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A Revolta de Carrancas: a maior rebelião escrava da província de Minas Gerais
Pammella Teixeira
Licenciada em Ciências Biológicas pela UFMG

Nos últimos meses, a luta antirracista tomou as ruas, as pautas dos principais jornais do mundo e as nossas mentes. A busca por publicações e a organização de debates sobre esse tema tomaram proporções inéditas. C. L. R. James, historiador e jornalista marxista, disse em seu texto A Revolução e o Negro [1], que “a história revolucionária dos negros é rica, inspiradora e desconhecida”, que “o negro dócil é um mito” e que “o único lugar onde os negros não se rebelaram é nos livros dos historiadores capitalistas”. É nesse contexto e inspirados por James que retomamos a história da Revolta de Carrancas. Um importante capítulo da história da luta negra revolucionária mundial, rica e inspiradora, para que ela seja cada vez mais conhecida.

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Imagem: Bruno Portela.

Uma revolta nas montanhas do sul de Minas

Em 13 de maio de 1833, Ventura Mina, escravo da extinta Fazenda Campo Alegre, liderou um grupo de mais de 30 escravos em uma revolta quase desconhecida que ocorreu onde hoje estão localizados os municípios de Carrancas, Cruzília e São Tomé das Letras, nas fazendas de propriedade dos Junqueira, família tradicional do sul do estado.

Os Junqueira tinham grande importância socioeconômica na região, e essa influência se dava também no campo da política. Gabriel Francisco Junqueira, o patriarca, foi deputado geral da província de Minas por vários mandatos ao longo da década de 1830. Toda essa distinção e influência da família, significava um maior ritmo de trabalho para os escravos, pois com o enriquecimento e o desenvolvimento das propriedades, havia também mais gado para cuidar e mais roças para plantar, além de cada vez mais escravos tendo que compartilhar os mesmos recursos. Na rotina das fazendas, de manhã os escravos já deveriam ter tirado o leite, alimentado os bois, as vacas e os cavalos e, à tarde iam trabalhar na roça e cuidar das inúmeras lavouras dos Junqueira: milho, feijão, arroz, fumo, etc.

Segundo registros, o número de escravos ali chegou a ultrapassar 100 cativos, que desempenhavam trabalhos variados, incluindo a atividade de tropeiro, os quais eram responsáveis pelo transporte de mercadorias, mas também de notícias.

Esses negros e negras foram sequestrados de longe, de diferentes regiões e culturas africanas, separados dos seus familiares e obrigados a encarar a realidade nos navios negreiros, e então foram desembarcados e vendidos como objetos no porto do Rio de Janeiro. Já nas fazendas do sul do estado de Minas Gerais, juntaram-se a outros negros e negras, alguns também nascidos na África, outros já nascidos no Brasil, descendentes de africanos. Na lida das fazendas, entre o sol e o chicote, o sonho e os planos por liberdade nunca deixaram de existir, pelo contrário, os escravos se organizaram e se prepararam para, naquela tarde de maio, lutar bravamente.

Marcos Ferreira de Andrade [2] nos transporta para o sul de Minas, nas fazendas Campo Alegre e Bela Cruz:

Naquele 13 de maio fatídico de 1833, tudo parecia transcorrer sem maiores sobressaltos nas fazendas da família Junqueira. A fazenda Campo Alegre estava sob a responsabilidade do filho do deputado, Gabriel Francisco de Andrade Junqueira, que, na ausência do pai, conduzia todos negócios da fazenda, além de supervisionar o trabalho dos escravos. Naquele dia, seu pai se encontrava na Corte, cuidando de suas funções no parlamento nacional. Antes do meio-dia, como de costume, foi até a roça fiscalizar o trabalho de seus escravos. Como sempre fazia, solicitou a um cativo da casa que arriasse o seu cavalo, montou-o e seguiu em direção à roça.

Ao chegar na roça não percebeu nada de estranho e, como sempre, encontrou os escravos preparando a terra, cuidando das lavouras de milho e feijão. A tranquilidade era apenas aparente. Sem condições de oferecer nenhuma reação, ainda montado em seu cavalo, Gabriel Francisco foi surpreendido por Ventura Mina, quando foi retirado à força de cima do cavalo, e juntamente com Julião e Domingos, deram-lhe várias porretadas na cabeça, levando-o à morte alguns instantes depois.

A partir do ocorrido, alguns dos escravos que estavam trabalhando na roça naquele momento engrossaram o grupo e seguiram em direção à sede da fazenda Campo Alegre, todos liderados por Ventura Mina. Além de Julião e Domingos, o grupo agora era bem maior e contava com a participação de Antônio Resende, João, cabunda, André, crioulo, e José, mina, entre outros. Só não atacaram a sede da fazenda porque um escravo, de nome Francisco, havia saído às pressas em direção à sede da fazenda, avisando aos outros familiares do deputado o que havia acontecido na roça. Os escravos chegaram até ao terreiro da fazenda e perceberam que ela estava guarnecida por dois capitães do mato. Então os insurgentes ‘arripiaram a carreira tomando a direção da fazenda Bela Cruz’.

Depois de deixarem a fazenda Campo Alegre, os escravos, liderados por Ventura Mina, seguiram em direção à fazenda Bela Cruz. Chegando à roça da dita fazenda, os insurgentes relataram aos outros escravos o que ocorrera em Campo Alegre, convocando-os a fazer o mesmo com os brancos da Bela Cruz. A partir daquele momento o grupo se ampliara, ultrapassando o número de 30 cativos, que logo se dirigiu à sede da dita fazenda. A partir daquele momento, dois grupos se formaram: o primeiro, liderado por Ventura Mina, escravo da fazenda Campo Alegre, e segundo, por Joaquim Mina, escravo de José Francisco Junqueira, da fazenda Bela Cruz. [3]

O grupo de escravos das duas fazendas estava determinado a exterminar todo o senhorio e sua família. Assim o fizeram e, inclusive, prepararam uma emboscada para Manoel José da Costa, genro de José Francisco Junqueira, que não estava na propriedade e foi surpreendido pelos escravos ao entrar pela porteira. Eles o mataram a bordoadas e “por fim não ficando ainda bem morto deram lhe um tiro”.

Enquanto isso, um grupo sob a liderança de Ventura, seguiu em direção à fazenda Bom Jardim, também de propriedade dos Junqueira, para realizar o mesmo feito e continuar a rebelião. Mas chegando na fazenda encontraram um forte esquema de resistência formado por João Cândido da Costa Junqueira, proprietário da fazenda que já tinha notícias do que ocorreu em Campo Alegre e Boa Vista.

Segundo Andrade, “as informações sobre os combates entre as forças repressoras e os escravos rebeldes são escassas e não mereceram muita atenção nos relatos feitos pelas autoridades da época”. Mas a justiça local fez questão de espalhar a história que mais de 30 escravos se dispersaram com o disparo de dois tiros e, de alguma forma, o líder Ventura foi gravemente ferido.

Punições exemplares e ágeis

Para a família Junqueira, a revolta ficou conhecida como o Massacre da Bela Cruz, e registraram em seus livros de memórias e genealogia da família que os assassinatos foram impulsionados por disputas políticas, em vingança à vitória de Gabriel Francisco Junqueira [4] nas eleições para deputado, em 1831 [5].

Como afirma João José Reis, “a história dos dominados vem à tona pela pena dos escrivães de polícia” [6] e isso também se deu nesse caso. Foi a polícia e a justiça, cumprindo seu papel de cúmplices e protetores das elites, que contou a história de Ventura Mina, Julião, Domingos, Antônio Resende, João, cabunda, André, crioulo, José, mina, Firmino, Matias, Antônio Cigano e outras dezenas de negros e negras que fizeram parte da Revolta de Carrancas.

Um grande esquema repressivo foi organizado na região, convocando autoridades, proprietários e a Guarda Nacional para eliminar os escravos insurgentes, seja durante o confronto ou depois, reforçando a vigilância em outras propriedades, principalmente naquelas onde se concentrava um grande número de escravos. Usaram detalhes da revolta para cultivar o pavor sobre as rebeliões escravas e ajudar a justificar os mecanismos de controle e repressão que se deram a seguir.

O curato [7] de São Tomé das Letras, freguesia de Carrancas e comarca do Rio das Mortes, se tratava de uma região estratégica por interligar as províncias de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro, e os acontecimentos repercutiram enormemente em vilas e distritos próximos. Tanto senhores quanto escravos ficaram sabendo da audácia revolucionária de Ventura Mina e seu grupo, que se levantaram contra a escravidão. Proprietários de terras e governos se movimentaram, respondendo ao chamado do Juiz de Paz de Pouso Alto, que alertou distritos como Resende, Areias e Bananal sobre o risco que seria a dispersão dos insurgentes e a necessidade urgente de se evitar novas revoltas negras. Para garantir a segurança dos senhores e de suas terras, o poder público passou a determinar como se daria a vigilância sobre os escravos, como deveriam ser guardadas as ferramentas agrícolas, etc.

Além dessas medidas, era necessário dar um bom exemplo na punição dos escravos rebeldes: 16 deles foram condenados à pena de morte por enforcamento e executados em praça pública, em dias alternados e com cortejo – trata-se de uma das maiores condenações coletivas à pena de morte aplicada a escravos na história do Brasil Império.

Com tantas movimentações, fica evidente o quanto a revolta negra em Carrancas deixou aterrorizados escravistas de Minas Gerais e de todas as províncias ao seu redor, mas o acontecimento também tirou o sono do governo da Regência e providências nacionais precisaram ser tomadas.

No dia 10 de junho de 1833, foi enviado um projeto sobre o julgamento dos crimes de escravos à Câmara dos Deputados. Segundo historiadores, esse projeto tem ligação direta com a Revolta de Carrancas, porque antecipava aspectos da lei de 10 de junho de 1835 [8], que estabeleceu a pena de morte, como punição exemplar e ágil, para escravos envolvidos no assassinato de seus senhores, familiares e prepostos. Essa lei durou até 1891.

Ventura Mina, o rei negro

Ventura Mina era escravo de Gabriel Francisco Junqueira e foi apontado como o líder e o principal articulador da revolta, ao lado de Joaquim Mina, Jerônimo e Roque Crioulos – tropeiros que viajavam frequentemente ao Rio de Janeiro e traziam de suas viagens as últimas notícias da Regência, além de armamentos para a revolta – e Damião, que se enforcou quando soube que foi denunciado.

Ventura garantiu o contato com escravos de várias fazendas da região e, na véspera da revolta, ele foi na senzala da fazenda Bela Cruz. Segundo João Leonardo Cressoil, carpinteiro daquela localidade, ele conversou com Joaquim Mina e decidiram “romper insurreição no outro dia”. José Mina, que também era escravo de Gabriel Francisco Junqueira e também foi condenado à forca, disse que havia mais de dois anos que o líder “tratava desta insurreição e lhe comunicara isto assim que seu senhor [o] comprou e o trouxe do Rio de Janeiro para esta fazenda”.

Mesmo após ter morrido em confronto, seu espírito de liderança foi repetidamente destacado tanto pelos seus companheiros de luta, quanto pelas testemunhas e autoridades da época. Nem mesmo a escassez de informações sobre ele e as versões contadas pelas autoridades judiciárias conseguiram apagar seu gênio ousado e sagaz e o fato de ter sido amado, obedecido e respeitado por todos. O Juiz de Paz de Baependi se referia à Ventura como aquele “que se havia coroado Rei”. E há especulações de que ele tenha realmente sido um rei Mina, com grande influência e ascendência sobre outros escravos, por todo o peso cultural que vinha desde a África sobre a figura do rei.

A luta era pela liberdade de todos

Segundo os registros históricos, os negros e as negras que se levantaram em Carrancas não pretendiam parar ali, mas queriam assassinar os proprietários de terra e suas famílias e se apossar de suas propriedades, passando por cerca de 10 fazendas e depois indo até as propriedades das famílias Andrade e Machado.

Ainda que esses registros sejam a versão oficial dos fatos, autorizada pelas autoridades judiciárias e proprietários, que podem estar carregados de boatos e um certo exagero nos relatos, Marcos Ferreira de Andrade reconhece que “o nível de articulação entre escravos de diversas fazendas foi surpreendente e se a rebelião não fosse imediatamente contida, os temores da elite poderiam se confirmar”.

Alguns depoimentos conseguiram captar a posição dos escravos insurgentes e suas intenções ao participar da revolta. Julião Congo, por exemplo, era um escravo da fazenda Campo Alegre e se referiu aos “maus tratos” que sofria de seu senhor moço, Gabriel Francisco de Andrade Junqueira. No depoimento, “respondeu que seu senhor o tratava de mandrião, não estava contente com o seu serviço, dava-lhe pancadas, ainda mesmo quando estava doente”. Julião, crioulo, que também era escravo de Campo Alegre, dizia querer a liberdade, o que o movia era a esperança de “ficar forro” – em referência à alforria (ANDRADE, 2008).

Paz entre nós. Guerra aos senhores.

A maior rebelião escrava da província de Minas Gerais, que amedrontou a elite escravista do Sudeste, contou com a participação de cativos de origens diversas: minas, angolas, benguelas, congos, cassanges e moçambiques. Escravos falantes de bantu também tiveram presença significativa, desmentindo a história contada de que eram mais acomodados e menos inclinados às revoltas. E além dos escravos de origem africana, os crioulos – nativos e/ou filhos de escravas com brancos – também tiveram um envolvimento significativo na Revolta de Carrancas, alguns deles sendo reconhecidos como líderes da insurreição. Dos 31 escravos indiciados no processo, 9 (29%) eram crioulos, 17 (54,8%) oriundos da África Central e dois minas.

Segundo Andrade, “a diversidade étnica e cultural dos escravos da freguesia de Carrancas não impediu que eles se associassem, pelo contrário, revela a superação de tais diferenças para que o projeto de liberdade fosse alcançado [...]”. A soma da experiência do cativeiro com a expectativa da liberdade gerou uma unidade entre os cativos, que rejeitavam a divisão que a sociedade e o próprio senhorio tentavam colocar sobre eles.

Seja a busca pela alforria, a revolta em relação aos maus tratos, ou o planejamento incansável da luta por libertação, para si e para os seus, como no caso de Ventura Mina, os motivos para a revolta eram muitos. E os negros e negras ao sul das Minas Gerais se organizavam e encontravam seus meios de saber os movimentos políticos na província e no Império do Brasil, de manter suas culturas e tradições africanas e, então, afro-brasileiras, e de se organizar no silêncio da noite, nas plantações e nas senzalas, para garantir o sucesso de uma insurreição que contava com a força de negros e negras de diferentes origens, mas com apenas um objetivo: a liberdade.

Junto aos outros episódios da luta negra no Brasil e no mundo, que a Revolta de Carrancas também possa nos inspirar na nossa luta histórica contra o racismo, a violência policial e do Estado que, 200 anos depois, toma novas formas mas segue, como fez a elite colonial, derramando sangue negro em nome da propriedade privada, do lucro e da dominação capitalista. Nesse momento, em que os negros e as negras seguem não apenas resistindo, mas também se levantando em todo o mundo, que nós possamos seguir o exemplo de unidade dos guerreiros de Carrancas, e nos levantar como classe trabalhadora, que no Brasil é majoritariamente negra, fazendo tremer as elites nacionais e imperialistas. Que o nosso grito ecoe, trazendo a voz de Ventura Mina, Zumbi dos Palmares, Dandara, Mestre Moa, Marielle Franco, Breonna Taylor, George Floyd e tantos outros.

 
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