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Notas sobre o sadismo escravocrata de Regina Duarte: Brasil, país do futuro
Daniel Alfonso
São Paulo

Na última sexta-feira, dia 8 de maio, a secretária de Cultura do governo Bolsonaro, Regina Duarte, concedeu uma entrevista à CNN Brasil que já pode ser considerada histórica. O despreparo absoluto, o sorriso sarcástico, os trejeitos impacientes e tragicômicos, os braços esticados cantarolando uma homenagem à ditadura, foram alguns elementos que deram forma ao sadismo escravocrata, um dos pilares da nossa burguesia e setores sociais ligados a projetos elitistas. Todos os que se indignam com a morte de mais de 10 mil pessoas (até agora) pela COVID-19, que atinge desproporcionalmente a população negra das favelas e periferias, sentiram ódio profundo de Regina Duarte.

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Ilustração: Alexandre Miguez

A entrevista de cerca de 40 minutos provê bastante material para refletirmos sobre o Brasil - desde a clássica consideração reacionária sobre a burocracia, “regimes democráticos” e a “demora” na realização de projetos, até as abomináveis frases que revelam o desprezo pela população brasileira, junto a uma grande quantidade de temas - mas é inegável que os últimos minutos se destacam entre os mais estarrecedores. O significado dos últimos minutos da entrevista, porém, podem ser mais bem entendidos à luz da entoação do “Pra frente Brasil” na primeira metade da entrevista. Queremos aqui fazer algumas considerações sobre como esses momentos se relacionam.

“Vamo embora pra frente?” - Brasil, país do futuro

Perto do minuto 15 da entrevista, após o jornalista perguntar sobre as críticas a Bolsonaro, Regina Duarte afirma: “Porque eu acredito que ele era e continua sendo a melhor opção para o país. Mas aí cê diz assim: ‘ah, mas ele fez isso, ele fez aquilo’. Eu não quero ficar olhando pra trás”. E continua: “tem que olhar pra frente, ser construtivo, olhar pra frente”. Com sua “colinha” já enrolada, começa a entoar a marchinha da seleção da copa de 1970 “Pra frente Brasil, salve a seleção”. O que leva uma representante do governo a entoar, com alegria e desembaraço, uma canção otimista em relação ao Brasil em plena pandemia que atinge profundamente o país e muito provavelmente será o mais atingido em todo o mundo? Sua desenvoltura mórbida não foi consequência de um lapso, falha de julgamento, ou mesmo insanidade temporária. Foi o recurso a que recorreu ao sentir-se acuada - mesmo por uma emissora que não esconde suas posições antioperárias. Afinal, essa canção revela uma faceta específica da defesa da ditadura.

A ditadura brasileira foi uma resposta da burguesia nacional, junto ao imperialismo norte-americano, à situação revolucionária aberta em 1963, com trabalhadores das cidades, do campo e camponeses exigindo do governo Goulart medidas mais radicais que atendessem o apelo a terra, melhores condições de trabalho e salários dignos, entre outras demandas.

A vasta disposição de terras, as lindas praias, a grande quantidade de recursos nacionais e uma industrialização meio capenga haviam sido fontes para a criação, ao longo do século XX até então, de um imaginário segundo o qual o Brasil estaria destinado a desfrutar de suas potencialidades no futuro. Os debates teóricos e políticos quanto ao descompasso do capitalismo nacional em relação a outros países do ocidente tiveram inúmeros representantes. No campo conservador, diversos representantes se destacaram, a começar pelos teóricos escancaradamente racistas do final do século XIX, para o quais o futuro nacional seria conquistado com o progressivo embranquecimento da população [1]. Houveram também representantes na economia, nas ciências políticas, na sociologia.

A ditadura militar, por sua vez, lidou com os desafios do desenvolvimento capitalista à sua maneira. Repressão, assassinatos em massa, cerceamento de liberdades democráticas, tortura, foram importantes para garantir a ordem que a burguesia queria, em meio às contradições inerentes ao processo de urbanização nacional (algumas das quais foram alvo de reivindicações de trabalhadores e camponeses no processo revolucionário de 63 e 64), além da injeção massiva de capital estrangeiro na economia [2]. Os maiores níveis de produção industrial, crescimento de cidades, investimentos em infraestrutura em meio a um cenário oficial de paz e ordem garantiram a possibilidade de uma entonação positiva e conservadora sobre o futuro.

O futuro nesse caso se contrastava com a realidade, e as dificuldades da burguesia de modernizar o país - com, por exemplo, o crescimento vertiginoso de favelas no período - são transladas a um futuro imaginário e mítico. Se a modernização dos ensaístas dos anos 1930 e 1940 encontrou em Vargas sua expressão (com encanto e desencanto), a ditadura justificava suas ações projetando um futuro no qual o Brasil teria seu potencial plenamente aproveitado. Sem alongar a discussão, essa foi uma característica peculiar da ideologia da ditadura brasileira, um de seus alicerces ideológicos: combina o saudosismo do passado (um momento onde havia “ordem”, eufemismo para escravidão, ao invés do caos de uma sociedade que se urbanizava aos trancos e barrancos) com um olhar para o futuro, no qual a ordem seria reestabelecida e o Brasil encontraria a si mesmo. É esse alicerce ideológico ao qual Regina Duarte recorre, ao dar forma ao bolsonarismo, quando diz “(...) vamo embora pra frente”, entoando sorridente “Pra frente Brasil, salve a seleção”. A secretária clama por um sonho nacional pautado pelas possibilidades do futuro; pelas mãos assassinas e covardes da burguesia e seus políticos, naturalmente, mas do futuro. A sobrevivência do mais forte, tão decisiva no pensamento reacionário, adquire proeminência.

O sadismo escravocrata e a política de mercado

Esse desejo pelo futuro adquire conotação explicitamente mórbida uma vez que a defesa da ditadura foi acompanhada de um escárnio em relação à situação da população com a pandemia do coronavírus. A confusão de Regina Duarte em relação a qual vídeo estava sendo transmitido criou a possibilidade para a atriz revelar com clareza o sadismo escravocrata típico das elites brasileiras. Em outra oportunidade, afirmamos que o bolsonarismo carregava consigo um choque à direita nas relações raciais: embora compartilhasse com o mito da democracia racial a visão de que não havia racismo no Brasil, significava uma ruptura à direita com esse, e uma aproximação com o conteúdo da perspectiva de um “paraíso racial” propalado pelo Império no século XIX, na medida em que excluía todo tipo de expressão identitária negra (ou mesmo símbolos culturais nacionais) do panteão brasileiro.

Nessa entrevista, embora Regina Duarte não tenha dito nada diretamente relacionado ao tema, a secretária preenche seu otimismo em relação às possibilidades do futuro com o descaso absoluto pela vida dos trabalhadores e da população brasileira, composta por 54% de negras e negros. Seu descaso com Aldir Blanc, com o suicídio de Flavio Migliaccio, o canto da marchinha, e todo o absurdo que compôs a entrevista contrastam, resoluta e conscientemente, com o drama que a população em geral, particularmente a negra, está sofrendo. Bolsonaro havia dito que os negros “não servem nem para procriar”, Regina Duarte agora diz sentir-se leve com a situação brasileira diante da pandemia na qual, para citar somente um número gritante, 184 milhões de brasileiros não têm acesso a água encanada, condição mínima para prevenir-se do coronavírus - além do drama diante do colapso do sistema de saúde brasileiro e a falta de dinheiro fruto da crise econômica.

Bolsonaro e Regina Duarte complementam expressões de uma mesma posição ideológica que a pandemia, como toda crise de qualquer natureza teima em fazer, deixou à mostra seus componentes essenciais. Quando Regina Duarte clama para um olhar em direção ao futuro, faz coro com o negacionismo bolsonarista cujo objetivo não é somente dirigir-se ao setor informal que, em seu desespero por alguma fonte de renda conta as horas até a reabertura, mas criar condições para descarregar ainda mais as consequências da crise nas costas dos trabalhadores e do povo pobre.

O ódio a Regina Duarte e a todo o bolsonarismo precisa ser combustível de um ódio de classe massivo contra essa burguesia covarde e racista de Roberto Justus e companhia. O encontro do Brasil com ele mesmo, tema que merece ser debatido, passa pela ruptura com o imperialismo e por um governo verdadeiramente democrático, com trabalhadores e o povo pobre à frente.

 
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