos são partes constitutivas de uma totalidade, a luta de classes internacional, cujo desenvolvimento é também desigual e combinado [7].

Ainda nesse evento, pode te interessar: “Queremos colocar o trotskismo na ofensiva hoje”, confira fala de Diana Assunção no encontro Trotski em Permanência

Referências bibliográficas

ALBAMONTE, Emilio; CASTILLO, Christian. Seminário A 70 anos do Programa de Transição. In: TROTSKY, León. O programa de transição: documentos da IV Internacional. São Paulo: Iskra, 2008; 85-101 (Disponível em espanhol aqui).
ALBAMONTE, Emilio; MAIELLO, Matías. Estratégia socialista e arte militar. São Paulo: Iskra, 2020.
BAMBIRRA, Vânia. O capitalismo dependente latino-americano. 2ª ed. Florianópolis: Insular, 2013.
BEIGEL, Fernanda. “A teoria da dependência em seu laboratório”. In: Crítica e Sociedade, v. 4, n. 2, p. 72-89, dez 2014.
CARDOSO, Fernando Henrique; FALETTO, Enzo. Dependência e desenvolvimento na América Latina: ensaio de interpretação sociológica. 3ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.
CARDOSO DE MELLO, João Manoel. O capitalismo tardio: contribuição à revisão crítica da formação e do desenvolvimento da economia brasileira 8ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1991.
CHILCOTE, Ronald H. “Trotsky e a teoria latino-americana do desenvolvimento”. In: Crítica Marxista, n. 34, p. 87-110, 2012.
DEMIER, Felipe. “A lei do desenvolvimento desigual e combinado de León Trotsky e a intelectualidade brasileira”. In: Outubro, n. 16, p. 74-107, 2º sem 2007.
KATZ, Claudio. A teoria da dependência: 50 anos depois. São Paulo: Expressão Popular, 2020.
LENIN, V. I. Imperialismo, estágio superior do capitalismo: ensaio popular. São Paulo: Expressão Popular, 2012.
LÖWY, Michael. “A teoria do desenvolvimento desigual e combinado”. In: Outubro, n. 1, p. 73-80, 1998.
MARINI, Ruy Mauro. Dialética da dependência
SILVA, Luiz Fernando da; COSTA, Gisele Cardoso. Teoria da dependência e América Latina: análise crítica na perspectiva da revolução permanente. São Paulo: Sundermann, 2018.
SILVA, Rodrigo Luiz Medeiros da. “Subimperialismo brasileiro? Subimperialismo sul-africano? O retrospecto do comércio externo automotivo contra a hipótese de Ruy Mauro Marini”. In: Revista da Sociedade Brasileira de Economia Política, n. 53, p. 28-53, mai-ago 2019.
TROTSKI, Leon. A revolução permanente. 2ª ed. São Paulo: Kairós, 1985 (Disponível em espanhol aqui).
TRÓTSKI, Leon. Stálin, o grande organizador de derrotas: a Terceira Internacional depois de Lênin. São Paulo: Iskra, 2020.
TROTSKY, Leon. A situação mundial. In: O imperialismo e a crise da economia mundial: textos sobre a crise de 1929. São Paulo: Sundermann, 2008; p. 9-62 (Disponível em espanhol aqui).
TROTSKY, León. O programa de transição: documentos da IV Internacional. São Paulo: Iskra, 2008.
WASSERMAN, Claudia. A teoria da dependência: do nacional-desenvolvimentismo ao neoliberalismo. Rio de Janeiro: FGV, 2017.

 
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