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Game of Thrones
Daenerys e seu fim inesperado por muitos: conclusões que podemos tirar
Luciana Vizzotto

Alerta de textão político com spoilers de GoT. Com esse primeiro alerta, você poderia imaginar que vou escrever sobre o – no mínimo – polêmico final de Game of Thrones e sobre o personagem "sem sal" que levou o trono. Poderia falar também sobre o suposto "contingenciamento" (já que não se pode mais falar em "corte" por aqui) das verbas à produção da série após o Brexit, que teriam encurtado a produção e afetado a evolução da história. Poderia falar sobre a insatisfatória morte de Cersei, a ascensão da (grande, em minha opinião!) Sansa ao trono “liberto” do Norte, ou sobre muitas críticas populares em relação aos produtores e suas pitadas "a la Disney" na última temporada. Mas vou falar do que mais chocou os fãs: a dita "transformação de Daenerys em vilã". E isso tem a ver com política? Com certeza.

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A revolta geral vem por um fator muito simples, profundo e compreensível: Dany era amada por – quase – todos. Por conta de sua fortaleza e determinação mostrada desde o início, por sua história de superações, por ser uma mulher que não aceitou ser "escravizada, vendida e estuprada" e "ter fé em si mesma", como ela diz em um episódio. Mas pra além de tudo isso, amada por ser a "quebradora de correntes", a mulher que queria fazer justiça para os mais oprimidos, explorados e injustiçados "pela roda" dos lordes. Um sentido de justiça que está em muitos de nós que nos sentimos injustiçados pelos políticos e senhores todos os dias. Como pode a personagem que representa a liberdade e a justiça, então, no final da história, executar uma cidade inteira, matando mulheres, idosos, crianças, inocentes em nome daquele poder que serviria à justiça? A surpresa e ira no rosto de Arya andando por King’s Landing passaram a estar nos nossos rostos. Que absurdo, que está acontecendo com a rainha?

Pois é. Tyrion, em diálogo com Jon, nos aponta uma resposta (não toda, mas muito importante): "quando ela matou os donos de escravos de Astapor, os nobres de Meereen ou queimou os khals dothrakis, ninguém questionou, eram homens maus. E nós a enaltecemos e a idolatramos, e assim ela se tornava mais poderosa e certa de sua justeza". Aí vemos uma ideia: a de que a idolatria a uma pessoa como salvadora de todos pode ser perigosa. Se uma única pessoa é responsável por fazer justiça como bem entende e a partir de seus próprios critérios, e é adorada por isso, como controlar?

Toda a trajetória de Daenerys Targaryen e dos escravizados de Essos nos é mostrada, entretanto, por um olhar que não podemos ignorar: o de uma produtora capitalista multinacional que é a HBO. Jamais uma produção "hollywoodiana" poderia mostrar uma solução para esses povos sendo construída por suas próprias mãos. Então mesmo que tenham sido, e isso aparece na série, os próprios escravos que tenham se sublevado, com a liderança de Daenerys, contra os senhores e feito a sua liberdade, a produtora tinha que colocar uma filha de oligarcas, com nome e herança ao poder, como a ÚNICA responsável por tal feito (a cena da personagem sendo carregada nos braços pelos ex-escravos aos gritos de “mhysa” na terceira temporada é uma forte ilustração disso). Não podem alimentar no telespectador a ideia de que se juntar aos seus companheiros pode fortalecê-lo contra o seu "mestre", e de que pode haver líderes políticos que lutem pelo protagonismo das massas; devem passar a ideia de que sempre vai ter alguns poucos com o real (com perdão pelo trocadilho) "direito ao poder" – ou seja, que possa fazer qualquer operação política. Retratar a mãe dos dragões mais como líder e menos como heroína absoluta, a la “Vingadores”, não seria muito uma ideia positiva para as grandes corporações.

Fiel a esses seus interesses, a produção de GoT compôs uma trajetória ao longo de toda a série bastante coerente de uma rainha heroica e implacável, que desde sempre ostentou aos sete ventos que “nasci para governar os Sete Reinos e governarei” e que “queimarei todos [atenção, todos] que estiverem no meu caminho”. Mas avançou em direção ao seu objetivo carregando a bandeira dos oprimidos, por também ter sido uma. E nessa coerência, a criação de uma personalidade cultuada e idolatrada como heroína possui paralelos fortes com a história dos oprimidos, e também vimos catástrofes acontecerem em consequência disso (entre vários outros elementos históricos que precisam ser sempre levados em consideração em cada momento, que também influenciam nestes resultados).

Um paralelo que não pode ser ignorado: a operação ideológica de Stalin, em primeiro lugar tornando o já falecido Lênin (contra a sua política) em herói das massas revolucionárias russas e em seguida transferindo o “título” para si mesmo como “herdeiro” de Lênin. Para tanto, criou mesmo um mausoléu onde o corpo do revolucionário seria adorado pelo povo russo, e somado a isso, a propaganda de exaltação a sua própria imagem. Tal operação serviu a concentração a passos largos de todas as decisões políticas da União Soviética em pequenos conselhos burocratizados, que, em última instância, passavam a responder somente a Stálin.

Assim, então, foi esgotando paulatinamente o real poder político que residia nos sovietes – conselhos dos trabalhadores –, os quais o próprio Lênin, Trotski e vários outros líderes do Partido Bolchevique defenderam até a morte (execução política) como a fundamental estratégia e método político democrático para a vitória do proletariado contra o capital e para a construção do comunismo. E justamente por esta luta que travaram junto a muitas vanguardas de trabalhadores, contra os interesses do burocrata Stálin e seus agregados, foram perseguidos e assassinados sob a acusação mais que espúria de “opositores da revolução” e “aliados do imperialismo”.

Operações ideológicas similares foram estabelecidas nas figuras de Che Guevara por Fidel Castro, por Mao Tsé Tung com seu pôster espalhado por toda a China, e outros líderes burocratas que concentravam em suas mãos todo o poder de Estados operários, conquistados pelas forças dos trabalhadores e subtraídos deles na base do “sangue e fogo”.

É claro que seria uma “forçação de barra” gigante dizer que Daenerys se equivale ou mesmo é uma imitação artística de qualquer um deles. Os processos que levaram tais burocratas da história real ao poder são muito mais complexos e cheios de elementos a considerarmos – como já tinha mencionado – do que a narrativa da personagem fictícia. No entanto, a analogia pode ser traçada por essa ideia. A atribuição de mérito político e de poder absoluto a uma figura heroica é parte da construção de figuras autoritárias e totalitárias, que decidem, de acordo com seus próprios interesses e não mais de acordo com o interesse dos povos oprimidos, quem são os “homens maus” que precisam ser combatidos. E assim enterraram revoluções em todo o mundo durante o século XX.

Um aparte sobre o desenvolvimento psicológico, igualmente coerente, da personagem também podemos fazer para entendermos o seu fim. No momento que ataca King’s Landing, Daenerys se encontrava debilitada, havia perdido dois de seus dragões e dois de seus mais leais amigos e parceiros políticos – Jorah e Missandei –, além de temer perder seu grande amor Jon. E que, em torno da figura dele mesmo, se formava já um movimento político para torná-la inviável ao trono, liderado por Sansa, e depois por Varys e mais tarde Tyrion, seus principais aliados. Via o seu grande objetivo e tudo pelo que havia lutado, de forma progressivamente cada vez mais ambiciosa e egóica, se perder. Eis o seu interesse mais central nesse momento: tomar, a qualquer custo e a custo de qualquer um, o seu poder. “O fim justifica os meios”, disse em outras palavras Dany no último episódio. A máxima do filósofo Maquiavel entra em cena sem que se pense nos inocentes e nas crianças, como todo o capitalismo, e também os burocratas espoliadores das revoluções, operam.

Dany poderia ter tido outro desenvolvimento e levado o trono? Poderia ter sido retratada como uma grande líder que propagandeava e incentivava a luta, protagonizada pelos oprimidos e explorados de Essos e Westeros, para realmente quebrar a roda dos lordes e reis? Com certeza, teria sido uma história totalmente verossímil e refletida na nossa própria história, e a imaginar um “final” vitorioso que ainda está por vir para nós. Mas jamais poderíamos esperar que o cinema capitalista faça isso; daí que vem a solução dada pelos produtores – odiada pela maioria – de uma suposta democracia de lordes (que é a nossa, em que os “lordes” são os que verdadeiramente decidem como nos governar) que mantém, no limite, a roda como sempre rodou.

 
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