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ELEIÇÕES NOS ESTADOS UNIDOS
Jim Crow Joe e Kamala, a policial: mais uma candidatura “Vidas Azuis Importam”
Tatiana Cozzarelli

Joe Biden acabou com meses de especulação na terça-feira, quando anunciou que Kamala Harris seria sua companheira de chapa, ex-procuradora-geral da Califórnia e atualmente senadora dos Estados Unidos. Esta escolha é uma descarada tentativa de cooptar um movimento que se coloca contra a polícia racista ao nomear como vice uma mulher negra que fala sobre justiça racial. Mas, Harris não é apenas favorável à polícia e às prisões. Ela é responsável por encarcerar e aterrorizar grupos de cor.

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Nos últimos meses, vimos um dos maiores levantes na história dos Estados Unidos contra a racista violência policial. Milhões de pessoas tomaram as ruas, e ainda mais pessoas apoiaram os protestos de suas casas, com receio de sair por conta do coronavírus. A raiva nunca foi tão generalizada contra a instituição policial, com gente até mesmo pedindo a total abolição da polícia e das prisões.

E, apesar disso, Joe Biden escolheu uma policial para ser sua candidata a vice-presidente: a senadora Kamala Harris. Portanto, nos próximos meses, iremos constantemente ouvir sobre como essa escolha de vice-presidente é um grande passo para o feminismo e para a comunidade negra, numa clara tentativa de conter a raiva das ruas e direcioná-la às urnas.

Biden parece prestes a vencer a eleição, despontando com grandes números de votos à frente de Trump, que enfrenta uma crise devido à sua resposta ao coronavírus, que levou a centenas de milhares de pessoas à morte. Ele encontra ainda mais descontentamento por conta de sua resposta ao movimento Vidas Negras Importam (Black Lives Matter), o que só serviu para alimentar as chamas do levante. Conforme as mortes por COVID aumentam e a crise econômica se aprofunda, o sentimento anti-Trump com certeza irá levar algumas pessoas a confiarem no partido Democrata. E, certamente, teremos que lutar contra Trump e os Republicanos. Mas buscar nos Democratas uma forma de combater as políticas racistas e anti-trabalhadores da administração de Trump é um engano. Nem Biden nem Harris oferecem uma alternativa às políticas favoráveis a policiais do Vidas Azuis Importam (Blue Lives Matter). Na realidade, ambos estiveram na linha de frente para realizar a proteção e manutenção da força policial racista e do sistema prisional. E essa escolha de vice-presidente é muito importante: como Biden está para completar 78 anos de idade em 2020, é provável que ele não consiga liderar o partido por muito tempo. Então, escolher Harris como sua colega de chapa é escolher o futuro rosto da líder de um dos dois partidos do capital.

Essa escolha acontece após meses e meses de apostas para descobrir quem estaria ao lado de Biden na tentativa de tirar Trump do cargo. Em um dos últimos debates, Biden prometeu que escolheria uma mulher para vice - uma clara tentativa de conquistar os democratas do #ImWithHer (campanha de apoio a Hillary Clinton nas últimas eleições) e as milhões de pessoas que tomaram as ruas na Marcha das Mulheres.

Havia várias na lista. Uma delas, Elizabeth Warren, teria sido um sinal de que Biden queria dialogar com a ala progressista do partido. Warren arrecadou 7,7 milhões de dólares para Biden desde que ele a considerou, em abril. Também havia Gretchen Whitmer, cujo apelo residia no fato de que ela é do Oriente Médio e dialogava com a ala moderada do partido. E por último, Kamala Harris, que sempre foi uma forte candidata: uma mulher negra, mais jovem e carismática, que já tinha um perfil público relevante antes de sua candidatura presidencial fracassada. Outras pessoas na lista incluem Susan Rice, que já foi assessora de segurança nacional de Obama, e que tem a vantagem - ou desvantagem - de nunca ter concorrido a um cargo. O assassinato de George Floyd deixou Amy Klobuchar fora de cogitação devido ao seu envolvimento com o departamento de polícia de Minneapolis, mas antes ela era considerada uma das primeiras nessa lista.

Quando o movimento Vidas Negras Importam (Black Lives Matter) chegou à vanguarda da política nacional, ficou claro que Biden escolheria uma pessoa negra, numa tentativa de trazer o entusiasmo do movimento Vidas Negras Importam para as urnas e para apaziguar a fúria das ruas, usando o símbolo de uma mulher negra na segunda posição de maior poder no país - quem sabe até no mundo.

Apesar de Biden tradicionalmente se sair bem com os eleitores negros mais velhos, que lhe deram a vitória nas prévias, as políticas racistas e segregacionistas de Biden podem vir a assombrá-lo durante as eleições. Harris, na verdade, se aproximou de Biden exatamente por causa dessas políticas durante a temporada de prévias. Conforme o Vidas Negras Importam se desenvolveu, Biden se posicionou para estar ao lado dos policiais e da violência policial. Afinal, ele sugeriu atirar nos joelhos das pessoas ao invés de condenar a brutalidade da polícia. Mas a escolha de Harris é uma decisão absolutamente voltada a pontos políticos, já que nem Harris nem Biden estão ao lado das vidas negras, muito menos do Vidas Negras Importam.

O histórico de Kamala Harris já havia passado por bastantes investigações durante sua tentativa frustrada de campanha presidencial no início do ano. Antes de ser eleita para o senado, ela atuou como Procuradora Geral da Califórnia. Apesar de ela ter um histórico “progressista” nesta posição, na realidade ela era “linha dura”, o que significa que apoia o sistema industrial prisional e aterroriza comunidades de cor. Antes disso, enquanto era promotora de São Francisco, ela aumentou a taxa de condenação por crimes de 52% para 67% em três anos. Defendeu também a lei absolutamente desumana das “Três Chances” na Califórnia, que significa prisão perpétua para várias pessoas que foram condenadas por crimes menores. Mais tarde ela mudou sua posição em relação a isso, como costuma ser o caso de Harris. Sua nova posição mantinha a lei aplicada apenas a pessoas que tinham sido condenadas anteriormente por crimes violentos, embora isso não altere o caráter brutal desta lei.

Ela liderou uma “guerra contra a evasão escolar”, que levou à prisão de pais cujos filhos tivessem faltado 10% dos dias letivos - com a consequência de um ano de prisão ou uma fiança de 2000 dólares. O Huffington Post diz: “Dois policiais entraram em uma casa geminada. Alguns minutos depois, começaram a tirar fotos. Os policiais apareceram novamente com uma mulher de pijamas algemada.” O filho dessa pessoa faltou 20 dias de aula. Surgiram vários vídeos de Harris rindo sobre pais presos por evasão escolar.

Harris também foi contra permitir que presos trans tivessem tratamentos que respeitassem seu gênero. Ela manteve a pena de morte na Califórnia, recorrendo de uma decisão de um juiz federal que a considerou inconstitucional. E ainda foi contra a medida estadual que obrigava policiais a usarem câmeras no corpo.

E, é claro, tem o caso Daniel Larsen. Ele foi condenado a 27 anos na cadeia por jogar uma faca debaixo de um carro. Testemunhas dizem que nem foi Larsen, mas seu advogado nomeado pelo tribunal não convocou as testemunhas. Onze anos depois, quando o caso foi arquivado por falta de provas, Kamala Harris manteve Larsen na prisão, alegando que ele entregou a papelada tarde demais. Depois que um movimento popular tirou Larsen da prisão, Harris recorreu novamente da decisão.

Leia também: O Racismo é bipartidário

Memes sobre Harris ser uma policial se espalharam pela internet durante a campanha, e seu polêmico histórico na justiça criminal interferiu em sua campanha nas prévias presidenciais. Isso foi antes do início dos maiores levantes contra a violência racista da história dos Estados Unidos. Dado esse contexto, a estratégia por trás de Biden escolhendo Harris é no mínimo incômoda. O raciocínio parece se basear na forma mais cínica de política em relação a identidade. Biden e sua equipe esperam que a mera presença de uma mulher negra na chapa seja o suficiente para conquistar o movimento multi racial Vidas Negras Importam que tomou as ruas nos últimos meses. Eles parecem ter a esperança de que irão reproduzir o que o partido Democrata tem feito por gerações: desmontar movimentos sociais e tirá-los das ruas para colocá-los em campanhas eleitorais, e até no próprio partido Democrata.

No entanto, para que o movimento se alinhe a Harris, os ativistas terão que ignorar todos os cargos políticos que ela já ocupou, todo o seu programa e também sua visão de mundo - tudo isso está em sintonia com o Estado capitalista e o sistema racista da polícia para proteger seu poder.

No meio da crise do coronavírus, vale a pena mencionar o posicionamento de Harris sobre a saúde. Ela defende o “Cuidados médicos para todos que querem” - assim como a maioria dos democratas. Ela defende a manutenção de um sistema de saúde privado e inacessível, o que já era uma posição horrível antes da pandemia, mas agora, em meio às crises de saúde e desemprego, não é nada menos que criminosa.

A adesão de Harris à chapa também coloca os holofotes no hipócrita Partido Democrata e sobre como ele usa a retórica dos movimentos e depois descarta os mesmos. Escolher Harris é uma descarada maneira de cooptar o movimento por justiça racial e levá-lo ao partido Democrata. Mas Harris não é aliada das ruas: é apenas outra democrata que irá dizer uma coisa e fazer outra. Para exemplificar: não dá pra esquecer o ataque dramático de Harris ao histórico racista de Biden nos debates democratas, quando ela fez referência à oposição dele ao transporte de ônibus, e apontou que ela teria sido pessoalmente afetada de forma positiva por políticas às quais Biden se opôs. O fato de ela poder chamá-lo de racista em um momento e depois aceitar dividir uma chapa com ele no outro, mostra que as acusações nunca foram de fato sérias. As prévias do partido democrata de 2020, no geral, mostraram a farsa que é esse mesmo partido. Todos os democratas tentam ser mais progressistas que os outros no discurso, livremente se apropriando da linguagem de justiça social, mas descartam tudo isso num piscar de olhos, de novo e de novo, como a história tem mostrado. Harris não é, e nunca foi, aliada da classe trabalhadora negra. Agora ela concorre ao lado de um homem que ela mesma chamou de racista.

A escolha de Harris mostra, de uma vez por todas, a estratégia eleitoral de Biden: construir uma coalizão dos democratas com republicanos moderados. Biden incluiu alguns pontos importantes do programa de Sanders em sua plataforma, e normalmente rejeita propostas de políticas vindo da ala “progressista” do partido. Ao invés disso, Biden nos entrega a mesma coisa que os democratas vem nos entregando há décadas: diversas formas de mascarar a máquina imperialista e racista que eles representam. Novamente, vemos a falha da estratégia de Sanders de “empurrar os democratas para a esquerda”. É difícil imaginar uma chapa menos “de esquerda” no momento que o autor do projeto de lei criminal de 1994 e a antiga “melhor policial” da Califórnia. Ainda assim, Sanders rapidamente twittou que apoia Harris: “Ela entende o que é necessário para defender os trabalhadores”.

A solução é clara. O partido Democrata é um caso perdido. Nunca fará nada em favor dos trabalhadores ou oprimidos. Até a campanha progressista de Sanders agora cogita dar aumentos aos policiais e parabeniza Kamala, a policial. Isso deve irritar cada pessoa que o apoiou, esperando que ele representasse alguma mudança real. Isso deve fazer com que as pessoas que pensam que trabalhar dentro do partido democrata foi estrategicamente uma boa ideia. Na verdade, deve fazer com que as pessoas rompam com essa ideia de uma vez por todas.

O partido Democrata é o partido de Joe Biden e Kamala Harris, e nenhuma quantidade de trabalho progressista dentro dele irá o transformar em algo que não seja um dos dois partidos da classe dominante dos Estados Unidos. Não precisamos dos democratas e certamente não precisamos nos contentar com Biden. Precisamos de um partido próprio, um partido baseado nas lutas reais do povo nas ruas, que concorra nas eleições para construir essas lutas como parte da luta pelo socialismo.

Publicado originalmente no Left Voice

 
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