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TRIBUNA ABERTA - ENTREVISTA
Ariane Mnouchkine : “Eu sinto raiva diante da mediocridade, das mentiras, e da arrogância de nossos governantes”

“Encontro com Ariane Mnouchkine” por Joëlle Gayot, publicado no Télérama nº3670 em 13 de maio de 2020.

Confinamento dos idosos, mentiras, infantilização... Ariane Mnouchkine não esconde sua indignação frente as notícias falsas do governo. E a diretora do Théâtre du Soleil milita para que a arte viva, essencial para a sociedade, não seja esquecida.

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Texto livremente traduzido para o português por Érika Bodstein [1] e Rosite Val [2] com colaboração de Daniela Elyseu Rhinow, Manon Salles, Alexandre Lindo, Lilian Bites de Castro e Valter Moreira. Proposição e organização: Érika Bodstein.

Desde 1970, na Cartoucherie de Vincennes, Ariane Mnouchkine tem revelado, graças ao teatro, o anjo e o demônio que dormem em nós. Quando ela encena Ésquilo, Shakespeare, Molière ou quando ela se inspira na realidade, a diretora do Théâtre du Soleil explora o limite entre o bem e o mal. Abatida por conta do Covid-19, ela acordou em meio a uma França confinada onde os teatros estavam parados, artistas e intermitentes sem trabalho, e salas de espetáculo fechadas.

Essa crise histórica, ela a atravessa como artista e como cidadã. Assim que for possível, ela retornará os ensaios com seus atores. E, com eles, transformará sua raiva em uma obra iluminada.

J.G. ] Como se vive o confinamento no Théâtre du Soleil ?
A.M. ] Como podemos. Como todo mundo. Organizamos videoconferências com os setenta membros do teatro e, às vezes, com seus filhos. Rever a trupe faz bem para todos. Especialmente para mim. Pensamos: após o “desconfinamento”, o que fazer? Como retomar o teatro, que não se alimenta só de palavras, mas principalmente do corpo? Que condições sanitárias devem ser implementadas sem que elas se tornem uma censura insuportável? Máscaras, evidentemente, distanciamento físico nas atividades cotidianas como as refeições, as reuniões, mas nos ensaios? Se perguntar como fazer já é, um pouco, estar em ação. Ocorre que em 16 de março íamos começar a ensaiar um espetáculo estranhamente profético. O assunto, que não posso e nem quero evocar aqui, sob pena de vê-lo desaparecer para sempre, não muda. Mas a sua forma vai se mover pelos golpes do cataclisma que abala a todos, indivíduos, Estados, sociedades, convicções. Então, nós nos documentamos, fazemos nossas pesquisas em todos os campos necessários. Nós devemos retomar a iniciativa, essa iniciativa que, há dois meses, nos foi proibida, mesmo nos lugares onde iniciativas cidadãs poderiam trazer senão as soluções, ao menos melhorias notáveis no nível humano.

« Senhor Presidente, nos dê remos e nós enfrentaremos a tempestade », por Jean-Michel Ribes.

J.G. ] Qual é o seu estado de espírito?

A.M. ] Eu estou triste. Porque por trás dos números que um homem mostra cada noite na televisão, se felicitando da ação formidável do governo, eu não consigo deixar de imaginar o sofrimento e a solidão em que essas mulheres e homens morreram. O sofrimento e a incompreensão daqueles que os amavam, para os quais proibimos manifestações de ternura e amor, e os rituais, quaisquer que sejam, indispensáveis ao luto. Indispensáveis a toda civilização. Enquanto que com um pouco de escuta, de respeito, de compaixão da parte dos dirigentes e de seus atrapalhados conselheiros científicos, seria possível atenuar essas regras feitas às pressas, algumas compreensíveis, porém aplicadas com um rigor e uma cegueira surpreendentes.

J.G. ] Vamos falar de teatro?

A.M. ] Mas eu estou falando de teatro! Quando eu falo para você da sociedade eu falo do teatro! É isso o teatro! Olhar, escutar, adivinhar o que nunca é dito. Revelar os deuses e os demônios que se escondem no fundo das nossas almas. Em seguida transformar, para que a Beleza transfiguradora nos ajude a conhecer e a suportar a condição humana. Suportar não significa sofrer nem renunciar a si mesmo. Isso também é o teatro!

Ariane Mnouchkine dirige o Théâtre du Soleil desde 1964. Um lugar e uma trupe que questionam o mundo há mais de cinquenta anos.

« Não podemos declarar guerra sem chamar, ao mesmo tempo, para a mobilização geral. »

J.G. ] Você está com raiva?

A.M. ] Ah! Sim! Eu sinto raiva, uma raiva terrível, e quero acrescentar humilhação enquanto cidadã francesa diante da mediocridade, da autocelebração permanente, das mentiras que desinformam e da arrogância obstinada dos nossos governantes. Durante uma parte do confinamento, eu mergulhei numa semi-inconsciência devido a doença. Quando acordei fiz a besteira de assistir os representantes fantoches do governo falando nas mídias [fantochescas]. Eu tinha respeitado a rápida reação de Emmanuel Macron sobre o plano econômico e seu famoso “custe o que custar” para evitar demissões. Mas quando dentro do meu pequeno mundo convalescente apareceram os que eu chamo de ‘os quatro bobos da corte’, o diretor da Saúde, o Ministro da Saúde, a porta-voz do Governo, tendo como bônus, o papai Noel chefe, o Ministro do Interior, a raiva tomou conta de mim. Eu gostaria de nunca mais vê-los de novo.

J.G. ] O plano do presidente para a cultura

A.M. ] Pronunciamento de Macron: nos bastidores da reunião no Élysée [sede do Governo Federal] com Stanislas Nordey e Éric Toledano

J.G. ] Por que você os culpa ?

A.M. ] Um crime. As máscaras. Eu não estou falando da falta. Esse escândalo começou no quinquênio precedente de Nicolas Sarkozy e François Hollande. Mas pertencendo ao governo que há três anos não faz nada além do que agravar situação do sistema de saúde do nosso país, eles também são responsáveis. Ao repetir para nós, noite após noite, contra todo o bom senso, que as máscaras eram inúteis ou até perigosas, eles, noite após noite, nos desinformaram e literalmente nos desarmaram. Quando deveria ter sido indicado, desde que a epidemia foi declarada na China, seguir o exemplo da maioria dos países asiáticos, um chamado para usarmos sistematicamente a máscara, mesmo que ela estivesse em falta, e nós a fizéssemos. No entanto, tivemos de suportar as recorrentes mentiras dos quarto bobos da corte, incluindo as palavras inesquecíveis da porta-voz do Governo que nos explicou que, uma vez que ela mesma – a pretensão dessa “ela mesma” – não sabia como usá-las, então ninguém o faria! De acordo com muitos médicos, que sabem disso há muito tempo, mas cujas palavras não foram divulgadas pela mídia-fantochesca no início do desastre, todos teremos que nos educar sobre máscaras, porque teremos que usá-las várias vezes em nossa vida. Digo isso porque no informativo que recomenda gestos de bloqueio ao vírus a máscara ainda não aparece. Sou daquelas que pensam que seu uso sistemático, desde os primeiros alertas, teria no mínimo encurtado o confinamento mortal pelo qual estamos passando.

J.G. ] Passar por isso é o pior?

A.M. ] Devemos deixar de ser vítimas da desinformação desse governo. Eu não contesto o famoso “Fique em casa”. Mas, se estamos (por assim dizer) em guerra, esse slogan não é suficiente. Não podemos declarar guerra sem chamar, ao mesmo tempo, para uma mobilização geral. No entanto, essa mobilização, mesmo sendo generosamente bem formulada, nunca foi realmente desejada. Fomos imediatamente amordaçados, trancados. E alguns mais do que outros: eu penso nas pessoas idosas e em como elas foram tratadas. Eu ouço nas mídias os obsecados anti-idosos afirmando que é preciso nos trancafiar, nós, os velhos, os obesos, os diabéticos, até fevereiro, caso contrário, eles dizem , essa gente vai lotar os hospitais. Essa gente? É assim que se fala dos idosos e das pessoas doentes? Os hospitais teriam sido feitos apenas para pessoas produtivas e saudáveis? Então, na França de 2020, devemos trabalhar até os 65 anos e, uma vez passada essa idade não teremos mais o direito de ir aos hospitais para não lotar os corredores? Se este não é um projeto pré-fascista ou pré-nazista, parece. Isso me deixa louca.

Um quarto na Índia é a última peça apresentada no Théâtre du Soleil antes do confinamento.

“Durante um ano eles se mantiveram surdos aos gritos alarmantes dos cuidadores e cuidadoras que desfilavam pelas ruas. Hoje eles dizem: vocês são heróis”

J.G. ] O que fazer com essa raiva?

A.M. ] Essa raiva é minha inimiga porque ela tem como alvo personagens muito medíocres. Agora, o teatro não deve ser cegado por personagens tão medíocres. Em nosso trabalho devemos comprender a grandeza das tragédias humanas que estão acontecendo. Se nós, artistas, permanecemos nessa raiva, seremos incapazes de traduzir em nossas obras, que serão esclarecedoras para nossas crianças, o que está acontecendo hoje. Uma obra que colocará luz sobre o passado para que possamos comprendrer como tal estupidez, tal cegueira puderam surgir, como esse capitalismo desenfreado pode gerar esses tecnocratas, essas mentes ordinárias, diante dos cidadãos. Durante um ano eles estiveram surdos aos gritos alarmantes dos cuidadores e cuidadoras que desfilaram pelas ruas. Hoje eles lhes dizem: vocês são heróis. Ao mesmo tempo eles nos repreendem por não respeitar o confinamento quando 90% das pessoas respeitam, e aqueles não o fazem frequentemente vivem em condições desumanas. E que o Plano “Periferia” de Jean-Louis Borloo foi rejeitado de imediato, há apenas dois anos, sem sequer ter sido seriamente examinado ou discutido. Tudo isso que está acontecendo hoje é o resultado de uma longa lista de más escolhas.

J.G. ] Essa catástrofe não é em si também uma oportunidade ?

A.M. ] Ah! Uma oportunidade? Centenas de milhares de mortos no mundo? Pessoas que morrem de fome na Índia ou no Brasil, ou que se arriscam em algumas das nossas periferias? Um agravamento acelerado das desigualdades, mesmo em democracias ricas como a nossa? Alguns pensam que nas boas e velhas guerras mundiais também havia oportunidades... Eu não posso responder a uma questão dessas por respeito a todos aqueles que na Índia, no Equador, ou em qualquer outro lugar do mundo têm de catar cada grão de arroz ou de milho caído no chão.

Reação de Jean-Jacques Aillagon : “A eleição de Emmanuel Macron dava esperança de uma aceleração das políticas culturais, ela não ocorreu”

J.G. ] Os franceses são infantilizados?

A.M. ] Pior. As crianças têm na maior parte do tempo professores muito bons, devotados e competentes, que sabem prepará-las para o mundo. Nós fomos psicologicamente desarmados. Uma história me desconcertou: numa casa de repouso para idosos, em Beauvais, as cuidadoras decidiram se confinar com as residentes. Elas se organizaram, colocaram colchões no chão, e dormiram perto das suas idosas que ficaram protegidas durante um mês. Não houve nenhuma contaminação. Nenhuma. Elas descreveram todos esses momentos como extraordinários. Mas aí chega um inspetor do trabalho para quem essas condições não são dignas dos trabalhadores. Camas no chão, isso não se faz. Ele ordena a parada da experiência. As cuidadoras voltam para casa, sob risco de contaminar suas famílias, antes de voltar ao lar de idosos, sob risco de contaminar as residentes. Na Inglaterra 20% dos funcionários estão confinados com os residentes. Mas não aqui. Aqui a gente proíbe a continuação dessa experiência fundada sobre a verdadeira generosidade e o voluntariado, pela rigidez regulamentar ou pela posição ideológica. Ou ambas.

“A acreditar que eles sonham com casas de repouso genéricas onde possam esconder e esquecer todos os velhos. Jovens, estremeçam, nós somos seu futuro!”

J.G. ] Essa marginalização dos idosos revela um problema de civilização?

A.M. ] Definitivamente. Quando a presidente da Comissão Europeia sugere que as pessoas idosas permaneçam confinadas durante oito meses, ela se dá conta da crueldade de suas palavras? Ela se dá conta de sua ignorância a respeito do lugar dos velhos na sociedade? Ela se dá conta que tem coisas piores que a morte? Ela se dá conta que entre esses velhos, dos quais faço parte, muitos, como eu, trabalham, agem ou são úteis para suas famílias? Sabe ela que nós, os velhos, aceitamos a morte como inevitável e que somos inúmeros a reivindicar o direito de obtê-la no tempo desejado, direito que nos é ainda obstinadamente recusado na França, ao contrário de inúmeros outros países. Que hipocrisia! Querer nos tornar mais invisíveis ao invés de autorizar aqueles que entre nós querem escolher o momento de morrer em paz e com dignidade. Quando Emmanuel Macron sussurra: “Vamos proteger nossos idosos”, tenho vontade de gritar: “Eu não te peço para me proteger, eu peço apenas para não me tirar os meios de fazê-lo. Uma máscara, gel, testes sorológicos!” A acreditar que eles sonham com casas de repouso genéricas onde esconder e esquecer todos os velhos. Jovens, estremeçam, somos seu futuro!”

J.G. ] O que isso diz sobre a nossa sociedade?

Sobre a sociedade eu não sei, mas isso diz muito sobre a administração. Em todos os órgãos, uma má gerência revela o pior. Há 10% de gênios na humanidade e 10% de inescrupulosos. Na polícia há 10% de pessoas que não estão lá para ser guardiães da paz, mas para ser força de ordem. Eu respeito a polícia, mas quando damos diretrizes imprecisas, deixadas para interpretação de um único agente, esse agente, homem ou mulher, se revelará um ser humano, bom, compreensivo e competente, ou então ele agirá como um pequeno Eichmann, um pequeno nazista, dotado de um poder sem limite, que, quando sua hora finalmente chegar, poderá praticar sua maldade. Então ele se virará para um homem que está indo para a Ilha de Ré para ver seu pai que está morrendo, ou ele vasculhará a bolsa de uma senhora para verificar se ela verdadeiramente não comprou nada além de produtos de primeira necessidade. E se ele encontrar doces, ela a humilhará. Quando eu penso que nós fomos denunciadas, sim, você entendeu bem, denunciadas e apontadas, as famílias que vieram sob as janelas para falar com os seus confinados em Ehpad [lar de idosos] ... Você se dá conta do que está lá nas entrelinhas?

J.G. ] Você teme um Estado destruidor das liberdades?

Existe, indubitavelmente, um risco. A democracia está doente. Teremos que tratá-la. Eu sei muito bem que nós não estamos na China onde durante o confinamento de Wuhan soldavam as portas das pessoas para impedi-las de sair. Mas guardada a proporção sim, na França a democracia está ameaçada. Você conhece a história do sapo? Se o jogamos na água fervente ele salta imediatamente para fora d’água. Se o jogamos na água fria e a aquecemos bem devagar, ele não salta, ele morre cozido. É a água fria da democracia que, pouco a pouco, amornamos. Não estou dizendo que é isso que os governantes querem fazer. Mas eu penso que eles são estúpidos o suficiente para não ver isso vir chegando. Sim, eu descubro com horror que essas pessoas tão inteligentes são estúpidas. Falta a eles empatia. Eles não têm nenhuma consideração pelo povo francês. Por que não dizer a ele, ao povo, simplesmente a verdade?

J.G. ] Uma poltrona ficou no palco após o fechamento do Teatro.

“A distância física não será suportável no teatro. Nem no palco, nem na plateia. É impossível. Não somente por questões financeiras, mas porque isso é o oposto da alegria.”

“O que mais temo é o ódio. Porque o ódio não escolhe, ele devasta todo o mundo.”

J.G. ] Você ainda tem esperança nos nossos dirigentes políticos?

A.M. ] Quando em 12 de março Emmanuel Macron disse: “Vamos precisar amanhã aprender com esse momento que estamos atravessando, interrogar o modelo de desenvolvimento em que nosso mundo está envolvido há décadas e que revela falhas à luz do dia ... A saúde ... nosso estado de bem-estar não é um custo ... mas um bem precioso”, nós nos olhamos perplexos. E isso me lembra a história do imperador Ashoka que, em 280 a.C., para conquistar o reino de Kalinga, travou uma batalha que terminou em tal massacre que o rio Daya não vertia água, mas sangue. Diante dessa visão, Ashoka teve uma revelação e se converteu ao budismo e à não-violência. Às vezes, esperamos de nossos governantes essa consciência do mal que estão cometendo. Admito que naquela noite eu esperei essa conversão de Emmanuel Macron. Eu desejei que, notando sua impotência diante de um pequeno monstro que ataca o corpo e o espírito dos povos, ele entendesse conosco a cadeia das causalidades, compreendesse de que maneira a História, as escolhas, e as ações dos líderes, e de seus aliados políticos, levaram ao nosso desarmamento diante dessa catástrofe. Eu gostaria que ele compreendesse o quanto ele próprio é governado por valores que não funcionam mais. Teria sido extraordinário. Eu gostaria de ter estima por esse governo. Isso me aliviaria. Eu só pediria isso. Em vez disso, não confio neles. Não podemos confiar em pessoas que, nem por um segundo, confiaram em nós. Quando, permitidas ou não, as manifestações retomarem a calçada, serão elas de ódio e raiva, fomentando somente violência e repressão, com uma escondida Marie Le Pen que espera, impávida, ou elas serão construtivas com reais movimentos que fazem propostas? Em algumas manhãs eu penso que isso vai ser construtivo. E em algumas noites eu penso o oposto. O que mais temo é o ódio. Porque o ódio não escolhe, ele devasta todo o mundo.

J.G. ] Você tem medo de um « desconfinamento » do ódio?

A.M. ] Exatamente! Medo do “desconfinamento” do ódio colérico. Será que o povo francês conseguirá curar, ou pelo menos direcionar sua raiva, portanto seus ódios, para propostas e ações inovadoras e unificadoras? Já está na hora. Porque o pior ainda é possível. O pior é o Brasil, os Estados Unidos etc. Ainda não estamos lá mas chegaremos forçados pela privatização, exigindo que os diretores de hospitais se comportem como líderes empresariais lucrativos. Felizmente Emmanuel Macron teve a sabedoria de implementar imediatamente uma rede de segurança – trabalho em curto período de tempo – para que a França não deixe treze milhões de cidadãos em risco. Foi a única coisa a fazer. Ele fez isso. Isso deve ser reconhecido. Mas essa sabedoria nada tem a ver com uma pseudo “generosidade” do governo, como um certo ministro parece pensar. Ela é a própria expressão da fraternidade que está inscrita nos nossos muros. Esta é a verdadeira França, aquela que ainda é às vezes admirada e invejada pelos países ao nosso redor. Pela primeira vez deixamos a economia para trás para proteger as pessoas. Ainda bem!

“O vírus atinge todos nós mas, de fato, as artes cênicas sofrerão o bloqueio mais longo”

J.G. ] O que você espera para os artistas, trabalhadores intermitentes?

A.M. ] Acabei de ouvir que Emmanuel Macron felizmente aderiu à reivindicação dos trabalhadores intermitentes [categoria de artistas autônomos] que estão pedindo um ano sem declaração de imposto de renda, para que todos aqueles que não serão capazes de trabalhar nos próximos meses possam aguentar. Isso foi feito. Aqui no Soleil nós podemos trabalhar, nós temos uma subvenção, um lugar, um projeto, e ferramentas de trabalho. Cabe a nós recuperar a força e o ardor necessários. Não é o caso de trabalhadores intermitentes e artistas que, para encontrar trabalho, dependem de empresas que também estão em dificuldade. Mesmo que, enquanto isso, alguns consigam começar a ensaiar, tem-se que esperar as salas abrirem para poder atuar. Isso pode durar longos meses, até a chegada de um medicamento. Estes não devem ser abandonados, o futuro da criação teatral francesa, rica entre todos, talvez única no mundo, depende deles. Ninguém perdoaria, nem artistas, nem público, se deixássemos voltar o deserto. Em uma enchente enviamos bombeiros e helicópteros para içar as pessoas refugiadas em seus telhados. Custe o que custar. O vírus atinge todos nós mas, de fato, as artes cênicas sofrerão o bloqueio mais longo. Assim, como durante o bloqueio de Berlim, é preciso uma ponte aérea que dure até que o cerco seja levantado, até que o público possa retornar, tranquilo e ativo, com entusiasmo. Com máscara, se ainda for necessário. Mas a distância física não será suportável no teatro. Nem no palco, nem na plateia. É impossível. Não somente por questões financeiras, mas porque isso é o oposto da alegria.

J.G. ] Não é hora de pedir um novo pacto para a arte e a cultura?

A.M. ] Não somente para a arte e a cultura. Nós fazemos parte de um todo.

Notas:

[1] Diretora do 42 Coletivo Teatral - espetáculo Hamlet-ex-máquina (2017) e Maria Borralheira (Prêmio Zé Renato, 2016). Atua como pesquisadora e escritora nas áreas de Teatro e Literatura, com ênfase em William Shakespeare e Théâtre du Soleil. Participa do GREAT (FFLCH-USP-CNPq) - Grupo de Estudos de Adaptação e Tradução, desde a fundação em 2014, no qual atua como pesquisadora e organizadora de cursos com o Prof. Dr. John Milton. Realiza pesquisa científica como doutoranda em Letras no Programa de Estudos Linguísticos e Literários em Inglês da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Seus estudos de mestrado e doutorado versam sobre o Théâtre du Soleil.

[2] Atriz e diretora do RAVER Coletivo Teatral (Rio de Janeiro). Desde 1995 tem uma pesquisa continuada sobre o Théâtre du Soleil. Em 2011 trabalhou na equipe de tradução na turnê brasileira do espetáculo Os Náufragos da Louca Esperança, no Rio de Janeiro e em Porto Alegre. Entre 2013 e 2016 trabalhou com estagiária-pesquisadora, na sede da companhia em Paris, tendo acompanhado o processo de criação e as apresentações do espetáculo Macbeth e o começo do processo de criação do espetáculo Um Quarto na Índia. Em 2015 entrou para o Mestrado Arts de la Scène – parcours scènes du monde, na Universidade Paris 8, com o projeto de pesquisa O processo de criação do Théâtre du Soleil e a encenação de Ariane Mnouchkine, sob a orientação da Profa. Dra. Raphaëlle Doyon. Desde 2018 é atriz e diretora do espetáculo Mujeres de Arena – um grito contra os feminicídios, do dramaturgo mexicano Humberto Robles, traduzido e adaptado por ela e Mirian Arce.

 
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