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29 DE AGOSTO
Revolução nas ruas, nas casas e nas camas!
Ana Carolina Fulfaro
Mariana Galletti

No dia 15 de agosto, o grupo Pão e Rosas chamou uma discussão intitulada ”Revolução nas ruas, nas casas e nas camas”, na Unesp de Marília, para debater capítulos do livro “A nova mulher e a moral sexual” de Alexandra Kollontai. Segue considerações acerca do debate realizado e das contribuições trazidas pela revolucionária russa para a construção de uma nova sociedade e de novas relações entre as pessoas, livre das amarras sobre nossos corpos e mentes.

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A mercantilização da sexualidade

No sistema capitalista, tal como defendem Marx e Engels em A Ideologia Alemã, a classe dominante, ou seja, a classe que detém os meios de produção materiais, também detém os meios de produção das ideias. Desse modo, "as ideias dominantes de uma época são as ideias da classe dominante". As relações construídas pelo modo de produção capitalista determinam, portanto, de que forma se dão as trocas não materiais dentro do sistema capitalista.

No âmbito da sexualidade, essa constatação é bastante evidente. Assim como nesse sistema a produção passou a ser em massa, produzindo todo um modo de vida de consumo desenfreado e de fetiche das mercadorias, tudo se tornou mercadoria – até os corpos, as pessoas e as relações. Andrea D’Atri em seu “Dossiê Pecados & Capitais” , mostra o quanto tudo o que antes era relegado à vida privada, ao espaço doméstico, no capitalismo foi escancarado e tornado fonte de lucro para os burgueses. A indústria do sexo, constituída pela pornografia e pela prostituição, é uma das mais lucrativas, movimentando bilhões todo ano, tanto legal quanto ilegalmente, tendo como base o tráfico de pessoas e a prostituição forçada.

Nunca ouvimos falar tão abertamente de sexo e os corpos nunca foram tão expostos. As mulheres cis [1] falam entre si sobre isso, trocam dicas, compram utensílios para “sair da rotina”, as revistas vendem com as informações sobre “50 posições para surpreender seu companheiro na cama” estampadas em suas capas, meninas e adolescentes têm suas primeiras experiências sexuais cada vez mais cedo. Mas qual é a experiência sexual vendida? Existem normas e claras prescrições: como satisfazer o seu homem? Como ser atraente pra ele e melhor do que ela? A experiência sexual nos ensinada diariamente é totalmente heteronormativa, ou seja, focada na relação entre pessoas de gêneros distintos (tendo como referência a separação binária entre homens e mulheres), e voltada para a realização do prazer masculino.

É o que essas revistas e a pornografia hegemônica mostram para as meninas e, sobretudo, para os meninos quando estes vão ter seus primeiros contatos com a sexualidade. São comuns os casos em que os meninos têm sua vida sexual iniciada sob influência dos familiares, que incentivam o contato com a pornografia e com a prostituição, ao contrário da educação feminina, que costumeiramente é direcionada ao “bom comportamento” do “fecha a perna”, “olha o tamanho da saia”, “mulher tem que ser delicada”. Dessa forma, é comum que os meninos se masturbem e experimentem o seu corpo mais cedo. E é comum também meninas e mulheres que nunca se masturbaram, que não conhecem seu corpo, não sabem da função do clitóris – que, inclusive, é o único órgão do ser humano cuja única função é estimular o prazer – ou sequer que um corpo feminino (cis*) pode liberar fluidos no momento do orgasmo: ou seja, que podemos gozar!

Diariamente, somos bombardeados com o incentivo ao estupro: são as piadas, os comerciais de televisão, as novelas, os assédios diários que colocam os corpos das mulheres enquanto mercadorias a serem consumidas ou enquanto meros adornos para os homens (cis*). E, para tanto, a responsabilização da mulher nos casos de assédio também é algo naturalizado. São rotineiros os comentários: “ela tá pedindo para ser estuprada”, “olha o decote, o tamanho da saia”, “bebeu demais”, “as mulheres hoje em dia não se dão o respeito”. Quanto ao homem, seu comportamento é tratado como patologia, como se o estuprador tivesse simplesmente um problema individual que justificasse os seus atos. Sendo, na verdade, alguém que colocou em prática o que a todo momento é incentivado através da mídia, da escola e da família: o olhar que despe, a relação utilitária, a violação de maneiras diversas, o estupro.

Os LGBTs [2] por sua vez têm sua sexualidade e gênero invadidos de diversas formas: seja pelo rechaço com as piadas, a não aceitação da manifestação de afeto em espaço público, as corriqueiras incitações ao estupro corretivo, a violência física como ameaça constante nos espaços onde externalizam suas formas de ser e de se relacionar. Mas mesmo mantendo uma brutal violência, a apropriação capitalista nesse mercado da sexualidade também ocorre com o desenvolvimento do Pink Money. A partir de um mercado de consumo de música, pornografia e estilos que pretendem enquadrar gays e lésbicas, há a venda da aceitação e reconhecimento por dentro desse sistema. Porém, não é possível emancipar a sexualidade através do consumo. Principalmente quando constatado que quem terá acesso a esse consumo será uma minoria restrita.

Outro aspecto importante acerca da construção da sexualidade é o padrão de beleza que a rege. Quais são os corpos que nos excitam e que nos atraem? Que faz com que nossa pressão mude e que os órgãos genitais se acionem? Podemos dizer certamente que é o padrão de beleza dominante, o padrão de beleza colonizador, branco europeu, de traços finos, corpos magros. No caso das mulheres, principalmente, são corpos “violões”, com peitos e bunda “fartos”, mas nunca gordas.

São esses corpos mais desejáveis através desse padrão de beleza racista e gordofóbico que imperam. Essa é mais uma forma do racismo atuar: anular a identidade de negras e negros colocando suas características e feições como inferiores e feias. No caso da sexualidade, há uma forte sexualização do corpo negro, “mulato”, o chamado “da cor do pecado”, tido como exótico, sensual. Enquanto as mulheres brancas são as ditas “pra casar”, às negras é relegado o papel da “outra”, somente para consumo imediato. Para as gordas, por outro lado, é imposto o estigma de não atraentes, sem libido e vida sexual.

O capitalismo, portanto, opera no campo da sexualidade com uma dupla moral: do caos e da castidade. De um lado, a experiência sexual ocorre cada vez mais cedo e está cada vez mais escancarada. Mas de outro lado, nossa experiência sexual é extremamente limitada, reduzida à penetração genital, e com um peso ainda muito grande da moral cristã para “se recatar” e para termos relações heteroafetivas, onde as/os transgêneros não têm vez. Tão mecânica quanto a linha de produção.

A transformação das relações se dá através da luta!

Em um momento de profundas transformações sociais, Alexandra Kolontai e os revolucionários russos se debruçaram para pensar também na questão da opressão às mulheres e do papel da família. Identificavam que a construção do socialismo perpassa também por dar a todas as pessoas condições materiais para o desenvolvimento igualitário de suas potencialidades enquanto sujeitos políticos e de si.

Ainda que não abrangessem as questões LGBTs, por esses setores infelizmente não terem visibilidade alguma e não estarem organizados na época, suas reflexões também nos ajudam a pensar a construção da livre sexualidade e dos gêneros.

Entendiam que o capitalismo sustenta seu sistema de exploração também com base nas opressões. É parte de seu sustentáculo manter a desigualdade entre mulheres, mulheres negras, homens negros, LGBTs, pois os colocando em posições subalternas é possível aumentar os lucros da classe dominante através da superexploração desses setores, aos quais são reservados os salários mais baixos e os assédios com base em seu estereótipo no ambiente de trabalho. Além disso, esses preconceitos ainda mantêm a divisão entre os trabalhadores, que ao invés de se enxergarem enquanto classe, se digladiam com violências machistas, racistas e lgbtfóbicas.

Como dito anteriormente, as ideias dominantes são as ideias da classe dominante. Dessa forma, pensando ainda que tais preceitos se tornam concepções reproduzidas por todas as pessoas, não é de uma hora para outra, como por decreto, que as relações se tornariam livres de todas as opressões. Portanto, essas revolucionárias russas e esses revolucionários russos discutiram uma série de medidas no sentido prático de como tornar material a transformação das relações, mas também no sentido teórico, do por que da necessidade de construção de outra moral revolucionária.

Nesse sentido, houve profundas discussões acerca do papel do casamento e da família. A responsabilização das mulheres pelas tarefas domésticas, além de ser fonte de lucro para os capitalistas por ser um trabalho executado de forma gratuita para a subsistência dos trabalhadores, é também forma de impedir com que as mulheres participem dos espaços sociais e políticos. A família enquanto núcleo econômico muitas vezes prende as mulheres pela dependência econômica. Enquanto núcleo social, sobrepõe-se ao restante da sociedade, dividindo-a de forma a estabelecer um modo de vida bastante privado e individualista, sendo mais importante se algum familiar está passando por um mal estar, por exemplo, do que se existem milhares de pessoas que não têm o que comer.

Como coloca Wendy Goldman em “Mulher, Estado e Revolução” , em 1918, na Rússia, é decretado o Código da família, que passava a reconhecer somente o matrimônio civil e não o religioso, legalizava o divórcio e o tornava não mais burocrático, separava a noção de casamento e família, entre outras medidas como criação de creches, restaurantes e lavanderias públicas, como forma de tirar a responsabilização da mulher por tais tarefas e para que a “união” entre as pessoas não ocorressem por condicionantes externos, mas pura e simplesmente pela vontade dos envolvidos. Também havia um intenso incentivo para que cada vez mais as mulheres participassem dos espaços de discussão política. Os próprios legisladores colocavam: o objetivo da lei era dela própria se tornar supérflua, irrelevante, fazendo com que o Estado gradualmente parasse de interferir nas vidas das pessoas.

Kollontai discute em “A Nova Mulher e a Moral Sexual” de forma profunda qual é a moral sexual capitalista e aponta o que, para ela, eram os principais fatores que condicionam a nossa mentalidade. O individualismo extremado, a propriedade absoluta entre “o casal” e a desigualdade entre os gêneros e sexualidades, junto com a ideia de “família em primeiro lugar” vão totalmente contra as relações de camaradagem. Buscamos ter a posse absoluta do outro, não somente física, mas também mental. Muitas vezes, por exemplo, a traição é considerada mais dolorosa se ela implicar envolvimento emocional, e não meramente físico. Além disso, as mulheres (no caso das relações heterossexuais) são vistas como acessórios dos homens, e não como um sujeito em pé de igualdade. O individualismo faz com que, nesse vazio de sentido do capitalismo, busquemos na outra pessoa a completude para nossas insatisfações, com a ilusão da “cara metade”, da “alma gêmea”. Tendo tais críticas como ponto de partida, a discussão entre os revolucionários era de que o casamento deveria ser substituído por verdadeiras relações de camaradagem entre as pessoas.

As relações não mais deveriam se dar sob vínculos de dependência e de mercantilização, mas sim a partir das vontades, visando a construção de um socialismo pleno nas camas, nas casas e nas ruas – única forma de abolir desde a raiz toda forma de opressão e exploração.

Pela autodeterminação dos corpos e mentes!

A propriedade privada capitalista que perpassa também as relações que estabelecemos impede, até o fim, que os envolvidos e, principalmente as mulheres e LGBTs envolvidas, sejam sujeitos ativos de suas vidas e corpos. Como alternativa às amarras impostas pelas relações, tem-se discutido bastante as relações livres, não monogâmicas ou com “acordos” diferenciados. Não entraremos aqui nos diversos arranjos e rearranjos propostos como alternativas para as relações. Mas, a partir das condições concretas de construção da nossa subjetividade e sexualidade já expostas no texto, pretendemos apontar os limites e desafios para avançar na construção efetiva do novo, de novas relações de liberdade absoluta por um lado e de igualdade e verdadeira solidariedade entre as companheiras e os companheiros por outro.

Vivemos em um modo de produção que condiciona a forma como nos posicionamos no mundo. Temos categorias de pensamento e formas de classificação. É fundamental que haja a desnaturalização das concepções e formas de relações e que não aceitemos passivamente o que está posto, como se fosse algo natural e imutável.

Porém, é possível a libertação do indivíduo diante de todas essas múltiplas determinações por si só? É possível uma ilha de libertação plena? Na verdade, não. É necessário que desde já nos coloquemos em luta interna e externamente. Que estejamos abertos a ter experiência com novas relações, rompendo com as amarras que aprisiona nossos corpos e mentes. Mas tendo sempre em vista que enquanto esse sistema, que tem como base justamente a desigualdade e a exploração, persistir, as relações afetivas e sexuais também não podem ser livres e igualitárias, pois uma parte continuará tendo seus privilégios e continuaremos sendo educados a todo tempo pelas ideias propagadas através dos meios monopolizados da burguesia.

É preciso que não nos acomodemos com a miséria do que está dado e que nos disponhamos a combater o velho, e desse combate, fazermos surgir o novo.

[1] Pessoas cis são aquelas que se identificam com o gênero dado a elas no nascimento, de acordo com a genitália. Diferentemente das pessoas trans, que possuem identidade de gênero diferente daquela designada a elas ao nascerem, recorrendo muitas vezes a cirurgia para mudança da genitália.

[2] Aqui, focamos nas situações em comum, já que não caberia explicitar sexualidade por sexualidade por falta de espaço e pela quantidade de especificidades múltiplas.

Referências:

GOLDMAN, Wendy. Mulher, Estado e Revolução.política da família Soviética e da vida social entre 1917 e 1936. São Paulo: Boitempo e Edições Iskra, 2014.

KOLLONTAI, Alexandra. A nova mulher e a moral sexual. Tradução de Roberto Goldkorn. São Paulo: Global, 1980

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Expressão Popular.

 
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