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Covid-19, o fantasma da depressão econômica e os limites do capitalismo
Pablo Anino

Para conter a crise, Mario Draghi, ex-presidente do Banco Central Europeu, convocou uma mobilização de recursos como se se tratasse de uma guerra. Socializar as perdas ou reorganizar a sociedade?

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As consequências imediatas da Covid-19 estão à mostra: retração econômica, expansão do desemprego, cortes salariais e uma ameaçadora interrupção da cadeia global de pagamentos que potencialmente pode levar a quebras empresariais e bancárias.

Mas no reino da incerteza instaurado pelo vírus começamos a vislumbrar com certa clareza algumas tendências de maior alcance. Enquanto há poucos dias se prognosticava uma recessão somente para o primeiro semestre, agora o diagnóstico mais provável é que a queda econômica termine infectando o ano como um todo. Isto significa que a produção mundial durante 2020 será menor do que em 2019. O fenômeno de uma recessão anual que abarque todo o planeta é um fato “estranho” nas últimas décadas: desde o fim da Segunda Guerra Mundial somente aconteceu em 2009, devido à crise financeira internacional.

Kristalina Georgieva, diretora gerente do Fundo Monetário Internacional, estabeleceu parâmetros de comparação que geram calafrios: “Prevê-se como mínimo uma recessão tão aguda quanto durante a crise financeira mundial ou pior, mas esperamos uma recuperação em 2021”. O “esperamos” de Kristalina transita os caminhos da fé, do desejo, mas no momento não se vislumbra qual será a saída da catástrofe que ameaça as condições de vida em todo o planeta e que está conduzindo a mudanças (o futuro dirá quão profundas) nas formas de pensar.

A diretora gerente advertiu a gravidade da situação mundial, mas fez um “zoom” na retirada de capitais das economias dependentes, atrasadas, semicoloniais, em direção aos centros financeiros imperialistas. “Desde o início da crise, os investidores já retiraram 83 bilhões de dólares dos mercados emergentes, a maior fuga de capitais já registrada”. Ao que se poderia somar a queda dos preços das matérias primas, que pode conduzir muitos desses países a uma situação de quebra.

Kristalina afirmou que o FMI se dispõe a usar a totalidade de sua capacidade de empréstimo: se trata de 1 trilhão de dólares, uma cifra sideral que implica, para dar um parâmetro, o dobro da produção da Argentina durante um ano. Como demonstrou descaradamente o maior empréstimo de sua história, outorgado ao governo macrista, o Fundo é um salva-vidas de última instância que ajuda a enterrar as maiorias e salvar os poucos que já estão salvos para sempre.

Marx e as tendências profundas do capitalismo

Karl Marx, assim como estudou as contradições que conduzem às crises capitalistas (que se expressam, por exemplo, em determinadas circunstâncias, em uma queda da taxa de lucro, um parâmetro do “estado de saúde” do capitalismo), analisou as contratendências que permitem recompor (ainda que parcialmente) o ciclo de negócios capitalistas. Em resumo, são as seguintes: aumento da mais-valia relativa; diminuição do valor do capital constante fixo e circulante; abertura de novas fronteiras para o comércio exterior; redução do salário para abaixo de seu valor (ou mais-valia absoluta); eliminação de competidores por mecanismos de mercado ou pela guerra.

O investimento real (não o especulativo que se expandiu nas últimas décadas) habilita a incorporação de novas tecnologias ou inovações nas modalidades de organização do processo produtivo, que encurtam o tempo de trabalho socialmente necessário levado para produzir as mercadorias, ou seja, aumentam a produtividade, e favorecem a recomposição de lucros: o que chamava de aumento da mais-valia relativa. Da mesma maneira um barateamento das maquinarias e de todos os insumos que a produção consome (diminuição do valor do capital constante fixo e circulante) contribui à saúde do capital.

O aumento da mais-valia relativa pode-se dizer que é, talvez, o mecanismo que menos esteja atuando no capitalismo contemporâneo. Ou, ao menos, é o que ocorre desde a crise de 2008. É que se verifica um baixo investimento e lentidão no avanço da produtividade que, como explica a economista marxista Paula Bach, são em alguma medida “termômetros” da aplicação de novas tecnologias. Concomitante a isso, poderia-se agregar, também é difícil verificar um barateamento das máquinas, insumos e matérias-primas que as empresas consomem. Talvez, o capital poderia encontrar um incentivo na baixa recente dos preços das matérias-primas, que, entretanto, contraditoriamente, não responde a um barateamento da produção, senão a uma retração da demanda pela crise.

A expansão do comércio exterior ou a exportação de capitais são outras contratendências assinaladas por Marx: a conquista de novos mercados dão ânimo à valorização capitalista. É que ocorreu durante a chamada “globalização” neoliberal. No entanto, justamente, outro fenômeno relevante posterior à crise de 2008 é a perda de dinâmica da expansão do comércio exterior: a “globalização” já não é o que era. O feroz movimento de capitais, assinalado por Kristalina Georgieva, em direção aos centros imperialistas desatado pelo coronavírus, também é sintomático das características que a exportação de capitais dos anos recentes adquiriu, predominantemente especulativa.

Obviamente Marx também assinala que um mecanismo que favorece o empresário é a redução do salário para abaixo do que as famílias operárias necessitam para chegar ao fim do mês. A redução do salário a escala mundial foi um mecanismo essencial durante o neoliberalismo: a deslocalização produtiva desde os Estados Unidos e das potências europeias em direção ao leste asiático e leste europeu ampliou a força de trabalho internacional disponível para a exploração capitalista, uma disponibilidade que pôs em competição operários de todo o mundo pressionando à redução de salários.

Quanto mais as massas trabalhadoras podem resistir frente as penúrias crescentes? A volta da luta de classes ao cenário internacional prévia ao coronavírus, com a rebelião chilena, claramente um amplo desafio ao neoliberalismo, ou as greves na França contra a reforma da previdência, entre outras expressões ao redor do planeta, são um sinal de esgotamento, de que não há muita margem para seguir espremendo o trabalho alheio. No entanto, a aceleração da crise vai impor como uma lei de ferro do capitalismo a necessidade de empurrar as maiorias a uma miséria crescente. No cenário de luta de classes é, justamente, onde se definirão as possibilidades de que o capital se revitalize ou a classe operária abra espaço a novas alternativas.

Claro que a realidade é extremamente complexa, a delimitação até certo ponto analítica, e os mecanismos contracíclicos que permitem reanimar o capital não atuam um de cada vez, e sim, em maior ou menor medida, atuam entrelaçados, simultaneamente, imbricados em combinações instáveis. Ainda que em determinadas épocas históricas podem prevalecer uns sobre os outros.

Esta breve recapitulação da importante inibição à ação das contratendências que permitiriam ao capital melhorar suas perspectivas, está claro, não implica que o capitalismo enfrente limites absolutos: sempre alguém poderá assinalar aqui, lá ou acolá, um exemplo contrário. O assunto fundamental é se o fenômeno é geral ou parcial. E a esta altura fica bastante evidente que a acumulação de capital está experimentando limites de envergadura de todos os pontos de vista.

Como se fosse uma guerra

Intencionalmente, deixou-se de lado outro mecanismo assinalado por Marx para revitalizar a economia. Trata-se da eliminação de competidores através do mercado quando as grandes empresas avançam sobre o pequeno e médio capital menos eficiente ou, fatalmente, através da guerra comercial, senão bélica, como quando o capital estadunidense coroou-se dominante ao final da Segunda Guerra Mundial.

No establishment econômico existe uma forte preocupação. O ex-presidente do Banco Central Europeu (BCE), Mario Draghi, a manifestou em uma nota de opinião no Financial Times, que sugestivamente foi intitulada “enfrentamos uma guerra contra o coronavírus e devemos nos mobilizar à altura”. Para o ex-presidente do BCE, “O desafio que enfrentamos é como atuar com suficiente força e velocidade para evitar que a recessão se transforme em uma depressão econômica prolongada, aprofundada por uma grande quantidade de incumprimentos que deixam um dano irreversível”.

É sábio assinalar que a proposta de Draghi de mobilizar recursos como em uma guerra busca atender um problema imediato de liquidez empresarial: cortar a sangria para evitar que o corpo capitalista siga piorando. Ou seja, uma proposta pragmática para um problema histórico. A grande “mobilização” de recursos que Draghi propõe está orientada para que os bancos criem dinheiro para “permitir sobregiros ou abrir linhas de crédito” a taxa zero às empresas. E para que esta política seja garantida, obviamente, pelos estados “independentemente do custo de financiamento para o governo” que respalde as emissões de dinheiro. Claro que tudo isto tem um fim pretendidamente “nobre”: em primeiro lugar, salvar as empresas para que, eventualmente, não demitam e sejam preservados os postos de trabalho.

Caso contrário, a alternativa é “uma destruição permanente da capacidade produtiva e, portanto, da base fiscal”, um resultado muito grave para os estados, alerta Draghi. Certo. Mas nestes termos a salvação do capital, com uma “mobilização” como se fosse uma guerra, evitaria que atue em grande escala a última das contratendências assinaladas por Marx: a eliminação de competidores. No momento, busca-se evitar uma limpeza que permita manter “vivo” o capital em geral, às custas de sacrificar alguns capitalistas em particular, pouco competitivos. Ainda que no desenvolvimento da crise seja inevitável observar quebras.

Ou seja, neste momento, a salvação proposta por Draghi parece estar orientada para evitar que aconteça uma destruição de forças produtivas de uma escala tal que os empresários “mais aptos” emerjam sobre os “menos aptos”, ganhando cotas de mercado, ampliando sua esfera de valorização. Entretanto, por outra linha, a competição é um monstro destruidor implacável que em algum momento pode chegar a cumprir com seu trabalho:
é o que acontece, por exemplo, sob a forma de guerra comercial entre os Estados Unidos e a China, na realidade uma competição severa pela predominância tecnológica e produtiva.

Entretanto, nas circunstâncias atuais, no cálculo do establishment mundial, um nível profundo de destruição de capitais, uma necessidade urgente para revitalizar o sistema, é percebida como uma ameaça que pode pôr em questão o domínio capitalista: quem quer se responsabilizar em gerir o desemprego massivo, as quebras empresariais generalizadas? Esta complexa realidade está mostrando um limite muito agudo, de caráter histórico, à valorização capitalista: o sistema não pode se valer de seus próprios mecanismos internos para depurar-se e conseguir renovada vitalidade.

O economista da London School of Economics, Jerome Ross, alerta que o mundo está parado e há uma montanha de dívida dos estados e das empresas. Um endividamento inaudito que “poderia desatar uma grande crise internacional da dívida que fará o crash e a recessão global de 2008/2009 parecerem uma brincadeira de criança”.

Parece evidente que esta montanha de endividamento é prévia ao coronavírus e se engendrou de uma maneira muito particular. Como ocorreu? A dívida dos estados em grande medida se explica pelos recursos destinados ao resgate dos bancos durante a crise mundial desatada uma década atrás. Passaram mais de dez anos e a “inteligência” capitalista recorre à mesma receita que trouxe ao desastre atual, só que agora dando mais espaço, além dos incentivos monetários, para as políticas fiscais.

Tem mais. A dívida empresarial se formou de uma forma muito particular que exibe a forma irracional (ou racional em termos de sustentar os lucros) na qual está atuando o capitalismo das últimas décadas: em grande parte se deve ao dinheiro proveniente de crédito barato tomado pelas empresas para comprar suas próprias ações. Eric Toussaint assinala que na vanguarda deste fenômeno estão Google, Apple, Amazon e Facebook, depois os bancos estadunidenses, o setor industrial, de energia e de bens primários: “O total de recompras no conjunto de todos os setores alcançou nos Estados Unidos mais de 5.250 trilhões de dólares” entre 2009 e 2019, o equivalente a um quarto da produção anual dos Estados Unidos.

Esta política de recompra de ações também foi impulsionada pela baixa de impostos para o repatriamento de capitais que Donald Trump aprovou. Toussaint explica que é o contribuinte estadunidense que financiou as empresas, mas a propriedade segue estando nas mãos de uns poucos. Os mecanismos de recompra construíram nos últimos anos uma fenomenal bolha da bolsa de valores que estourou no último mês.

A nova ronda de resgates desatada pelo impacto do coronavírus, nos Estados Unidos, na França ou na Argentina (ainda que em muito menor escala) segue um critério inabalável: a proporção de recursos que se destina a pôr dinheiro no bolso dos trabalhadores é muito inferior à que se canaliza às contas bancárias empresariais. Isto potencializará a dívida dos estados até níveis que provavelmente não conheçam nenhum antecedente histórico. Não é apenas isso. Quando o dinheiro posto nas contas bancárias das empresas não for suficiente para manter a vitalidade do negócio, aparecerá o recurso da nacionalização de empresas, que não se pode descartar que avance em ondas. É o que está colocado na França com a Air France, em perigo de quebra pela crise do turismo.

A nacionalização do sistema de saúde no Estado Espanhol ou na Irlanda, para todo o tempo que dure a crise do coronavírus, e a repentina revalorização da saúde pública em todo o planeta, inclusive por parte daqueles que anos atrás aplicaram o machado dos ajustes fiscais sem pensar duas vezes, mostram, ao menos neste aspecto da vida, que as necessidades humanas podem ser satisfeitas sem a mediação de um processo de compra e venda. E que isto inclusive se realiza de maneira muito mais racional do que quando impera o dogma que indica que o lucro, a racionalidade do mercado, são os organizadores mais eficientes da sociedade. O caráter social da produção está se colocando em evidência. Os estados capitalistas estão em uma cruzada crítica para sustentar seu domínio. Mas o curso da crise está deixando à vista de todos que as bases essenciais da organização da vida não funcionam sem os trabalhadores da saúde, da alimentação, do transporte, da logística. Pelo contrário, pode-se prescindir totalmente dos capitalistas. A ampla reflexão que a crise abre permite que a classe operária intervenha com um programa anticapitalista.

Tradução: Mariana Duarte.

 
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