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A arte pelo sorriso de Miguel: Uma breve entrevista com a artista visual Isadora Romera
Redação
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Ilustração: Victor Cubaiá

Conhecemos o sorriso do menino Miguel no dia 02 de junho de 2020, quando a notícia que uma criança havia caído de um prédio de luxo na cidade do Recife percorreu todo o país. Todas as fotos que circulavam eram de uma criança sorridente e feliz. Naquele momento havíamos acabado de passar pelo que era até então a pior fase da pandemia no Brasil; muitos estavam absortos no isolamento imposto pela pandemia, e uma grande maioria vivendo a angústia de terem que escolher entre morrer de fome ou de covid-19. Mirtes Renata foi uma dessas brasileiras que não pôde ficar em casa. Bolsonaro decretou que o trabalho doméstico era serviço essencial e o governador do estado de Pernambuco, Paulo Câmara do PSB, acatou.

Foi impossível ser indiferente ao escândalo do racismo escancarado no caso Miguel. Sarí Corte Real, que ficou responsável por Miguel por alguns minutos enquanto a mãe teve que levar o seu cachorro para passear, preferiu fazer as unhas ao cuidar da criança; a criança negra. O abandonou no elevador e apertou o botão que o levou ao nono andar, de onde caiu. Sabemos que a situação fosse inversa, se fosse o filho da patroa e se fosse a empregada a abandoná-lo, a história seria outra, história que foi registrada na Adriana Calcanhoto e imortalizada na voz de Maria Bethânia. A arte não ficou indiferente:

“Terça feira 2 de junho de dois mil e vinte
Vinte e nove graus Celsius
Céu claro
Sai pra trabalhar a empregada
Mesmo no meio da pandemia
E por isso ela leva pela mão
Miguel, cinco anos
Nome de anjo
Miguel Otávio
Primeiro e único
Trinta e cinco metros de voo
Do nono andar
Cinquenta e nove segundos antes de sua mãe voltar”

Neste 02 de junho, fazendo 1 ano que Miguel foi morto por culpa do descaso da patroa, fazemos uma breve entrevista com a artista visual Isadora Romera, que homenageou Miguel com sua arte para o livro lançado em março de 2020, “Mulheres Negras e Marxismo”, parte da arte que ilustra esta matéria.

Esquerda Diário: Você fez um retrato do Miguel que acabou sendo impresso no livro para o qual você já estava fazendo a arte, o “Mulheres negras e marxismo”, mas o desenho você já havia feito antes, correto?

Isadora Romera: Isso mesmo! Num primeiro momento eu tinha feito o retrato do Miguel porque fiquei muito impactada com esse crime racista que ocorreu em Recife. Surgiu, então, a proposta de eu fazer uma arte para, depois, nossa equipe do Esquerda Diário e da Iskra entregarem uma versão impressa para Mirtes, mãe do Miguel. Para mim, esse crime foi emblemático, porque foi a expressão ou a soma de uma realidade de exploração e opressão que estamos vivendo ainda mais intensamente na pandemia. Essa soma de exploração do trabalho, opressão de gênero e de raça se condensa na figura de Mirtes, mulher negra e trabalhadora que passou por esse episódio horrível, mas que, com muita força, mesmo depois de tudo isso, segue em luta por justiça para seu filho. Essa força de Mirtes, que é a força das mulheres trabalhadoras, das mães que perdem seus filhos pras balas da polícia assassina, também foi inspiradora para que surgisse o retrato de Miguel. Essa arte então é, ao mesmo tempo, uma homenagem a Miguel e um símbolo do compromisso da equipe do Esquerda Diário e da Editora Iskra (que eu ajudo a construir também), de acompanhar essa força de Mirtes e seguir na luta por justiça a Miguel.

Só depois é que fizemos a proposta para Mirtes participar do livro “Mulheres Negras e Marxismo” que estávamos para lançar. Ela topou e, assim, achamos que o retrato do Miguel também deveria fazer parte do livro.

ED: Como o caso Miguel te impactou e como você acha que vem impactando os artistas em geral?

Eu fiquei com muito ódio de toda essa situação e acho que vários artistas também sentiram o mesmo. O ódio pode ser uma força criadora muito grande. E acho que a arte é uma das ferramentas para expressar esse sentimento e também amplificar a voz dos que lutam contra tudo isso, para acompanhar a força e a coragem de mulheres como Mirtes.

No início está citando a música da Adriana Calcanhoto cantada pela Bethânia, que foi um exemplo disso também; e houveram outros exemplos na música de artistas independentes que também se expressaram, como o maranhense Beto Ethonge o grupo de samba Elas Querem, que também homenagearam Miguel em suas músicas.

ED: Você é uma artista militante. Como é essa relação da militância com a arte?

Isadora: A arte na Grécia Antiga, era chamada de Techné. A tradução mais próxima para essa palavra seria habilidade ou técnica. Pra mim a técnica nada mais é do que trabalho. A ação criativa humana de transformação da natureza. O artista aprende e pratica essas técnicas, vai melhorando suas habilidades e qualquer pessoa também pode aprender essas técnicas e se tornar um artista.

O trabalho dos artistas pode ser alienado também, como outros trabalhos na sociedade capitalista. Para sobreviver, para ter um emprego, artistas têm que subordinar sua criação para fazer logo de empresas, publicidades para produtos etc. Sua criação fica subordinada à lógica do lucro e no mercado de trabalho a maior parte da atuação é assim. Mas a arte tem uma natureza muito forte de criação, de ser transformadora e pode ir de encontro com essa sociedade do lucro, dando voz a setores que lutam contra toda a opressão e miséria que vivemos. A arte pode ser uma grande aliada dos setores que saem em luta, que se levantam contra o racismo, o machismo, a exploração do trabalho etc. Não à toa, um dos primeiros sintomas de regimes autoritários é a censura, na tentativa de impedir que a arte provoque pessoas a se rebelar contra esses regimes. A arte é muito perigosa para o autoritarismo. Eu procuro ter uma arte engajada, que atua sobre a realidade que está acontecendo. Busco colocar o meu trabalho, sempre que possível, a serviço dos setores oprimidos e explorados da sociedade, das mulheres, dos negros, das LGBTs e dos trabalhadores, que são a classe criadora. Acho que minha atividade militante, fazer parte de uma organização que constrói iniciativas como essa do retrato do Miguel, ou o livro Mulheres Negras e Marxismo, ajuda a dar mais força para minha criação. Acho que a militância canaliza e dá um sentido coletivo para essa nossa vontade criadora, de indignação com as injustiças e amplifica sua força, seu impacto na realidade.

ED: O sorriso de Miguel no retrato que você fez em sua homenagem é muito sensível. Você conseguiria colocar em palavras algo sobre esse sorriso?

Isadora: Quando vi na TV, passando nos jornais o caso do Miguel, mostraram algumas fotos dele com a mãe e percebi que seu sorriso e seu olhar eram muito sensíveis. Acho que, no fim das contas, no retrato que fiz, só consegui captar o quão sensível era uma criança com a vida toda pela frente.

ED: O caso Miguel é uma amostra nítida do racismo da elite brasileira. Ao mesmo tempo, a arte brasileira parece se expressar em muitos momentos em contraposição a esta elite. Como uma artista militante, como você vê essa relação?

Isadora: Grande parte da cultura Brasileira é fruto da cultura negra. O samba, o choro, as manifestações de carnaval, a capoeira, toda a cultura Hip Hop, como o grafite, o rap, o funk etc. E a elite no Brasil é profundamente escravocrata, portanto, é esperado que, por sua própria natureza, a produção artística brasileira esteja, em muitos momentos, em confronto com essa elite. Ao mesmo tempo, a burguesia através de seus mecanismos ideológicos e da indústria cultural tenta absorver a cultura negra para retirar seu conteúdo mais subversivo. O samba, por exemplo, não é chamado por essa elite de música ou cultura negra, ainda que os trabalhadores a identifiquem assim. Eles o incorporam à cultura nacional, com o nome de música popular, justamente, para retirar a questão negra, se baseando na ideologia da democracia racial; o rap e hip hop vem sofrendo forte pressão da indústria cultural desde selos que gravam, em sua maioria, artistas que não façam músicas de protesto, anti-racista, e, por outro lado, os que fazem são perseguidos pela justiça, só ver os mc’s de funk e trap que estão sendo criminalizados.

No entanto, isso tudo não é suficiente para parar a força e a resistência da cultura negra, porque o samba fala do cotidiano de racismo e da luta negra, vários rappers e mcs também, para não falar do jongo, maracatu, etc. Mesmo a burguesia tentando negá-la ou absorvê-la retirando seu conteúdo rebelde, a cultura negra é sem sombra de dúvida uma marca da resitência do povo negro e dos trabalhadores.

O próprio samba, hoje maior símbolo da cultura brasileira, já foi proibido por lei, taxado como “vadiagem” e perseguido pela polícia. Polícia essa que sempre vai estar do lado da censura e da repressão à arte.

Nos últimos desfiles de carnaval vimos como as escolas de samba se colocaram contra os governos. Em 2018, aconteceu o desfile inesquecível da escola Paraíso do Tuiuti criticando o governo golpista do Michel Temer e a Reforma Trabalhista que tinha sido aprovada pelo governo dele em 2017. Em 2019, Mangueira foi campeã do carnaval do Rio com um enredo que denunciava o brutal assassinato da vereadora Marielle Franco, do qual até hoje não sabemos os mandantes. Esse é outro crime emblemático que mostra a podridão desse regime em que vivemos desde o Golpe de 2016.

A cultura negra é, então, parte fundamental da história do país e é muito combativa e engajada. E se você parar pra pensar que mesmo sendo imposta uma realidade de miséria, de desemprego, de fome, violência policial, racismo etc, mesmo com tudo isso, a cultura negra ainda assim é espetacular. Ela tem muita técnica, mas não está distante da realidade da maioria da população, ela nasce exatamente dessa realidade. É contagiante sem deixar de ser complexa. Poetas como Carolina de Jesus ou o compositor Nelson Sargento da velha guarda da Mangueira, que acabou de falecer, mostram que mesmo nessa realidade a força da arte é gigantesca e produz maravilhas da nossa cultura. Essa força criadora imparável, pra mim, se relaciona muito com a força de Mirtes, que segue em luta contra o judiciário brasileiro racista, mesmo depois de tudo que passou.

Agora, eu fico imaginando se a nossa cultura é tão incrível mesmo nessa miséria, imagina o que não poderíamos criar em uma sociedade livre de exploração e opressão? Imagine se todos tivessem trabalhos dignos, para produzir de acordo com nossas necessidades e não subordinados ao lucro de alguns poucos. Imaginem se a gente trabalhasse menos e tivessem tempo e condições para criar músicas, poesias, telas e danças. Imagine só se todos que quisessem pudessem ter acesso a cursos e faculdade de artes, letras etc. Eu acho que tudo o que poderíamos criar é tão grande e maravilhoso, que é inimaginável, que a gente vai ter mesmo é que acabar com essa sociedade do lucro para descobrir concretamente tudo que podemos criar e, assim, sair da “pré-história da humanidade,” como dizia Marx, para começar nossa verdadeira história. Toda essa discussão também me lembra uma frase muito bonita do revolucionário russo Leon Trotsky, na qual que ele faz esse mesmo exercício de imaginação que fizemos:

“A nova arte não só mudará a vida, mas lhe arrancará a pele. Amar a vida com o afeto superficial do diletante não é um grande mérito. Amar a vida com os olhos abertos, com um sentido crítico cabal, sem ilusões, tal como ela nos aparece, com o que nos oferece, essa é a proeza. Nossa proeza é realizar um esforço apaixonado para sacudir aqueles que estão entorpecidos pela rotina; fazer com que abram os olhos e vejam aquilo que se aproxima.” [O grande sonho – Leon Trotsky]

Eu acho que os artistas no Brasil, os verdadeiros artistas, não são os que pintam retratos cheios de bolinha e com cores “fru fru” da família Doria, mas, sim, aqueles que se impactam pelo sofrimento da maioria da população, e, ao mesmo tempo, pela grandeza da cultura dessa maioria; aqueles que se indignam com a situação de trabalho precário pelas quais passam diversas pessoas, inclusive os artistas que muitas vezes trabalham na informalidade; aqueles que sentem uma urgência de mudar toda essa situação de miséria, devem fazer de sua arte uma ferramenta para impulsionar e amplificar as lutas do setores que se colocam contra esse sistema político. Assim também como outros que mesmo sua arte não estando diretamente ligada às questões políticas, consegue transbordar através da sua criação as tendências do que há de mais avançado numa sociedade, por isso quando usamos as palavras de Trotsky e defendemos “toda liberdade à arte” nos contrapondo à ideia de qualquer cerceamento à arte, como fez o stalinismo, estamos defendendo a possibilidade de expressão destas tendências também.

Mesmo a arte por si só não podendo mudar a situação de miséria em que a gente se encontra, ela é uma forte aliada pra isso. Imagino que estes exemplos de criações que surgiram a partir do caso Miguel, por exemplo, possibilitaram com que muita gente se sensibilizasse com o ocorrido, ou seja, a arte cumprindo um papel de denunciar uma brutalidade do racismo.

O retrato do Miguel acho que termina expressando muito da estratégia que defendo, que parte de que a classe trabalhadora organizada e todos os setores oprimidos que a compõem podem dar uma saída de vez para essa situação e dessa forma garantir as condições para o fim do racismo, para que todas as crianças tenham direito ao futuro, tenham direito a seguir sorrindo.

 
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