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Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha
As mulheres negras na luta contra a ditadura brasileira
Renato Shakur
Estudante de ciências sociais da UFPE e doutorando em história da UFF

Na semana do dia Internacional da Mulher Latino-Americana e Caribenha é muito importante lembrar a luta das mulheres negras contra o regime militar. Esse artigo debate algumas posições de dirigentes mulheres do Movimento Negro Unificados e sua luta contra o machismo, racismo e a repressão da ditadura militar brasieira.

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Imagem: Revista Afirmativa

A criação do MNU e as mulheres negras à frente

O ato nas escadas do teatro Municipal de São Paulo marcou, segundo uma historiografia consolidada acerca da história do movimento negro, um ponto de inflexão político do “protesto negro” (1). Este é um marco historiográfico que conferiu à década de 70 um momento novo de organização do “protesto negro” a partir de entidades e organizações onde os “protestos reivindicativos” deram o tom das mobilizações em torno da questão racial. Os espaços públicos passariam a ser, segundo essa historiografia, “palcos privilegiados para manifestações” (2).

Foi nesse ato político que se concentrou milhares de negros e negras em um ato que culminaria na formação do Movimento Contra a Discriminação Racial (MCDR) que ocorreu no dia 7 de julho de 1978. Em sua “carta convocatória”, esses militantes expunham a intenção de promover um ato público contra o racismo chamando de maneira ampla setores progressistas da sociedade brasileira e entidades do movimento negro em torno do debate sobre a discriminação racial. A “carta convocatória” distribuída no momento do chamado àqueles amplos setores e durante o ato expressou alguns motivos para a formação do MCDR – que meses depois mudaria algumas palavras da sigla, se tornando o Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNUCDR) e em seguida, Movimento Negro Unificado (MNU) –, dentre eles a intenção de ser um “instrumento da luta da comunidade negra” (3).

A luta a qual conclamava antigos militantes da 2ª geração do movimento negro e novos militantes vindos das fileiras dos partidos de esquerda e de entidades surgidas no ao longo década de 70 que debatiam temas referentes à luta negra e à questão negra, expressavam um profundo descontentamento com a condição social e o cotidiano do povo negro durante a ditadura militar e uma transformção importante na subjetividade de massas. Não foi à toa, ainda nas linhas daquela “Carta convocatória para o ato público contra o racismo” (Pereira, 2010, p. 186), que o MCDR expunha dois casos de racismo, algo tão comum e frequentemente denunciados pela comunidade negra e pela militância do movimento negro. Um deles foi o assassinato de Robson Silveira da Luz, trabalhador negro, que morreu por conta da tortura sofrida por policiais no dia 28 de abril em uma delegacia em Guaianazes no corrente ano. O outro caso de racismo relatado na carta foi o episódio ocorrido com quatro jovens negros no Clube de Regatas Tietê que não foram admitidos no time de vôlei por serem negros. Rui Negrão, conselheiro do Clube de Regatas Tietê relatou a um jornal o fato ocorrido: “Se a diretoria aceita um sócio de cor e ele entra na piscina, na mesma hora cem sócios deixam o clube” (4).

Certamente, essas experiências não eram isoladas, pelo contrário era fato recorrente não apenas as torturas realizadas durante ditadura militar, mas também a exclusão de negros de espaços frequentados pela elite ou pela classe média branca. Como mesmo expressou nesta “carta convocatória”, o ato público reivindicou a luta contra o racismo, a discriminação racial e a opressão policial, eram esses temas que puderam reunir inúmeros grupos e associações do movimento negro no final da década de 70. Dentre eles o Centro de Estudos Afro-Asiáticos (CEAA), Sociedade de Intercâmbio Brasil-África (Sinba), Instituto de Pesquisa das Culturas Negras (IPCN), o Núcleo Negro Socialista (NNS) e o jornal Versus da Convergência Socialista, bem como figuras históricas do movimento negro como Abdias do Nascimento e Lélia Gonzales participaram da fundação do MNU.

A luta do MNU não se restringiu apenas a essas discussões, inspirados e inspiradas pela luta internacional por direitos civis nos EUA, o Partido dos Panteras Negras e os processos de independência no continente africano, mas também a partir da experiência que faziam com o stalinismo e com o morenismo, PCB e Convergência Socilaista, que não debatiam o tema das opressão, surgiu uma vanguarda disposta a luta contra o racismo, machismo e a ditadura militar, com uma coluna de mulheres negras dirigentes, jovens e trabalhadoras à frente.

Imagem: Ato de criação do MNU em São Paulo 1978 (Foto José Carlos)

Repressão e perseguição contra as dirigentes do MNU

Em documentos de repressão da polícia política reunidos pela Comissão Nacional da Verdade do Rio de Janeiro, precisamente da Agência de Sistema de Informação/FUEL do dia 16 de setembro 1980, com assunto referente ao Movimento Negro Unificado (Núcleo de Londrina), registravam duas atividades políticas no salão nobre do “colégio Marista de Londrina nos dias 4 e 5 do corrente mês”. “Promovidas pela Executiva do Movimento Negro Unificado de São Paulo”. Ari Candido Fernandes, Lenny de Oliveira, Neninho Obaluê, Milton Barbosa, Paula Oliveira, Layete do MNU/São Paulo, juntamente com Lélia Gonzales e Eduardo de Oliveira MNU/Rio de Janeiro participaram desta atividade, segundo consta neste documento. A reunião iniciou da seguinte forma:

“Inicialmente falou a socióloga Lelia Gonzales, abordando o tema: Origem, Evolução e Participação do Negro, nas camadas sociais [...] A nominada fez um retrospecto da vinda do negro para o Brasil, destacou a criação dos kilombos, (1º grito de libertação do negro escravo no Brasil) denunciou a maneira sub-humana com que a maioria dos negros são tratados em todo o mundo, deu ênfase ao problema da marginalização do negro, no chamado mundo branco, principalmente os negros de origem latino-americana [...] Abordou também o papel do negro na formação socio-econômica brasileira, destacando o papel da (mão de obra) onde o negro sempre forneceu uma força de trabalho incialmente escrava e posteriormente assalariada, onde sempre predominou os baixos salários, devido a desqualificação dos negros, onde sempre foi aproveitado como mão de obra primária.”

A repressão do regime militar vigiou exaustivamente as atividades do MNU. Lélia Gonzales foi fichada nessa ocasião pelo fato de uma das políticas centrais da organização ser a reivindicação do passado de luta e revolucionária do negro. A história dos quilombos primeira forma de luta contra a escravidão e a relação da formação do capitalismo brasileiro e a escravidão, mostrou como MNU propunha mostrar a identidade negra, na perspectiva da luta de classes. Este resgate histórico, nas próprias palavras de Lélia não era por acaso, na década de 1970 os negros também viviam um sistema de opressão e exploração econômica, isto é o que tornavam tão parecidos com aqueles africanos escravizados, além, é claro, de sua disposição de luta contra seus opressores.

Imagem: Revista MNU nº 4 jul/ago de 1981, p.5 (Imagem retirada do site Biblioteca Virtual Consuelo Pondé)

Ainda nessa mesma reunião, Leny de Oliveira trouxe uma perspectiva inteiramente nova para se pensar a exploração no capitalismo, colocando a discussão de gênero e raça, debatendo a condição de dupla opressão que a mulher negra vive no Brasil.

“Ao final falou Lenny de Oliveira abordando a Situação da Mulher Negra Brasileira e sua Situação de Oprimida na Condição de Mulher e como Raça [...] Explicou que a discriminação da mulher se define pela sua marginalização sexual, política, econômica e social [...] Falou sobre a divisão sexual do trabalho que acarreta menores salários para as mulheres e no caso das mulheres negras, está sempre reservado o desempenho de funções domésticas (empregadas, cozinheiras, lavadeiras, zeladoras, etc.) [...] Ao final falou sobre o problema do machismo do homem negro, sobre a mulher, machismo este que foi absorvido através de fatores condicionantes da sociedade branca, fazendo com que a mulher negra também seja vítima do machismo negro, absorvido do machismo do homem branco.”

Leny trouxe reflexões totalmente novas para época, poucos debatidas, sobre a disparidade salarial entre homens brancos e mulheres negras, a precarização do trabalho que as mulheres estão submetidas, desempenhando funções do trabalho doméstico e o machismo. O que está em jogo para Leny de Oliveira e de conjunto a militância do MNU é poder mostrar os efeitos profundos da exploração econômica e da opressão racial e de gênero na vida das trabalhadoras negras do Brasil. Não à toa, um dos pontos do programa mínimo do MNU foi destinado para debater centralmente essa condição de dupla opressão vivida pelas mulheres negras. O sétimo ponto do “Programa Mínimo" do MNU reivindicavam as seguintes demandas: “Pela participação da mulher negra na luta de emancipação do povo negro. Contra a exploração sexual, social, econômica da mulher negra. Contra a exploração e pela garantia das Leis Trabalhistas das empregadas domésticas. Contra o machismo”.

Esses questionamentos à condição de vida e trabalho das mulheres negras extrapolavam os círculos militantes do MNU e se aprofundavam ainda mais à medida que o regime militar entrava em crise. Isso fez com que surgisse uma coluna de mulheres à frente tanto na direção e organização da vanguarda do movimento negro, quanto na luta contra o racismo, machismo e o regime militar. Ainda que o MNU não levantasse a bandeira "abaixo a ditadura" o que levou a uma adaptação as direções reformista e até mesmo a uma ala "democrática" da própria burguesia que tinha o objetivo de pactuar uma transição com o militares. Ainda assim, para o regime este debate naquele momento se tornava muito perigoso, porque os militares enxergavam que este era um conteúdo convulsivo e explosivo. Para usar a definição de Letícia Parks as mulheres negras eram um “coveiro de tipo especial” (5), por serem em síntese a expressão da exploração econômica, do racismo e do machismo, mas ao mesmo tempo serem o setor mais decidido em acabar com o sistema que reproduz as barbaridades e miséria em suas vidas diariamente, a história da luta contra ditadura militar é expressão disso. Por isso é muito importante relembrar a trajetória de luta dessas militantes e as contribuições que mulheres como Lélia Gonzales e Leny de Oliveira deixaram justamente no dia Internacional da Mulher Latino-Americana e Caribenha para luta contra exploração e opressão.

Notas

(1) O termo é utilizado no sentido proposto por George Andrews (2015) a fim de dar forma às manifestações antirracistas no pós-Abolição. Em seu sentido amplo, este informa uma variedade de atuação que recupera não só políticas organizadas em torno de projetos ou programas, mas também toda a forma de manifestação que colocou em questionamento o racismo no Brasil.
(2) Flavia Rios, O protesto negro no Brasil contemporâneo (1978-2010) 2012, p.42
(3) Lélia Gonzales e Carlos Hasembalg, “Lugar de negro”, 1982.
p. 49
(4) Em: Márcio Henrique Casemiro Santos, “Luta por reconhecimento ou luta por redistribuição? O MNU e os dilemas do anti-racismo no Brasil contemporâneo”, 2016 p.59
(5) Letícia Parks, “Mulheres Negras e Marxismo”, 2021.

 
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