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Enfrentamentos feministas de Elisa Arruda
Gabriela De Laurentiis
artista, pesquisadora e professora

Conheça a artista Elisa Arruda e sua mostra "Em casa" (2021), que teve sua abertura virtual em 17/03, no Espaço Cultural do Banco da Amazônia, em Belém, com curadoria de Vania Leal.

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Matissas III. 2020. Foto: Octavio Cardoso.

Elisa Arruda é artista nascida na cidade de Belém do Pará, no ano de 1987, onde se formou em Design na IESAM//PA (2010). Trabalhou desenvolvendo uma série de mobiliários pelo SEBRAE Pará e oferecendo cursos de projeto de móveis, design, materiais, entre outros. Em 2014 mudou-se para São Paulo, cidade em que reside atualmente, onde realizou um mestrado na FAU-USP (2017).

Elisa Arruda. Foto: Ana Alexandrino.

Em suas práticas artísticas Elisa Arruda transita entre a gravura, pintura, desenho, aquarela, fotoperformance e instalação. Em seu trabalho mobiliza uma série de elementos autobiográficos, não confessionais e com conversações múltiplas com as perspectivas feministas nos territórios da arte explicitados em sua mais recente individual, Em casa (2021). Montada no Espaço Cultural do Banco da Amazônia, em Belém, a mostra tem curadoria de Vania Leal e contou com uma abertura virtual no dia 17/03. A montagem de Em casa, repleta de camadas latentes, instaura inúmeras perguntas, como deseja a artista. Em nossas conversas, Arruda explicou-me:

“as teorias feministas me abrem espaço, apresentam modos possíveis de me reconhecer mulher. No campo da arte me legitimam a possibilidade de uma produção leal ao que sou, ou desejo ser. Mas além delas, saindo do campo teórico, também as aprendizagens laterais, diárias, aquelas que crescem conosco: os conselhos, as observações de vida que me constituíram como sou; elas também me ensinam muito.”

As ressonâncias dessas questões apresentadas em trabalhos e exposições anteriores, como no caso de Redoma de Vidro (exposição individual, 2017), na Casa das Artes, também em sua cidade natal. As redomas de Elisa Arruda – que rendem o título do conjunto de trabalhos – constroem uma forte imagem: um corpo feminino, em posição fetal, colocado dentro de uma cápsula arredonda e transparente.

Redoma de vidro em desenho

As primeiras sensações, ao ver os desenhos, são de sufocamento, aprisionamento historicamente basilares nos modos de produção subjetivos das mulheres. Problemas instaurados pelo próprio título, uma referência ao livro A Redoma de Vidro (1963), de Sylvia Plath (Boston, 1932 – Londres, 1963).

A pesquisadora Norma Telles, em Encantações: escritoras e imaginação literária no Brasil, século XI, observa que os modelos de feminilidade que vigoraram, durante todo o século XIX – e boa parte do século XX – faziam das mulheres doentes e loucas um dos objetivos principais do modelo de feminilidade. Ensinadas a submeterem-se ao outro e a silenciarem suas vozes, as artistas tinham que lutar contra elas próprias para poderem criar. Era necessário combater seus papéis de dona de casa e de mãe abnegada e os seus duplos complementares de desviantes e de loucas.

Trata-se de uma subjetividade construída com base no medo e na insegurança, por meio da qual as mulheres encontram-se catatônicas, aprisionadas em si mesmas, desesperadas. Colocadas em uma redoma de vidro, sob uma proteção/prisão produtora de fragilidades.

O objeto na história de Elisa Arruda está envolta em sensações de perda de controle, de vulnerabilidade, desejo de poder, de vontade criativa. Depois de uma queda, a artista passou cinco dias desacordada em um hospital. Arruda de nada se lembra sobre aquele período. Perguntas e elaborações sobre o tempo vivido e o espaço habitado reverberam na feitura dos trabalhos que compõem Redoma de Vidro, relatou-me Elisa Arruda tempos atrás.

A literalidade da perda de consciência, da perda de si vivenciada pela artista encontra ressonâncias históricas, afinal diz Telles “devido aos imperativos culturais o anjo do lar está sempre tremendo, não apenas de medo, mas com as enfermidades ou com a proximidade da morte”.

“Anjo do lar” é na definição da Virginia Woolf uma figura “extremamente simpática. Imensamente encantadora. Totalmente altruísta. Excelente nas difíceis artes do convívio familiar. Sacrificava-se todos os dias. Se o almoço era frango, ela ficava com o pé (...) seu feitio era nunca ter opinião ou vontade própria, e preferia sempre concordar com as opiniões e vontades dos outros.”

A casa, espacialidade central nesse modo de produção subjetivo, é muitas vezes local de aprisionamento do desejo em figuras identitárias da mãe-esposa-dona-de-casa. Em casa de Elisa Arruda reverbera essas construções de modos complexos. Na exibição atual a mesa é elemento importante de confrontação feminista. Em suas Matissas (2020–2021) o estar em casa – local de trabalho feminino – é trazido por cenas em torno de uma mesa de jantar.

Matissas I. 2020. Foto: Octavio Cardoso

Como destaca Arruda, as Matissas fazem referência à pintura Harmonia em vermelho (1908) de Henri Matisse (Le Cateau-Cambrésis, 1869 – Nice, 1954). Na pintura há uma figura feminina ordenando uma fruteira posicionada sobre a mesa de jantar. A harmonia entre o papel de parede, a toalha de mesa, a paisagem exterior (vista através da janela) e a figura feminina tornam-nas todas partes de um “padrão decorativo”, tal qual sublinha Ernst Gombrich (Viena, 1909 – Londres, 2001), em seu canônico A História da Arte (1950).

Harmonia em Vermelho. Henri Matisse. 1908.

Ao contrário da solitária mulher no quadro Matisse, as figuras femininas de Arruda não se confundem com as paredes da casa ou a toalha de mesa, elas estão em conjunto arrumando a mesa, ou seria destruindo-a? Sobre a mesa, a artista diz:

“Ela me apareceu como uma brincadeira, vi a pintura ‘Harmonia em vermelho’ do Matisse e pensei: como eu faria? O que estaria na minha mesa?

Penso nessa mesa como um depositário de desejos, medos, angústias, tédios, pavores e amores. Um campo de afeto e memória. O que eu cozinho e sirvo tem muito zelo, na minha vida é assim. Naquelas mesas eu coloco tudo isso.

Também penso que essa cena da mesa é o meu próprio corpo, cabeça e memória. É o lugar onde estou (dentro da casa) e na minha janela vejo uma paisagem, um desconhecido, diversos desejos passantes, mas permaneço”.

A relação entre a mesa e o corpo trazidas por Arruda fizeram-me lembrar sobre A Destruição do Pai (1974), instalação de Louise Bourgeois (Paris, 1911 – Nova York, 2010). Nela, uma série de formas arredondas em látex surgem como vísceras, corpos estripados. Louise Bourgeois explica que a superfície retilínea do centro da instalação é, ao mesmo tempo, uma mesa de jantar e uma cama.

Destruição do Pai. Louise Bourgeois. 1974.

Os dois lugares, de acordo com Bourgeois, produzem sentimentos de angústia e sofrimento, relacionados às suas funções no interior do núcleo familiar: “A mesa é onde os pais fazem sofrer. A cama é onde você deita com o marido, onde seus filhos nascem e onde você vai morrer.” Na mitologia pessoal da artista essa obra é a materialização de um processo de destruição simbólica da figura paterna pelas crianças e pela mãe, em uma experiência artística narrada por Bourgeois como “catártica”.

A revolta contra o poder patriarcal surge como confrontação coletiva em Louise Bourgeois. Aliás, o autoritarismo paterno à mesa, remete diretamente ao Léxico Familiar (1963) de Natalia Ginzburg (Palermo, 1916 – Roma, 1991), no qual “à mesa” é situação recorrentemente lembrada. Em uma dessas passagens Ginzburg relata uma briga entre um dos irmãos e o pai: “Certa vez, à mesa, por causa de um escarcéu que meu pai tinha feito com ele, nem sequer dos mais terríveis pegou a faca de pão e pôs-se a raspar o dorso da mão. O sangue jorrou aos borbotões: lembro o susto, os gritos, as lágrimas de minha mãe, e meu pai, ele também assustado e gritando, com gazes esterilizadas e tintura de iodo.”

As narratividades ao redor da mesa, marcam também a mostra de Elisa Arruda. O vermelho – cor marcante na harmonia de Matisse – que lembra o sangue de Bourgeois e Ginzburg, é a cor de algumas das paredes da exposição, incluindo aquela em que as duas Matissas (2020) estão exibidas. A cor é algo notável nesses trabalhos mais recentes de Arruda:

“As Matissas que trouxeram a cor. Essa cor para mim é como cada nota de uma música. Venho me sentindo muito feliz com essas cores. Sinto que elas têm cada uma a sua representação de sentimentos, espiritualidade e estados afetivos em relação ao cotidiano. Existe um apego à cor de uma casa de mulher simples. Não sei... uma visualidade que me remete à infância em Belém, onde tudo é muito colorido. Penso muito em minha mãe, na casa dela.”

vista da exposição "Em casa". 2021. Foto: Octavio Cardoso.

vista da exposição "Em casa". 2021. Foto: Octavio Cardoso.

A casa e a mesa têm assim uma outra dimensão: de acolhimento, compartilhamento e proteção, pode ser local de proteção como aqueles trazidos pela série A Mesa de Cozinha (The Kitchen Table, 1989) da artista Carrie Mae Weems, como analisado no texto “Criações de si: a mesa de cozinha de Carrie Mae Weems”.

Os sentidos da mesa e das cores ampliam-se na instalação Antropomagia (2021). Trata-se, em suas palavras, de “uma bancada que tem as pernas abertas também e nela tem temperos coloridos, que sugerem ser a matéria da cor que pintei a tela posicionada acima”. O título carrega a imaginação até o século XVIII e as histórias sobre as perseguições e o combate às práticas identificadas como magia pela Igreja Católica.

Antropomagia, mesa vista da exposição "Em casa". 2021. Foto: Octavio Cardoso

A historiadora Laura de Mello e Souza, em O Diabo e a Terra de Santa Cruz (1986), relata que as Visitações do Santo Ofício feitas ao Grão-Pará (1763 – 1769), em um seu afã colonizador e catequizador, apuraram “vinte e um casos de feitiçaria e nove casos de curas mágicas”, que deveriam ser condenados.

As magias de Arruda afloram em um ato criador. Na tela posicionada acima da mesa – com a mesma nomeação Antropomagia (2020-2021) – há um rosto-xícara ao lado de outros utensílios domésticos, como um bule e um pilão. As construções espaciais de Arruda levaram meus pensamentos até a artista Billie Zangewa (Malawi, 1973) e sua evocação de um ateliê mesa de cozinha, espaço para conciliar amor, maternidade e criação artística.

Antropomagia, pintura. 2020-2021. Foto: Octavio Cardoso

Antropomagia, vista da exposição "Em casa". 2021. Foto: Octavio Cardoso

Mesa na qual esses recortes de intimidade abrem-se para a possibilidade de compartilhamento. Trazê-los à público abre possibilidade para a reelaboração dessas vivências. Um outro elemento reforça essas sensações, a cama. Instalada atrás de um voal branco, a cama está cortada ao meio. As camas na história de Elisa Arruda estão envoltas em sensações de perda de controle, de vulnerabilidade, desejo de poder, de vontade criativa, relacionáveis a sua experiência de fragilidade física quando associadas às camas de hospital.

A cama vista da exposição "Em casa". Foto: Octavio Cardoso. 2021.

A cama vista da exposição "Em casa". Foto: Octavio Cardoso. 2021.

vista da exposição "Em casa". Foto: Octavio Cardoso. 2021.

vista da exposição "Em casa". Foto: Octavio Cardoso. 2021.

Na mostra Em casa, a cama – lugar de sofrimento feminino para Louise Bourgeois – é destruída trazendo uma dimensão de confrontação com a própria fragilidade. Na entrada desse quarto lê-se: “(...) Memórias turvas, nítidas ou distorcidas. Projeções ou desejos”. Uma explicitação daquilo que permeia toda a construção do espaço expositivo.

Em casa é um convite para adentrar ao universo particular de Elisa Arruda que expressa um desejo de produzir encontros e conversações entre suas memórias reais e sonhadas, um encontro com a opacidade que constitui a vida, um desejo de tornar o pessoal dizível em público.

vista da exposição "Em casa". Foto: Octavio Cardoso. 2021.

vista da exposição "Em casa". Foto: Octavio Cardoso. 2021.

vista da exposição "Em casa". Foto: Octavio Cardoso. 2021.

vista da exposição "Em casa". Foto: Octavio Cardoso. 2021.

vista da exposição "Em casa". Foto: Octavio Cardoso. 2021.

Nota da autora: Agradeço à Beatriz Ayres e à Flávia França pelas revisões e comentários.

Gabriela De Laurentiis | @gabilaurentiis | trabalha como artista, pesquisadora e professora. Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação da FAU-USP, é autora de artigos e do livro Louise Bourgeois e modos feministas de criar (Annablume, 2017), editado em espanhol pela NoLibros (2020). E desde fevereiro (2021) colabora como autora independente com artigos de opinião, divulgação de exposições etc, na sessão de cultura do Esquerda Diário.

 
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