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Entre o dezembro das ruas e o maio dos mercados
Matías Maiello
Buenos Aires

Tempos de transição na luta de classes. Uma relação de forças em questão que antecipa enfrentamentos superiores. Algumas recordações para pensar o futuro e um olhar para a situação atual desde as categorias de León Trotski.

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Relações de força

A luta de classes é o motor da história. Algumas vezes demora para engrenar, avança a passos lentos, as mudanças acontecem em nível molecular, as situações são evolutivas, o que chamaríamos de "não revolucionárias". Outras vezes seu ritmo é vertiginoso, o jogo de ação e reação se faz imparável dando lugar a situações revolucionárias, e também contrarrevolucionárias. Entre ambas velocidades, existe todo um degrade de situações híbridas cujos ritmos são desiguais, nas quais as tendências não se encontram ainda claramente diferenciadas.

Uma das mais agudas abordagens - senão a mais - deste tipo de situações desde o marxismo se deve a Leon Trotski. As chamadas "situações transitórias". Existe desde situação não revolucionária a uma situação pré-revolucionária, até uma situação pré-revolucionária a outra abertamente revolucionária ou contrarrevolucionária, etc. Seria um erro confundir o termo "transitório" simplesmente com o efêmero ou o limitado. São o preâmbulo de bifurcações no processo histórico. Seu carácter contraditório, confuso e propenso aos giros bruscos por definição não as fazem aptas para os desprevenidos.

Uma situação deste tipo vivemos atualmente na Argentina. Deixamos para trás uma situação de relativa estabilidade - não revolucionária - e nos encontramos diante de momentos preparatórios de importantes redefinições na relação de forças entre as classes. Para analisar esta transição é útil partir da ênfase especial na ação recíproca de fatores objetivos e subjetivos que caracterizam o pensamento de Trotski.

Em nosso caso, os fatores objetivos, ditos muito sinteticamente, estão determinados pelo fim do ciclo econômico excepcionalmente favorável motorizado pelo boom das commodities que durou por uma década. Cristina começou a lidar com a desvalorização de 33% em 2014 e a preparação de um novo ciclo de endividamento externo (pago ao Club de Paris, ao CIADI, intenção de pagar os fundos abutres). Porém teve sorte, Scioli perdeu em 2015. Não ficou a cargo do ajuste como o PT no Brasil, com a vitória de Dilma Rousseff.

Macri assumiu com gosto as tarefas levantadas, sem culpa ou remorso. Rapidamente iniciou o novo festival da dívida. A distribuiu com os sojeiros, os bancos, as empresas da mineração, as empresas privadas, os capitalistas em geral, seus amigos. No entanto para o ajuste ele tropeçou, para onde ir, com os "fatores subjetivos". Em 2001 se retirou um presidente eleito pelas urnas com a mobilização popular, passaram-se mais de uma década e meia, porém coisas assim deixa, sua marca. Macri foi, como gosta de dizer; "o mais liberal que a relação de forças o permitiu".

No entanto, a relação de forças não é externa, depende dos "fatores objetivos". Mesmo que não exista agentes políticos que queiram assumi-los, os choques entre as classes são inevitáveis quando as condições que sustentaram uma relação de forças deixam de existir. Isto é o que "conceitualiza" Melconian quando diz a Macri "enrolou dois anos com boa onda". Mas a realidade é que após o "choque" poucos meses depois de tomar posse, houve um segundo ataque depois do triunfo eleitoral de 2017, o chamado "reformismo permanente". Mas se deparou com luta de classes. E aqui chegamos ao 18 de dezembro como batismo da atual "situação transitória" que se vinha gestando.

Ação e reação

O 18D foi uma primeira prova da relação de forças, um julgamento entre as classes. Não se tratou de uma mobilização de protesto, mas sim de uma ação independente da luta de classes que atuou como catalizador da insatisfação popular. A seis meses destes acontecimentos é inevitável perguntar-se o que passou em dezembro.

Nesse ponto também é muito útil recorrer a Trotski. O fundador do Exército Vermelho põe ênfase especial que a "relação de forças" entre as classes não pode ser entendida como uma abstração, pois não explica por si mesma a evolução de uma situação. A força subjetiva da classe trabalhadora surge de uma complexa interação entre classe, partido e direção. Seu ponto de partida, dizia, é que uma "direção", não é, em absoluto, o ’simples reflexo’ de uma classe", o que abre múltiplas contradições.

A insatisfação e a vontade de se mobilizar presente em importantes setores de trabalhadores, apesar das ameaças certas de repressão, foi um grande motor das jornadas do 18D. Do lado das direções, o triunvirato da CGT não chamou a mobilização e tentou por todos os meios que não existisse a paralisação que eles mesmo decidiram convocar. Moyano foi olimpicamente apagado. Nesse marco, milhares se mobilizaram nas colunas de diferentes sindicatos, outros o fizeram apesar de seus sindicatos, houve uma importante presença da esquerda, e dos movimentos de "trabalhadores informais" e desocupados.

O resultado desta equação de forças divergentes foi uma mobilização de 100 mil pessoas seguida depois dos enfrentamentos, por "cacerolazos" e milhares de jovens e estudantes que chegaram pela noite na Praça do Congresso e em outras pelo país. Quantos não se mobilizariam com uma paralisação geral e uma convocatória unificada? É difícil se aventurar em um número, mas o que sim é claro, é que a burocracia salvou a vida de Macri.

A arte da guerra, dizia Clausewitz, se distingue de todas as outras artes que não atuam sobre um objeto inerte ou passivo, e sim contra um vivo que reage. Na luta de classes acontece o mesmo. Depois do fracasso do 14D, Macri esteve perto de escalar e passar a reforma da previdência por decreto, mas aceitou a ajuda do peronismo para votá-la no Congresso. Depois dos acontecimentos do 18D não hesitou em colocar nas suas mãos "todo o peso da lei" com prisões e perseguições "em escala" de manifestantes e militantes de esquerda. Finalmente debilitado, decidiu limitar-se, mantendo processos (e atualmente com escandalosas "recompensas"). Teve de contentar-se com seu triunfo de pírrico.

A conjuntura do fantasma de dezembro vem do lado das direções oficiais do movimento operário. O triunvirato aprofunda sua trégua. Moyano encerrou seu ato de 200 mil pessoas no 21F fechando a perspectiva de ações de luta unificadas, chamando a "votar bem" pelo peronismo em 2019. Os dirigentes sindicais do kirchnerismo coincidiam nessa linha. Com essas garantias, no 1 de março Macri se sentou diante do congresso com as bandeiras do gradualismo recarregadas. Como por um passe de mágica parecia não reconhecer nenhum inimigo a vista, tanto que lançou a linha de "debater" o aborto para evitar um choque frontal com o movimento de mulheres no 8M.

O governo aproveitou o tempo para recuperar-se até deixar de lado o “gradualismo” com o tarifaço. Mas a debilidade voltou a aflorar, não o pode impor “limpamente”. A inação do movimento de massas deixou a iniciativa dos grandes capitalistas, os fundos de inversão, os sojeiros e os bancos. Sobre a base do fim da abundância internacional de liquidez barata, se colocaram a pulsar contra o governo e ganharam, produzindo uma desvalorização de 30%. Imitaram o dezembro das ruas com um maio “dos mercados”. Ambos os fatos tomados de conjunto mostram a tendência profunda a enfrentamentos superiores entre as classes.

“São precisamente estes estados transitórios os que tem uma importância decisiva desde o ponto de vista da estratégia política”, disse Trotski a propósito do tipo de situações que estamos analisando. Porque? Por que nelas se definem o sentido da flecha do cenário da luta de classes. Longe de qualquer automatismo ou fatalismo, para o fundador do Exército Vermelho, a ação ou inação de uma força revolucionária realmente existente é parte determinante da evolução da situação mesma na medida de suas forças.

Problemas estratégicos

Agora bem, a possibilidade de impedir um novo saque como os perpetrados pela ditadura, em 1989-91, o em 2001-02, não vai surgir ex nihilo da simples “relação de forças”, nem tão pouco exclusivamente de que o movimento de massas lute em geral. As lutas que tiveram lugar em cada um desses períodos estão como testemunho, desde as mais recentes de 2001 que levaram a queda de De la Rua, até as mais agudas que atravessaram a etapa revolucionária de 1969-76.

Também dependerá de como se combate e com que objetivo. A luta de estratégias e programas no interior da classe trabalhadora e a força material (e moral) que se articule detrás de cada perspectiva nos futuros enfrentamentos serão decisivas na equação. Atualmente Macri se dispõe a tomar a iniciativa. Ainda que os ritmos estejam por se ver, o acordo com o FMI, a planificação de um maior ajuste, as repressões das últimas semanas e especialmente o ataque aos trabalhadores do metrô já são parte dessa preparação. Ao governo não se vê com muitas voltas. Por sua vez, a medida que ele avança, cada vez mais será mais custoso para a burocracia sustentar sua trégua (enfeitada com ações simbólicas) assim como manter separados os setores em luta, que muito provavelmente vão se multiplicar.

Porém, o fato de que uma direção concreta não seja um simples reflexo da classe, tão pouco significa o contrário, que não tenha uma determinada relação com ela. Como demonstra Trotski, uma direção degenerada internamente pode ser “tolerada” durante um tempo prolongado se aquele caráter não tiver sido suficientemente demonstrado nos acontecimentos. Incluindo quando choques fundamentais o deixassem em evidência, a classe trabalhadora tão pouco pode improvisar imediatamente uma nova direção.

Um exemplo disso, dos choques fundamentais que falamos, nós vimos na mais importante ação do proletariado dos últimos tempos, as jornadas de junho-julho de 1975 contra o plano Rodrigo. Vale a pena deter-se um pouco nela.

Naquele momento, apesar da burocracia de Lorenzo Miguel, a resistência operária começava, primeiro generalizando greves por locais de trabalho centradas em demandas econômicas. Miguel chama uma jornada contra o plano Rodrigo para “descomprimir”, porém se transforma em uma paralisação geral com mais de 100 mil pessoas na Plaza de Mayo reclamando, não só a homologação dos convênios, mas também a renúncia de Celestino Rodrigo e López Rega. Se desenvolvem e ganham influência as Coordenações entre as Fábricas que agrupam os setores avançados da classe operária e estas dão continuidade a luta. A burocracia da CGT se vê obrigada a chamar uma paralisação para 7 e 8 de julho. Sua contundência impõe a homologação dos convênios, derruba Rodrigo, e López Rega tem que renunciar e fugir do país.

Pela primeira vez tinha lugar uma greve geral política contra um governo peronista. Até agora, representava o ponto mais alto da experiência da classe operária com o peronismo. A burocracia sindical havia sido amplamente superada pelos acontecimentos. As camadas mais avançadas do proletariado, organizadas nas Coordenações, haviam conseguido impor a frente única a burocracia. Se obtém importantes triunfos parciais (econômicos e políticos). No entanto, o movimento não tinha um programa além da homologação dos convênios que reivindicasse uma resposta à altura da crise de conjunto, e não existia nenhuma direção revolucionária capaz de desenvolver essa experiência com o peronismo para lutar por um governo dos trabalhadores de ruptura com o capitalismo.

O imponente ascenso operário começou a diluir-se em lutas parciais, ficou sem perspectivas, Lorenzo Miguel conseguiu se sustentar à frente da CGT e buscou escorar o governo. Como demostra Trotski, a greve geral coloca a questão de quem tem o poder – o governo de Isabel ficou virtualmente sem ar – porém, por si mesmo isso não se resolveu. Finalmente, a saída política de conjunto terminou sendo dada pela burguesia meses depois com o golpe militar em março de 1976.

Hoje o peronismo e a burocracia sindical, que naquelas jornadas de junho-julho foram atropelados pela ação operária, são infinitamente mais débeis como mediação. Neste aspecto não existe ponto de comparação. Mas este não foi o principal obstáculo com qual se deparou a classe operária naquele então, e sim o de não haver “herdado do período recente – nas palavras de Trotski – os quadros revolucionários sólidos, capazes de aproveitar a derrubada do velho partido dirigente”. Com estes termos o dirigente bolchevique fazia uma referência ao caráter determinante do trabalho estratégico da construção de um grande partido revolucionário de trabalhadores durante as etapas anteriores.

Na atual transição histórica da luta de classes, a referência dessa encruzilhada histórica, que completa 43 anos, pode parecer um tanto distante no passado, porém provavelmente, não é tanto do futuro e serve para ilustrar a tarefa fundamental do presente.

 
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