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Reflexões sobre a importância da análise marxista das relações internacionais
Philippe Alcoy

Um programa revolucionário dos trabalhadores para a ação ao nível nacional é inconcebível se não é parte da análise das relações interestatais, da economia e da luta de classes internacional. O futuro da revolução se define em última instância na arena internacional.

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Imagem: “Criança geopolítica assistindo ao nascimento do novo homem", Salvador Dalí, 1943.

Apresentamos abaixo reflexões sintéticas sobre a importância da análise marxista das relações internacionais a fim de armar os trabalhadores com a elaboração de um programa revolucionário internacional, ponto de partida para a organização dos explorados e oprimidos na luta contra a dominação capitalista e por uma sociedade comunista.

✦ A burguesia não é uma classe "nacionalista", embora possa adotar discursos nacionalistas quando servem aos seus interesses mais imediatos, despertando o apoio das classes nacionais exploradas. Os grandes capitalistas, notadamente o capital imperialista, estão tentando maximizar seus lucros por todo planeta, as cadeias de produção estão largamente internacionalizadas há muito tempo. Para atingir esse objetivo, a burguesia precisa ter um conhecimento objetivo do mundo: recursos naturais, demografia (força de trabalho e mercado), situação política interna do país onde ela pretende investir (mas também dos países onde já investiu), interesses estratégicos e políticos internacionais dos Estados concorrentes, estado das forças militares e dos eventuais conflitos, entre outros. Essas informações são essenciais para prevenir e diminuir os possíveis riscos na hora de realizar seus investimentos, assegurar as rotas internacionais para as matérias-primas e mercadorias, etc. Não esqueçamos uma verdade básica: as relações internacionais capitalistas são feitas essencialmente da concorrência entre diferentes poderes para a dominação mundial, mesmo que existam parcerias pontuais, conjunturais ou mesmo estratégicas, elas se encaixam nesse lugar.

✦ A burguesia, especialmente dos países imperialistas, precisa de um exército de analistas super especialistas em áreas geográficas, em mercados muito específicos (especialistas nos mercados do petróleo, no setor da mineração, nos negócios militares, nas inovações tecnológicas, na geologia, na agricultura, etc.). E possui de fato excelentes analistas e especialistas; há um grande número de revistas, de laboratórios de pesquisa, de think tanks, agências de análise. Seu objetivo é essencialmente oferecer um conhecimento do mundo com o objetivo de guiar as decisões dos homens de negócio dos governos. Esse é o principal negócio deles, o que também destrói a ideia superficial da chamada "inutilidade" das ciências sociais para os assuntos capitalistas.

✦ Isso me leva a refletir sobre uma característica dos analistas da burguesia, pelo menos os melhores, ou seja, aqueles que baseiam suas análises em um método materialista, muito próximo do marxismo (embora provavelmente de certa forma inconsciente). De fato, para esses analistas um erro de apreciação ou de prognóstico pode custar literalmente muito caro. Eles podem perder seus clientes e até mesmo seus empregos. Porque sua produção intelectual está diretamente ligada à atividade capitalista, aos investimentos, mas também escolhas políticas internacionais dos governos. Eles não fazem política ou ideologia partidária, muito menos propaganda (o que não significa que eles não tenham tendências ideológicas ou políticas); eles pretendem entregar para seus clientes um conhecimento mais objetivo possível da realidade mundial, em seus diferentes aspectos (econômicos, militares, políticos, etc.).

✦ Escutei recentemente uma exposição de um analista geopolítico sobre os investimentos do setor agro-industrial onde ele explicava como na Guerra Fria a geopolítica tinha conhecido anos de glória, desde 1991 e o colapso da URSS a “utilidade” da geopolítica claramente sofreu um golpe. Isso pelo menos até a crise de 2008, mesmo que os atentados do 11 de setembro de 2001 antecipassem um certo “retorno da geopolítica”. Nessa mesma exposição ele afirmava que o mundo estava tornando-se “perigosamente muito geopolítico”. Em outras palavras, um mundo mais arriscado, com mais conflitos potenciais entre poderes e Estados. Tudo isso diz muito sobre o mundo pós-Guerra Fria, um mundo de triunfalismo burguês, onde o discurso ideológico dominante pregava uma vitória definitiva do capitalismo sobre todos os outros sistemas alternativos, criando a história de um “mundo sem conflito” e de cooperação. Evidentemente, os capitalistas jamais acreditaram nessa história construída para reforçar a legitimidade de um período da sua hegemonia. Evidentemente, o mundo também nunca conheceu um período sem conflito nem concorrência. Ao contrário. Contudo, é inegável que os riscos de conflitos diretos e armados entre as grandes potências estavam um pouco dissipados durante uma ou duas décadas. E os capitalistas puderam por um momento se adaptar a esse fato.

✦ A dissolução da URSS e a restauração capitalista nos Estados socialistas burocratizados, assim como a integração da China ao mercado mundial, marcaram uma vitória enorme para a burguesia em nível internacional. Em outras palavras, uma derrota para o movimento operário, que significou um recuo importante da organização da classe trabalhadora e até mesmo da consciência de classe dos trabalhadores; vimos a partir daí uma classe trabalhadora essencialmente defensiva em nível global. No entanto, houve episódios parciais que mostraram como a luta de classes está longe de ter desaparecido. Mas foi particularmente após a crise econômica mundial de 2008 que assistimos a um retorno gradual e tortuoso da luta de classes a nível mundial, sem ter apagado completamente as consequências da etapa anterior. A expressão mais forte disso foram os processos das revoluções árabes de 2011, que foram desviados politicamente, desviados para guerras civis reacionárias ou derrotadas. E aqui chegamos em um dos pontos mais fracos das análises geopolíticas burguesas: seu nível de exame da luta de classes é geralmente muito pobre, até mesmo ausente. Isso reflete, sem dúvida, a situação da classe trabalhadora e dos oprimidos que em geral que não estiveram na ofensiva. O jihadismo, que tem sido uma reação distorcida e ultrarreacionária ao imperialismo, pode tomar esse lugar em suas análises.

✦ Já está claro que os analistas da burguesia fazem de suas análises fontes para servir aos interesses dos capitalistas, dos dirigentes governamentais e dos Estados; seu trabalho contribui para colocar os fundamentos da estratégia dos Estados, dos chefes industriais e/ou de multinacionais e grandes fundos de investimentos. Eles possuem acesso às informações, aos contatos (nos círculos dos negócios, nas instituições ou mesmo dentro do “Estado profundo”) e a dados aos quais a classe trabalhadora não tem acesso. Precisamente por tudo isso, que os marxistas revolucionários e todos os militantes que se reivindicam do movimento operário devem seguir com atenção as análises burguesas mais lúcidas e objetivas. Nesse sentido, no prefácio das edições francesa e alemã do seu livro Imperialismo, o estágio superior do capitalismo, Lênin escreveu: “a tarefa fundamental deste livro foi e ainda é mostrar, a partir dos dados gerais das estatísticas burguesas incontestáveis ​​e das confissões de estudiosos burgueses de todos os países, qual era o quadro geral da economia capitalista mundial, em seus relatórios internacionais, no início do século XX, às vésperas da primeira guerra imperialista mundial (...) Porque a prova do verdadeiro caráter social ou, mais exatamente, do verdadeiro caráter de classe da guerra, não reside obviamente em sua história diplomática, mas na análise da situação objetiva das classes dominantes de todas as potências beligerantes. Para mostrar essa situação objetiva, não devemos dar exemplos, dados isolados (a extrema complexidade dos fenômenos da vida social sempre nos permite encontrar tantos exemplos ou dados isolados quanto desejarmos, apoiando qualquer tese), mas todos os dados sobre os fundamentos da vida econômica de todas as potências beligerantes e de todo o mundo” (sublinhado por nós).

✦ Mas, como militantes marxistas revolucionários, poderíamos nos questionar sobre o lugar que daremos as análises das relações entre Estados, dos relatórios econômicos internacionais, dos eventos globais em geral. Porque ao final, mesmo que possamos apoiar as lutas em outros países, frequentemente as relações internacionais e a dinâmica por trás delas parecem questões "distantes" ou mesmo "abstratas" para muitos ativistas do movimento operário e para os próprios trabalhadores. Mas na realidade esses elementos de análise permitem aos revolucionários construir um programa revolucionário internacional, o internacionalismo está no DNA do marxismo revolucionário. Como disse Trótski na introdução do seu livro A Revolução Permanente, “o internacionalismo não é um princípio abstrato: é apenas o reflexo político e teórico das características mundiais da economia, do desenvolvimento mundial das forças produtivas e da situação mundial da luta de classes”. Dito de outra maneira, longe de todo moralismo abstrato, o internacionalismo (e, portanto, a necessidade de uma política internacional baseada em uma análise objetiva da economia capitalista, nas relações entre Estados, na luta internacional de classes, etc.) decorre do caráter internacional do capitalismo, das cadeias de produção internacional, da exploração ao nível internacional da força de trabalho e dos recursos naturais. Em seu prefácio à edição francesa de A Revolução Permanente, Trótski disse a esse propósito: “Se examinamos a Grã-Bretanha e a Índia como duas variantes extremas de um tipo de capitalismo, chegaremos à conclusão que o internacionalismo proletário de ingleses e italianos se constrói independentemente dessas condições, objetivos e métodos, e não sua identidade. O sucesso do movimento de libertação na Índia desencadeará o movimento revolucionária na Inglaterra, e vice e versa. Uma sociedade socialista autônoma não pode se construir nem na Índia, nem na Inglaterra. Os dois países deverão fazer parte de uma união mais elevada. É nisso, e somente nisso, que reside a base inabalável do internacionalismo marxista".

✦ É evidente que na extrema esquerda anticapitalista em geral os analistas da situação internacional e das dinâmicas dos trabalhadores não pretendem, como os especialistas da burguesia, aconselhar governos ou empresários a maximizar seus lucros. No entanto, apesar das excelentes análises marxistas sobre a questão, às vezes existem textos muito superficiais e até uma óbvia falta de interesse nessas questões; indiscutivelmente, muitas análises burguesas são muito relevantes e ainda mais interessantes do que certas produções de autores que afirmam serem marxistas. Pelo menos de um ponto de vista factual objetivo.

✦ Para os revolucionários a exigência de seriedade e profissionalismo em nossas análises devem se basear nos objetivos de fundo de uma política internacional revolucionária, ligada à construção de uma organização revolucionária dos trabalhadores ao nível nacional e internacional. E isso independe do tamanho da nossa organização. James P. Canon escreveu a esse propósito em seu livro História do trotskismo norte-americano: “eu penso que uma das mais importantes lições que nos ensinou a Quarta Internacional, é que na época moderna você não pode construir um partido político revolucionário apenas em nível nacional. Você deve começar com um programa internacional e, sobre essa base, você deve construir sessões nacionais de um movimento internacional. (...) Essa questão produziu grandes conflitos entre os trotskistas e os brandlerianos, o pessoal do Bureau de Londres, Pivert, etc., que propuseram a ideia de que você não podia falar das notícias internacionais antes de ter construído fortes partidos nacionais (...) Trótski fez exatamente o oposto. Quando foi expulso da Rússia em 1929 e pôde empreender livremente seu trabalho internacional, propôs a ideia de começar com um programa mundial. Mesmo que haja poucos em cada país, você organiza as pessoas baseadas no programa internacional. Você está gradualmente construindo suas seções nacionais”.

✦ Não tenho dúvidas de que o marxismo é a ferramenta metodológica mais poderosa para analisar o capitalismo, as relações internacionais, a dinâmica atual e antecipar os desenvolvimentos nos preparando melhor para enfrentar as novas situações. Mas o marxismo é também a ferramenta mais poderosa que podemos ter para transformar e agir sobre a realidade, desenvolver um programa e uma política revolucionária para os trabalhadores, para todos os oprimidos. A burguesia é uma classe cujo sistema econômico é internacional e seu domínio também. Então, mesmo que a luta imediata da classe trabalhadora comece sobre o terreno nacional, os destinos da revolução vão se definir em última instância na arena internacional. Daí a importância para a classe trabalhadora de desenvolver um conhecimento e uma análise mais objetiva e científica possível sobre a situação internacional e sua dinâmica, a fim de servir para seus próprios interesses revolucionários de classe. Desse ponto de vista uma análise proletária marxista da situação internacional deve abordar: a) a economia internacional, em seus diferentes aspectos (financeiros, ramos de produção, inovações tecnológicas, recursos naturais, etc.); b) a relação entre os Estados; c) os diferentes aspectos militares; d) em situações como a atual, levar em conta também a questão da saúde, mas de maneira mais ampla a ecologia; e) ao contrário da geopolítica burguesa, as questões da luta de classes (onde podemos incluir também as lutas contra as opressões de diferentes tipos) ocupam um lugar central.

Coloquei aqui algumas reflexões iniciais sobre a importância do acompanhamento dos eventos atuais e da dinâmica internacional, mas, de um ponto de vista marxista revolucionário, a serviço dos interesses da classe trabalhadora em sua luta contra o capitalismo, por uma sociedade comunista. Contudo, fazê-lo de um ponto de vista marxista revolucionário não significa que rejeitemos a busca pela maior objetividade possível (que não deve ser confundida com a ilusória "neutralidade"). Nesse sentido, não há problema em basear nossas análises, a partir das quais desenvolvemos nossas posições políticas, nos estudos e escritos dos melhores intelectuais da burguesia. Mas também não somos puros "analistas". Somos militantes marxistas revolucionários que analisam objetivamente a realidade para transformá-la e derrubar um sistema de exploração que está levando a humanidade e o planeta à destruição.

Tradução de Odete Cristina.

 
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