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CINEMA
Coringa: a loucura de uma época e a necessidade inquestionável do fim do capitalismo
Amanda Navarro

Coringa se lança como um símbolo da catástrofe capitalista, da irracionalidade deste sistema e da perspectiva irrisória de transformação da sociedade por vias pacíficas. As saídas de direita e esquerda se abrem e nos colocam para refletir.

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O Coringa (Joker) é um dos vilões mais famosos do mundo dos quadrinhos e do cinema. Produzido pela DC Comics, apareceu pela primeira vez em Batman #1 na década de 40. Desde então, o personagem foi reinventado por uma série de produtores de cinema e interpretado de diversas formas, que a despeito de suas diferenças, tentavam manter o núcleo duro do personagem: sua loucura.

Amplamente retratado como um estrategista do crime, é impossível pensar no Coringa por fora da sua relação com o Batman. Fruto de Gotham City, cidade degradada e violenta que habitam Batman e Coringa, além de outros importantes arqui-inimigos do justiceiro como Pinguim e Duas caras, a relação entre o produto social e as personagens expõe uma série de reflexões e críticas acerca dos personagens.

Dentre as milhares de atuações de Coringa e suas mais diversas características, o filme de Todd Phillips lançado em outubro de 2019, onde o personagem histórico dos quadrinhos é interpretado por Joaquin Phoenix, traz um elemento marcante que não pode ser avaliado por fora de uma visão profunda do momento histórico e da crise capitalista que atravessa o mundo. Tampouco pode ser avaliado por fora dessa relação entre Batman e seus inimigos.

É importante partir, então, que Batman não pode ser lido como um “simples herói” e sim como um justiceiro, o que já de antemão nos coloca uma importante característica deste personagem que dialoga permanentemente com seus inimigos. Batman, que nos quadrinhos é Bruce Wayne, é um dos homens mais ricos de Gotham City, herdeiro de Thomas Wayne, assassinado por um criminoso na calada da noite. Bruce Wayne passa a ser um combatente do crime em sua cidade natal, utilizando dos bens materiais que dispõe para enfrentar aqueles que “tiram a paz” dos cidadãos de Gotham.

Na contramão disso, os “vilões” que surgem para apimentar as tramas de Batman tem todos um elemento em comum: a loucura. Desde a mulher-gato, uma jovem órfã desde menina, que morava sozinha em condições de penúria e que, ao longo de sua história foi desde uma ladra de joias e prostituta; até Coringa, que dentre as diversas origens, é fruto da barbárie de Gotham e do prazer inerente em descontar na sociedade sua insanidade.

O filme inicia com uma narração acerca de uma greve massiva de trabalhadores da coleta de lixo da cidade e a mídia ataca os trabalhadores afirmando que a cidade encontra-se em estado calamitoso com lixos e ratos para todos os lados.

Não é apenas no plano de fundo que se manifesta o caos social de Gotham: Arthur Fleck, o coringa, trabalha como palhaço para uma empresa fazendo propaganda com placas para comércios. A primeira cena mostra a barbárie social que avança não só sobre a cidade enquanto espaço geográfico, mas também contra os indivíduos: meninos perseguem e agridem brutalmente Arthur, que não entende o porquê alguém faria tamanha crueldade.
A resposta de seu patrão é culpabiliza-lo por ter apanhado e descontar o valor da placa, que foi quebrada durante a agressão, de seu salário miserável.

Em casa, Arthur mora com a mãe inválida, Penny Fleck, sendo responsável pelos cuidados mais mínimos: alimentar e dar banho. Em um apartamento no subúrbio, Arthur e sua mãe relatam a necessidade iminente de melhores condições de vida, o que leva Penny a enviar cartas pedindo ajuda para seu ex-patrão, Thomas Wayne.

O cenário de miséria da vida de Arthur é muito similar ao que milhares de famílias passam hoje pelo mundo afora. As violentas crises e erupções na luta de classes, desde os coletes amarelos na França até as explosivas manifestações do Equador, são reflexo do avanço de governos neoliberais que arrancam o sangue e suor dos trabalhadores para escoar as consequências a crise capitalista.

É impossível, portanto, ignorar a existência de uma contradição de classe brutalmente violenta no contexto do Batman e do Coringa, bem como o que cada personagem representa historicamente. As degradações sociais, políticas, econômicas, assim como suas expressões no subjetivo das massas, que nem sempre respondem à esquerda, como o filme virá mostrar, é fundamental para entender o que Todd Phillips quer dizer com este filme quando completamos 11 anos desde que explodiu a crise capitalista.

A loucura: crise orgânica e o espírito de nossa época

Há quem diga que Coringa está incitando movimentos “incels” ou “alt-right”, inspirado na extrema-direita nos EUA que quer responder à crise retomando elementos fascistas, como observado nas passeatas supremacistas Charlottesville. Por outro lado, há quem diga que o filme incita violência gratuita e deliberada contra ricos, com o direito de mandar o Coringa “ir para cuba”.

Em tempos onde tudo é comunista, é preciso ser taxativo: não, coringa não é comunista ou revolucionário. Mas, de outro lado, é preciso ser categórico e dizer: não, coringa não é uma alusão ao avanço fascista no mundo.

Dada as proporções, é preciso questionar dialeticamente tanto a loucura da personagem no filme de Todd Phillips, bem como a relação da sociedade com a loucura.

Com um perfil psicótico, Coringa nos coloca um questionamento sobre as doenças mentais e suas consequências, que avançam catastroficamente no mundo. Atualmente, a cada 40 segundos uma pessoa se mata no mundo e os maiores acometidos são os jovens. O debate de saúde mental toma corpo e confunde-se a cada dia com as ganâncias da indústria farmacêutica que medicam desenfreadamente os indivíduos.

Isso Coringa mostra. Arthur Fleck toma 7 medicamentos diferentes, e inclusive, chega a pedir para que a assistente social solicite ao médico que aumente as doses. Frequentando a assistente social, Arthur coloca seus pensamentos suicidas e negativos em um caderno, junto a suas “piadas” e depois de algumas consultas, coloca para a assistente que ela “não ouve” as coisas que ele diz. Em certo ponto, a assistente notifica Arthur que o programa que o atende irá fechar e que as pessoas os tratam, ambos em suas diferentes esferas sociais, como lixo.

É sintomático que, ao passo que avança ferozmente a indústria psiquiátrica, os desmontes de serviços públicos de atendimento psicológico se mostrem forte neste filme. Sem remédios, Arthur começa a delirar sobre uma relação, posteriormente perde o emprego e se sente lesado por um colega de trabalho. Somado a isso, e inclusive como ponto crucial da caminhada de Arthur, o personagem descobre que sua mãe mentiu sobre Thomas Wayne ser seu pai e que tinha sido abusado física e sexualmente pelo namorado de sua mãe, com permissão da mesma.

A figura materna, que socialmente se manifesta como a proteção divina, como o amor incondicional, é totalmente quebrada para Arthur, quando descobre que aquela que deveria protegê-lo entregou ao seu algoz. Arthur foi violentado brutalmente e amarrado em um radiador, e assim foi encontrado e resgatado. Neste momento, há um giro drástico e toda loucura até então contida se transforma em violência vingativa.

É importante notar que a construção do surto de Arthur condiz quase de forma inerente às condições miseráveis de vida e subjetiva que se vão se construindo ao longo da trama. Em tempos de desmonte da Saúde Pública e das políticas de saúde mental, como os CAPS no Brasil, bem como a força com que comunidades terapêuticas geridas por Igrejas e constantemente acusadas de tortura contra pacientes psiquiátricos, é preciso entender a relação entre as condições materiais e a potencialização das doenças psiquiátricas.

Arthur Fleck e sua loucura: quando não se é possível mudar a realidade muda-se sua leitura

A marca que fica em Coringa não pode ser vista de maneira tão binária quanto críticas tem colocado nas mídias. A loucura de Arthur, que busca constantemente se integrar e aprender a ler a sociedade como os ditos “normais” fracassa sempre que tenta.

Na esperança de ser comediante, Arthur busca sempre entender como a sociedade é para tentar se encaixar. Frequentando stand-ups, Arthur anota sobre o que os comediantes da casa acham graça, como se portam ou fazem piadas. Busca vias de se parecer com o “comum”, ainda que não entenda, rindo muitas vezes das coisas que “não tem graça”. A piada, um dos recursos mais complexos e sagazes para ler a realidade, carrega consigo uma leitura da mesma. Não é a toa que temos “grandes” comediantes de direita e também de esquerda, cada qual lidando e interpretando a realidade como vê.

Como um bom psicótico que é, Arthur não lê a realidade como os demais. Sua dificuldade reside em entender como ela funciona e de entendê-la da forma mais literal. Um dos momentos mais marcantes se mostra quando tenta fazer uma piada ao ser demitido e destrói o relógio de ponto. Nenhum dos trabalhadores acha graça, ao contrário, ficam assustados, mas Arthur quis dizer algo, que para ele, era engraçado.

Ao longo do filme, centenas de momentos se desenham tais como este. Ao assassinar 3 jovens de Wall Street, Arthur se justifica nas cenas finais afirmando que “eles não mereciam viver, não sabiam nem cantar”. É importante marcar que ele não está “sendo engraçado”, ele está sendo ele mesmo, ao ler a realidade tal como ela lhe parece ser. Quando diz que não sabiam cantar e que, por serem maldosos, não mereciam viver, Arthur mata literalmente por entender o mundo sob esta chave.

O questionamento central então deve residir no seguinte fato: porque uma sociedade, que se coloca nas ruas em manifestações massivas, passa então a se identificar com um psicótico?

A realidade de Gotham é indigesta e impiedosa. A crise, o desemprego e as miseráveis condições de vida explodem na cidade. Contudo, a transformação do coringa em um “símbolo” deste movimento de massas mostra a falência estratégica brutal, e junto a isso, mostra que em tempos de crise é mais fácil mudar a leitura da realidade do que ela por si mesma.

As respostas reacionárias e a explosão do sentimento agressivo reprimido numa população que perece enquanto a burguesia local come bem, se veste bem e vai ao cinema, é o mais alto grau da degeneração social imposta por uma crise que não se resolve e não tem perspectiva de se resolver.

Neste sentido, a morte dos garotos e Thomas Wayne refletem um dos piores algozes atuais: Donald Trump. Em uma clara alusão à Trump, Thomas Wayne representa a burguesia que hoje comanda o mundo e que extrai dos trabalhadores e da população tudo que é possível, enquanto goza do mais alto “bem estar”. O ódio contra essa burguesia expressa que, a cada dia que se passa, as contradições de classe se tornam cada vez mais concretas, à despeito do quando se negue e pondo abaixo teorias de que o capitalismo triunfou, e que as classes se dissiparam. Ao mesmo tempo, que Coringa enquanto símbolo deste ódio mostra que a crise instalada se resolverá e o caminho, se à esquerda ou não, está em aberto.

O Coringa não é um símbolo revolucionário: ele é o símbolo da catástrofe capitalista, da irracionalidade deste sistema e da perspectiva irrisória de transformação da sociedade por vias pacíficas, reconstruindo pactos pelas democracias burguesas mundo afora.

O caos capitalista e a crise que se arrasta exigem resposta e as saídas devem se construir como saídas de força. É preciso pensar no caminho para construir uma resposta sob uma estratégia revolucionária, por fora do terrorismo individual ou da barbárie generalizada. O futuro bate à porta e nos espanca: é pra ontem uma saída verdadeiramente revolucionária que ponha fim à exploração de uma classe sobre a outra.

 
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