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ACORDO COMERCIAL UE-MERCOSUL
As promessas irrealizáveis do livre comércio
Esteban Mercatante

Sobre a assinatura do tratado de livre comércio entre o Mercosul e a União Europeia (UE), debatemos o papel que tem tido a abertura comercial na ordem mundial capitalista e as possíveis ilusões de “se abrir ao mundo” como via para a prosperidade vendida por Macri e pelos liberais.

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Os liberais e neoliberais −de Milei até Macri− sustentam que o livre comércio é o elemento central para alcançar o esquivo desenvolvimento nacional. A decadência argentina se explicaria em uma medida não menor por ter se “fechado” ao mundo. Como demonstração, destacam que as exportações argentinas representam apenas 0,3% do total mundial, quando há 50 anos chegam aos 0,8% e no meio do século passado equivaliam a 1%. As nações mais prósperas, dizem, são as que abraçaram o livre comércio.

Há já mais de 20 anos, Ha-Joon Chang analizou em Retirar a escada como os países que chegam a se fazer ricos, as potências imperialistas, o fizeram através de políticas muito diferentes deste livre comércio. Após ter conseguido, concentraram seus esforços em impor ao resto do mundo as políticas contrárias às que lhes permitiram chegar a suas posições. Uma realidade bem distinta destas defesas feitas na Argentina por aqueles que querem reduzir o panorama do que virá após o tratado com a UE (que ainda tem um longo caminho para se concretizar) a uma fissura entre setores “viáveis” e “inviáveis”, na qual, como afirmou o rei da soja “é necessário deixar que alguns setores desapareçam”. Que pereçam os setores menos competitivos seria o preço a pagar para ter uma economia mais produtiva de conjunto. Se desaparecem alguns, ganhamos todos.

Comércio internacional e desenvolvimento desigual

A premissa dos impulsionadores da abertura comercial é que esta dá origem a um crescimento do volume comercializado, ou seja, a uma maior atividade econômica, e que isso potencializa o crescimento (e o desenvolvimento) de todas as economias envolvidas. O primeiro seria certo quase que por definição: se existem menos travas não existem motivos para pensar que não vá existir mais comércio entre países, ainda que não seja mais do que uma parte do que já era antes produzido e vendido dentro de cada país agora pode ser substituído parcialmente por mercadorias importadas. Mas o comércio internacional sob os termos do capital não faz milagres, não garante nenhuma convergência em termos de desenvolvimento entre países que se caracterizam por assimetrias marcadas em sua capacidade produtiva pelo simples fato de fazerem comércio entre si. Muito pelo contrário, a redução de restrições comerciais e tarifas assegura que os mais produtivos façam pesar com tudo suas vantagens.

A renda per capita da UE é de $34.000 contra $8.400 como média entre os países do Mercosul. Enquanto o primeiro bloco é composto por alguns países que tem os maiores níveis de produtividade de trabalho do mundo, a média do rendimento de trabalho no Mercosul é um terço do que é alcançado pela Alemanha. Qual consequência tem essa brecha de produtividade? Significa basicamente que os custos pela unidade de produto são muito superiores aqui porque, considerando a equivalência de todo o resto, cada peso (ou euro) investido na produção no Brasil ou na Argentina, “rende” em termos do produto um terço do que o faz por lá. Por isso, apesar dos capitais da indústria ou dos serviços na Alemanha (ou França e até mesmo Espanha, que tem 77% da produtividade do país governado por Merkel) enfrentarem custos salariais muito mais elevados, na maior parte dos ramos podem fazer pesar sua vantagem produtiva nesta competição “de igual para igual” imposta pela abertura comercial.

Por isso, os setores do Mercosul podem tirar sua vantagem naqueles setores da produção primária que são favorecidos seja pela abundância de recursos naturais exploráveis com custos competitivos, e nos que não afrontam competição com suas contrapartidas europeias (o que inclui também atividades que os países imperialistas freiam dentro do seu território pelos efeitos nocivos sob o meio ambiente, e que florescem nos países dependentes), ou naqueles ramos onde pode pesar a diferença de salários de tal forma que compense as diferenças de produtividade. Por sua vez, onde os capitalistas da UE façam pesar sua vantagem produtiva (indústria, serviços), os capitais locais ficarão de fora da competição. Se já antes deste acordo o governo Macri falava de uma necessária “reconversão” para 20% da indústria (uma porcentagem equivalente ao emprego na manufatura), com o avanço deste tratado isso pode mais que aumentar. Mais ainda considerando que as assimetrias produticas se somam a todas as diferenças em matéria financeira (na Argentina a taxa de juros para a maior parte dos capitais supera os 80% anuais e na UE é de 2%), de infraestrutura, etc.

Pode acontecer, e seguramente assim será, que os dois blocos vejam suas exportações melhorarem graças à vigência do tratado de livre comércio, se este chega a ser concretizado. Mas isso pode ir de mãos dadas a um aumento, e não de uma redução, dos diferenciais de desenvolvimento que hoje existem. Não deveria surpreender-nos. O comércio internacional levado a cabo sem restrições (ou com poucas restrições), não faz mais que traduzir ao terreno internacional as leis que regem a competição que caracteriza a produção capitalista de mercadorias: os capitais mais competitivos se impõe sob o restante, os arrebatam do mercado e eventualmente os substituem na produção. Como afirma corretamente neste ponto Anwar Shaikh, “o comércio livre é um mecanismo para a concentração e centralização do capital internacional como o intercâmbio livre dentro de uma nação capitalista o é para a concentração e centralização do capital doméstico” [1]. Depois de mostrar todas as inconsistências da teoria neoclássica de especialização por vantagens comparativas, e mostrar como o comércio na realidade é regido pelas vantagens absolutas de produtividade, Shaikh comenta que “como regra geral os países capitalistas dominarão o comércio já que sua maior eficiência lhes permitirá produzir a maior parte das mercadorias com valores absolutamente mais baixos” [2]. O comércio internacional contribui assim a manter o aprofundamento do desenvolvimento desigual que existe entre os países imperialistas e as economias dependentes e semicoloniais com suas diferentes gradações e não atenuá-lo.

O imperialismo do livre comércio

A mera honestidade intelectual nos obriga dizer que os EUA favorecem o multilateralismo e não a discriminação comercial nas áreas onde tem uma posição competitiva forte; mas recorrem a subsídios, protecionismo e discriminação nas áreas nas quais sua competitividade é débil”. Isto afirmava o embaixador dos EUA em Londres, em agosto de 1949 [3]. O imperialismo, que naquele momento impulsionava a abertura comercial agressiva no mundo “em desenvolvimento” admitia que sua prática nas áreas sensíveis era muito mais seletiva.

Desde o final da II Guerra Mundial, a integração comercial foi uma política empurrada pelo imperialismo norteamericano, exigindo baixas tarifárias de todos os países e menos travas ao comércio para fornecer o avanço das relações de produção capitalistas (e sobretudo de suas empresas transnacionais) em todo o mundo. Com este fim colocaram em marcha as negociações multilaterais do GATT (Acordo Geral sobre Tarifas Aduaneiras e Comércio, GATT pela sigla em inglês), logo substituído pela Organização Mundial do Comércio (OMC), e numerosos tratados bilaterais ou entre os blocos. O imperialismo ianque, que hoje com Donald Trump eleva uma retórica contrária à globalização mas não por isso deixou de renegociar agressivamente em seu favor o tratado comercial com o México e o Canadá, foi secundarizado na pressão de abertura contra os países dependentes pelo resto das potências, a UE e Japão. A cenoura oferecida pela abertura economica às economias “em vias de desenvolvimento” ou “emergentes”, palavreado dos organismos multilaterais para fazer referência aos países dependentes e semicoloniais, era eliminar as restrições para o acesso aos mercados das potências, com consumidores ricos e mercados muito mais volumosos que os dos países mais pobres. Mas, criando condições favoráveis para o capital mais competitivo, 9 em cada 10 vezes os benefícios eram para as empresas dos países imperialistas. A abertura era um meio de expansão das multinacionais em todo o mundo. Caso a vantagem econômica e financeira dos países mais ricos não fosse suficiente para garantir este resultado, garantir o controle do manejo da abertura em determinado setores as reforça.

No caso da UE, a cenoura é a abertura do seu mercado de 513 milhões de habitantes para os produtos dos países do Mercosul. Em troca, os capitais da UE se assegurarão que o Brasil, a Argentina e o restante dos sócios decidam de maneira não apenas voluntária, mas entusiasta, as medidas que permitam que o comércio aconteça em condições que serão formalmente de igualdade e com poucos atenuantes, em quase todos os ramos, o que significará na realidade um campo inclinado à favor dos capitais europeus na maioria dos rubros. No acordo assinado no dia 28 de junho, o que teve de ser “sacrificado” pela UE é muito menos do que o que ganha. Os capitais da UE terão em termos de economia pelas tarifas (ou seja, barateamento líquido dos seus produtos para ingressar no Mercosul com a média atual de volumes comercializados) um benefício de 4 bilhões de euros por ano. Isso seria o que barateariam seus produtos para entrar no Cone Sul, considerando o volume comercializado hoje. O Mercosul teria um ganho dez vezes menor (400 milhões de euros). Esta notável diferença entre o que ganham uns e outros ocorre apesar do comércio dos dois lados ser quase igual, com um saldo deficitário para o Mercosul. A UE vendeu $ 51.200 em 2018 e comprou $ 48,4 bilhões. O que ocorre é quase 60% do que exporta o Mercosul à UE já tem tarifa zero. O resto recebe uma alíquota média de 2,6%. Por outro lado, os capitais que exportam da UE ao Mercosul tem taxas de 89% no que vendem, e a média da alíquota chega a 10%. Como na realidade é muito provável que os europeus venam mais, o benefício real poderia superar folgadamente esta cifra.

Mas tal e como acontece nas rodadas comerciais da OMC, não se trata somente de comércio. Os tratados incluem garantias para a proteção de investimentos das multinacionais, o recurso de cortes internacionais para os litígios que possam emergir e a ampliação de direitos de patentes. Neste último capítulo, até o momento a UE não conseguiu o que esperava, ainda que, segundo reconhece a chanceler em novo documento publicado na sexta-feira, o acordo aprovado “cria uma estrutura com compromissos mútuos, que reafirma os direitos e obrigações sob o Acordo ADPIC da OMC”. ADPIC são as siglas para o Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual relacionados ao comércio. Foi negociado em 1994 e se estende a temas que ultrapassam em muito o comercial, garantindo nos países signatários os direitos de propriedade intelectual e patentes das empresas imperialistas.

Também abre a possibilidade de que as empresas europeias compitam em licitações nacionais (não estaduais, nem municipais) de obras públicas e compras de produtos e serviços que superem os $ 1,2 milhões. Deixará de estar em vigor o "compre nacional" e as empresas locais deverão competir de igual para igual com as europeias. Mas além disso, para vender à UE haverá que adequar-se a numerosas normas de qualidade e sanitárias estabelecidas por esse bloco, que implicam mudar toda a forma de produção, e que estão feitas sob medida das grandes multinacionais europeias que são as provedoras que melhor se adequam ao standard exigido por este clube dos países ricos.

Corrida ao abismo

A ideia de que o livre comércio sob as regras do capital é chave para a riqueza, como sustenta o relato macrista de “voltar ao mundo”, é desmentida pela prática seletiva das potências, mas também pelos casos de países apresentados como “exitosos” pela sua inserção exportadora das últimas décadas. A nova divisão internacional do trabalho, que foi impulsionada pelas empresas dos países imperialistas para beneficiar-se da disponibilidade da população operária potencialmente empregável pagando baixos salários fora dos países imperialistas, se traduziu em abundantes investimentos, sobretudo no Sudeste asiático. Pouco tem a ver o “êxito” destes países, que mais bem foi apropriado pelas empresas imperialistas que protagonizaram a relocalização da produção e concentração de seus a seus benefícios, com abraçar o livre comércio. Países como a Coreia do Sul, um dos exemplos que se aproximou a níveis de riqueza elevados (sem evitar as características de economia dependente como uma importante penetração imperialista, aprofundada após a crise asiática de 1997), recorreu a numerosas políticas de proteção para estimular sua indústria desde os anos 1950. Favorecida pela geopolítica da Guerra Fria, contou com apoio imperialista para fazê-lo. Foi sob estas bases que se apoiou em parte o boom exportador e a posterior capacidade de atrair ramos industriais que abandonavam os países imperialistas. Sem mencionar a China, aberta comercialmente mas bastante ciumenta no que diz respeito ao acesso estrangeiro às empresas que considera estratégicas.

Em segundo lugar, os benefícios desta integração comercial podem ter sido bons para alguns setores do empresariado e para as contas externas dos países que conseguiram crescer em base à exportação (ainda que a ganância de dólares de vendas ao exterior foi das mãos de um maior peso do capital estrangeiro que monopolizou uma porção das divisas para girá-las como utilidades às suas casas matrizes), mas não para a classe trabalhadora. Certamente não para a dos países dos quais aconteceu a deslocalização: o estancamento salarial desde os anos ‘80 nos países imperialistas é resultado deste processo. O mesmo ocorreu no restante do mundo. O “êxito dos países que iniciaram primeiro o crescimento baseado na exportação industrial garantida por uma força de trabalho explorável por salários muito baixos, levou a numerosos esforços para imitar este “modelo”. Fazê-lo levou a uma competição entre os países para oferecer ao capital internacional as condições mais favoráveis: salários baixos, limitação dos direitos de sindicalização. A circulação de mercadorias cada vez mais livre, uma norma das últimas décadas, não se traduziu na mobilidade das pessoas, que pelo contrário continuou numerosamente vigiada (e estigmatizada atualmente pelas direitas anti-imigrantes que vêm ganhando peso nos países imperialistas), operou como mecanismo para que os capitalistas de todo o mundo forçassem uma competição entre suas forças de trabalho, uma verdadeira “corrida rumo ao abismo” na qual cada concessão arrancada pelos patrões em algum lugar deveria ser rapidamente imitada pelos demais, sob risco de ficar deslocalizado em matéria de “competitividade”.
México é um exemplo evidente. Desde a entrada em vigência do acordo de livre comércio com os EUA e Canadá (NAFTA) em 1994, viu o ritmo de crescimento de seu PIB per capita cair em comparação aos anos anteriores.

Macri e Bolsonaro poderiam sonhar que o Mercosul se integre com êxito a esta corrida, como alguma vez Carlos Menem aspirou impor na Argentina um nível de flexibilização trabalhista como o que tinham países como a Malásia nos anos 1990. E na Argentina o anúncio do acordo já colocou novamente em marcha as tentativas de avançar com mais reformas trabalhistas. Mas ainda que com todo este pacote, e apesar da desvalorização dos salários registrada durante 2018 graças à subida do dólar, está longe de alcançar a conversão dos países do Mercosul em um polo de atração para os investimentos das multinacionais. A “chuva de investimentos”, para tudo que não sejam commodities do agro, hidrocarbonetos ou mineração, deverá seguir esperando.

A política dos fatos consumados

A ponto de concluir seu mandato, e sem garantias de reeleição, Macri colocou a assinatura de um tratado que deverá ser ratificado pela próxima administração. A partir da oposição, Alberto Fernández fez advertências sobre as consequências do tratado. Mas se o passado serve de lição, apesar das correções colocadas hoje, um governo peronista é a garantia da continuidade do que foi acordado. Como sinaliza Agostina Constantino, durante 2003-2015 a Argentina “se manteve dentro do sistema de direitos corporativos que organiza os movimentos de capitais globais, desestimando alternativas” [4]. Ou seja, seguiu com os Tratados Bilaterais de Investimentos, manteve a prorrogação de jurisdição (que habilita tribunais como o CIADI), que foram inclusos em acordos como o de Chevron, uma verdadeira entrega dos recursos petroleiros à multinacional ianque assinada em 2014 (para avançar com o fracking rechaçado por amplos setores da população das zonas vizinhas de Vaca Muerta pelos seus impactos ambientais).

O tratado entre a UE e o Mercosur não fará mais que reforçar a dependência, consolidando a disciplina do capital global e a capacidade das multinacionais em ganhar posições na economia e abrindo a porta para acordos de teor similar. O rechaço ao mesmo devemos unificar à construção da força política que permita romper o ciclo vicioso, cortando pela raiz o domínio imperialista e transformando a economia desde as bases em função não do lucro capitalista, mas das necessidades sociais longamente adiadas. Para batalhar por um mundo onde a integração possa ser a via para alcançar um verdadeiro bem-estar, ou seja, a unidade socialista, começando pela América Latina e com a perspectiva de um mundo verdadeiramente sem fronteiras, nem para as mercadorias, nem para as pessoas.

Notas

[1] Anwar Shaikh, Valor, acumulación y crisis, Bogotá, Tercer mundo editores, 1990, p. 199.

[2] Ídem.

[3] Citado por Henry Pelling y Michael Cox en Britain and the Marshall Plan, Londres, Macmillan, 1988, p. 84.

[4] Entre la década ganada y la década perdida. La Argentina kirchnerista. Estudios de economía política, Buenos Aires, Batalla de Ideas, 2018, p. 93.

 
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