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Brexit
O Brexit, um fracasso heróico e os mitos do nacionalismo inglês
Josefina L. Martínez
Madrid | @josefinamar14

Um fracasso heróico. O Brexit e a política da dor (Capitán Swing, 2020) é o último livro de Fintan O’ Toole, comentarista político e crítico literário irlandês, editor literário do The Irish Times.

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A série SS-GB, estreada pela BBC em fevereiro de 2017, tem como cenário uma realidade alternativa. Em 1941 os nazistas invadiram o Reino Unido, fuzilaram Churchill e conseguiram consolidar um regime de ocupação na ilha. O governo britânico no exílio não foi reconhecido pelos Estados Unidos e a URSS de Stalin mantinha boas relações com Hitler. Nestas condições trabalha o detetive de homicídios da Scotland Yard, Douglas Archer, que acaba envolvido, sem querer, nas redes da resistência. A pergunta colocada pela trama, baseada no romance do escritor britânico Len Deighton é simples: “O que teria acontecido se Hitler tivesse conquistado a Grã Bretanha?” O mesmo recurso pode ser encontrado no The Man in the High Castle transmitida pela Amazon, basada em um romance de Philip K. Dick (1962). O gênero literário é a ucronia, a invenção de realidades históricas alternativas imaginadas a partir da mudança de um fato da história e suas possíveis derivações.

Para Fintan O’ Toole, SS-GB é uma boa metáfora dos sentimentos de ansiedade que germinam em setores do conservadorismo inglês e que acabaram levando ao Brexit. E se a Grã Bretanha tivesse sido derrotada pela Alemanha, não na guerra, mas mediante a burocracia da União Europeia?

O ensaio recorre as construções ideológicas e os mitos que o nacionalismo inglês apresentou como ameaças reais na sua batalha a favor do Brexit. O espectro de uma nação invadida (pelas regulações da União Europeia, pelo cosmopolitismo europeu, o poder alemão e os imigrantes) que tem que ser “liberta”.
O’Toole aponta que na fantasia reacionária inglesa, a distopia de SS-GB não se diferencia da realidade: “Retoricamente, é um lugar comum entre os anti-europeus britânicos que a União Europeia é uma continuação mais dissimulada das tentativas anteriores de dominação a partir do continente”. [1]

“Napoleão, Hitler e algum outro tentaram unificar a Europa submetendo o Reino Unido e acabaram fracassando na tentativa. A União Europeia é uma tentativa de conseguir o mesmo objetivo por outros meios, e também está condenada ao fracasso, porque é impossível unificar a Europa quando quase ninguém se sente verdadeiramente europeu.” A primeira vista pode parecer um delírio, mas as declarações são do atual primeiro ministro britânico, Boris Johnson, e foram ditas um mês antes do referendo de julho de 2016.

A relação do Reino Unido com a União Europeia foi complexa desde o começo. O presidente francês Charles De Gaulle vetou duas vezes a entrada dos britânicos na União Europeia ampliada, em 1962 e 1967, por considerá-los um cavalo de Troia dos norte-americanos. Somente em 1973 o Reino Unido obteve seu status de membro e no referendo de 1975 o voto à favor da União obteve 67%. Neste então o nacionalismo inglês anti-europeu ainda não conquistava maioria e passariam muitos anos até florescer com o Brexit. Mais tarde viria o renascer britânico das mãos de Margaret Thatcher, com a guerra das Malvinas e ofensiva sob a classe operária como suas próprias guerras externas e internas para reconstituir o poder imperial.
Depois de 40 anos de neoliberalismo, no entanto, é produzida a volta do fantasma de um passado traumático: o nacionalismo inglês volta a agitar a ideia de que a Grã Bretanha foi ultrajada e humilhada pelos europeus continentais.

A contradição do Brexit, sustenta O’Toole, é que “se concebe a si mesmo, ao mesmo tempo, como uma forma de reconstruir o império e como um movimento de liberação nacional antiimperialista.” Em uma espécie de “anti imperialismo reacionário”, os nacionalistas ingleses falam do Reino Unido como se fosse uma colônia da Alemanha, além disso invadida por imigrantes selvagens. Nesta tessitura, Nigel Farage chegou a nomear o 23 de junho de 2016 como “Dia da Independência”.

Com uma boa dose de ironia, O’Toole explica esta “fantasia de submissão” sadopopulista dos brexiters (que exageram nas humilhações cometidas à sua nação pelos burocratas de Bruxelas), para qual não faltam referências aos bestseller Cinquenta tons de cinza, o romance erótico “sado light” da autora britânica E. L. James.

Este plano de fundo de humilhação e ultraje do que seria necessário se libertar é combinado com outro mito do imaginário nacionalista inglês, a figura da “derrota heróica”, desde a batalha de Isandhlwana onde o exército britânico foi derrotado por zulúes (1879) até a façanha de Dunkerque (1940) recuperada pelo filme de Christopher Nolan (2017). Mitos de resistência e sofrimento que mascaravam, no passado glorioso do império, que os dominados, ocupados e humilhados eram na realidade os povos colonizados pela Grã Bretanha.

Outro substrato ideológico dos nacionalistas, que Boris Johnson represente como um dos principais impulsionadores do Brexit no partido conservador, é a ideia de que é necessário enfrentar a podridão dos valores multiculturais que as elites europeias estariam promovendo, do feminismo, as imigrações e o islamismo.
“Esta metáfora é fundamental para o Brexit: funde a guerra, o fim do império, a imigração e a União Europeia em uma só imagem”. [2]

Atrás de uma retórica inflamada e delirante está a frustração de um setor da classe dominante inglesa frente ao fato de que a potência imperialista perdeu seu império, mas não seus sonhos de grandeza, em um mundo onde as tensões geopolíticas e nacionalistas mais reacionárias estão crescendo. De fato, este mesmo discurso de “ultraje exagerado” está presente também na retórica de Donald Trump ou de Salvini.

O’ Toole deixa colocada uma contradição, ainda que não tem o objetivo de aprofundá-la neste livro. O fato de que o Brexit conseguiu a anômala confluência deste nacionalismo reacionário inglês (não britânico, porque na Escócia, Irlanda do norte e Gales a situação é diferente) com o mal estar e o descontentamento da classe operária. Uma classe operária que se sentia abandonada pelo establishment, açoitada pelas políticas neoliberais promovidas por Bruxelas, enquanto o velho Estado de bem-estar era desarticulado e as zonas industriais viam brotar pobreza.

Finalmente, ainda que O’Toole deixa claro que nem a Grã Bretanha, nem a Inglaterra, são territórios “colonizados” pela União Europeia, ao mesmo tempo sinaliza que a raiva com a União Europeia de parte de grandes setores da população não é uma psicose mas um indício de saúde mental. Nada menos que 123 milhões de pessoas na União Europeia se encontram em risco de pobreza (um quarto da população). “Um sistema político que impõe um sofrimento absurdo a alguns dos seus cidadãos mais vulneráveis por meio da chamada ‘austeridade’ tem uma moral retorcida”. [3]

Uma menção a parte merece o capítulo dedicado ao ascenso de Boris Johnson como promotor chave do Brexit entre os tories (o livro foi escrito antes da sua eleição como primeiro ministro britânico). Com o título freak “Uma jarra de cerveja, um saco de batata frita com sabor de coquetel de camarão e duas bolsas de fezes de cachorro, por favor”, nos apresenta a figura de Boris Johnson desde que trabalhava como correspondente de um jornal inglês em Bruxelas até sua conquista do Partido Conservador, depois das sucessivas derrotas auto-infligidas de David Cameron e Theresa May. Batatas fritas com sabor de coquetel de camarões? Para saber porquê foram tão importantes para o Brexit deveriam ler o livro de Fintan O’ Toole.

Notas de rodapé

[1] Fintan O’ Toole, Un Fracaso heroico. El brexit y la política del dolor (Capitán Swing, 2020), Madrid

[2] Ibídem

[3] Ibídem

 
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