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INTERVENÇÃO MILITAR
Do Estado de exceção ao autoritarismo?
Jorge Luiz Souto Maior
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Militares inspecionam mochilas de alunos na Favela kelson’s, na zona norte do Rio de Janeiro - Leo Correa/AP

Valdete Souto Severo, em novembro de 2017, formulou um dos mais importantes questionamentos para decifrar o que vem se passando na realidade brasileira, buscando entender como se torna possível viver em paz e tranquilamente durante um regime de exceção. Sua hipótese, da qual não discordo, é a de que as pessoas alteram seus valores diante do medo e das incertezas provocadas pela difusão midiática, em larga escalada, da existência de uma crise, que se apresenta por diversos modos. O discurso incessante da crise, quase sempre desacompanhado de uma explicação, como revela Valdete, põe em questão o que existe e abre as portas para a introdução do novo, tornando possível a quebra dos pactos sociais, políticos e econômicos firmados, mas, ao mesmo tempo, abrindo as portas para tantas outras possibilidades[i].

Queria, se possível, adicionar uma reflexão sobre essa investigação, que me parece verdadeiramente essencial no presente momento, afirmando que não se trata apenas de uma acomodação irresistível a uma situação, ou seja, da instauração de um viver paralelo ao regime, mas também do efeito de um processo (mais rápido ou mais lento, conforme a situação dada) de convencimento e de integração autoral da população aos objetivos e interesses da parcela dominante. Procede-se a introdução do novo que atende, exclusivamente, ao interesse de segmentos sociais específicos, ou seja, sem repactuação, por meio de um processo de aceitação.

É preciso – e urgente – fazer algum esforço intelectivo no sentido da compreensão de como se deu, entre nós, esse processo, pois isso nos tem faltado, desde 2013, quando as estruturas sociais, políticas e econômicas foram postas em questão por um movimento espontâneo de massa. Sem o tempo necessário para uma reflexão, as complexidades do momento se viram excessivamente reduzidas a questões de interesses particulares.

Dito de forma mais clara: naquele momento, em 2013, os intensos problemas sociais refletidos no movimento de massa, que diziam respeito a uma inegável crise das instituições, também marcadas pela falta de democracia, pelas estruturas opressivas, sobretudo aos jovens e que, paradoxalmente, dão origem a um movimento com novas demandas e estratégias de luta, foram reduzidos, por preocupações restritas, a um embate partidário, PT x PSDB. De um lado, dizia-se que o movimento era contra os desmandos da legenda e, de outro, afirmava-se que quem fosse para as ruas estaria contribuindo para fazer o jogo da oposição e desestabilizar o governo. O PT, arvorando-se representante único da esquerda brasileira, mas pensando como governo, dentro de uma lógica interna que já era, àquele instante, da preservação do poder, propugnou que as pessoas e os partidos de esquerda deixassem as ruas.

Na ocasião, em 17 de junho de 2013, adverti o quanto a interdição do conhecimento produzia uma falsa dicotomia, cuja solução, no plano da aparência e da conciliação, resultaria no advento de sacríficos aos trabalhadores:

“O momento, agora, na perspectiva dos trabalhadores e dos movimentos sociais, é de explicitar, sem medo, toda essa conjuntura, que se tentou mascarar pela fórmula da negação do conhecimento sobre o que estava acontecendo, para que fique registrado que os problemas sociais ainda persistem e que, portanto, a mobilização ainda tem razão de ser, sobretudo para que nenhum ajuste de preservação de poder, como forma de superação do momento de crise, seja feito de modo a, novamente, prejudicar os trabalhadores, como se daria, por exemplo, com o acolhimento de alguma das 101 (cento e uma) providências flexibilizantes requeridas pela FIESP, com o não acolhimento da igualdade integral de direitos trabalhistas aos empregados domésticos e, principalmente, com a aprovação dos projetos de lei do ACE e da terceirização, perigo este que se torna mais concreto principalmente agora que o anúncio da redução da tarifa em São Paulo foi feito em uma coletiva com a presença do Prefeito Haddad e do Governador Alckmin.”[i]

Em 24 de junho de 2013, alertava para a necessidade de vencer o terrorismo do pensamento partidariamente comprometido, para tentar “superar a ignorância, alimentada pelo medo, e as formas fingidas de se posicionar”[ii].

Essa forma fugidia de encarar a realidade, no entanto, acabou prevalecendo porque isso interessava aos dois grupos em questão para a polarização das eleições de 2014. A grande mobilização social foi, então, canalizada para esse embate e o que se viu como resultado foi um país dividido em formulações disfarçadas, que desprezavam a realidade, até porque a visualização do real não interessava a ninguém: nem aos grupos políticos dominantes, nem à grande mídia, nem ao poder econômico.

Dentro desse contexto de extremismos irracionais, que reproduziam, de forma inconsciente interesses alheios determinados, o poder econômico viu a oportunidade de abrir ainda mais o espaço para uma atuação sem os limites do pacto institucional fixado na Constituição de 1988 – que foi essencial para a redemocratização formal do país, ou, mais precisamente, para a abertura da tentativa da construção de uma democracia real.

De fato, o projeto formalizado na Constituição de 1988 sempre foi violentado, mas de forma velada, ou seja, pela via da interpretação ou pelo argumento da ineficácia, extraída do princípio da reserva do possível. A forma deturpada como se deu a abordagem do fenômeno de massa ocorrido em 2013 permitiu que se estabelecesse o clima de abalo institucional necessário para destruição dos limites referidos, explicitando-se o Estado de exceção, onde o formal cede espaço, sem qualquer mediação, aos interesses da classe dominante.

Ao contrário do que se dá em ditaduras violentas, o Estado de exceção, que, aparentemente, não abandona a democracia (podendo-se até dizer que Estado de exceção e democracia apenas formal são realidades que se complementam), para se consagrar precisa de uma narrativa justificadora, que atraia não apenas a simpatia da população, como também a sua concordância com a quebra institucional. O maior problema é que nem sempre o disfarce é suficiente e, com isso, o Estado de exceção, já consagrado, tende a ceder espaço ao autoritarismo, para que a força aniquile o que ainda pudesse restar de resistência.

Para melhor entender isso é preciso abandonar, ainda que por um momento, a perspectiva dos interesses particulares ou, mais precisamente, o delimitador eleitoral, que se transformou, presentemente, no falso debate entre direita x esquerda.

Adotando-se esse necessário pressuposto, se poderá perceber que o processo de alargamento do Estado de exceção vem se desenvolvendo no Brasil há algum tempo e foi a sucessão de fatos neste sentido que contribuiu para que se atingisse a conjuntura atual, que, no entanto, não é apenas “mais do mesmo”, como se poderia supor. De fato, a partir de abril de 2016 os limites institucionais são rompidos escancaradamente até se atingir o ponto máximo com a edição do Decerto n 9.288/18 – o da intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro.

Penso que não se conseguirá desenvolver uma análise da situação atual se o esforço for movido por interesses particulares.

Pois muito bem, a retrospectiva histórica mais recente do Brasil exige que se vislumbre o início do processo de convencimento para a implementação do Estado de exceção com a realização da Copa de 2014, que foi visualizada tanto para a consolidação do projeto de poder de um partido quanto para abafar as mobilizações de junho de 2013.

Não se esqueça que o medo dos efeitos de transformações mais profundas que as manifestações de junho poderiam impulsionar conduziu à difusão de uma postura reacionária, que foi utilizada para justificar a ação repressiva baseada em preceitos do Estado de exceção.

Diante do clamor da “opinião pública”, forjado por parte da grande mídia, e em razão das reações dos governantes tanto do Estado quanto do Município, a violência da atuação policial foi impulsionada e até incentivada.

Resultado: na manifestação de 13 de junho de 2013, o que se viu foi uma reação policial com métodos de guerra para conter pessoas que buscavam exercer sua cidadania; pessoas que não praticavam outro ato que não fosse o de estarem participando de uma manifestação política, sendo que as agressões atingiram, inclusive, pessoas que estavam no local exercendo a sua profissão (jornalistas e fotógrafos, por exemplo).

Nas manifestações ocorridas em São Paulo no mês de junho de 2013, mais de 300 (trezentas) pessoas foram “detidas” e diante da acusação do cometimento de dano ao patrimônio, mais de 20 pessoas foram presas, com imputação dos crimes de dano ao patrimônio público e de formação de quadrilha. Os valores das fianças chegaram a ser fixados em até R$20.000,00 (vinte mil reais) e o Ministério Público anunciou que acionaria os presos para o ressarcimento do prejuízo gerado ao patrimônio público. O Movimento Passe Livre pagou mais de R$22.000,00 (vinte e dois mil reais) para alcançar a liberdade provisória dessas pessoas.

Já no que se refere aos danos sofridos por diversas pessoas durante a manifestação de 13 de junho, em virtude da atitude de policiais, os governantes desferiram novas agressões às vítimas: um disse que a ação foi justificada para “preservar a população”, como se os manifestantes não fizessem parte dela, e o outro, simplesmente disse que a “ação foi truculenta”.

As avaliações equivocadas, propositalmente desenvolvidas para projetar dividendos políticos, favoreceram ao aumento das tensões sociais envolvidas.

Quando se poderia esperar que o governo, do Partido dos Trabalhadores, aproveitasse positivamente o momento e viesse a público acolher a voz das ruas por melhores serviços públicos, tendo, inclusive, a oportunidade para: propor taxação de grandes fortunas; formalizar um pacto contra a corrupção; fortalecer a racionalidade do Estado Social, buscando formas de concretizar a gratuidade do transporte público, a escola pública de qualidade, com valorização do professor e investimento em hospitais públicos e postos de saúde; firmar um compromisso social em torno da arrecadação tributária, realizando a reforma necessária para uma tributação progressiva, desonerando o trabalho; repactuar a dívida pública; compreender, difundir e abalizar o projeto constitucional de efetivação dos direitos sociais, notadamente, os direitos trabalhistas; implementar, enfim, formas mais justas de distribuição da renda produzida, sendo que teria amplo apoio popular para isso, o que se viu foi um governo acuado pelos compromissos econômicos feitos para a realização da Copa e não podendo desatender a tais interesses deixou, simplesmente, a onda passar, vindo a público para, de forma extremamente frustrante anunciar três medidas, que foram apresentadas, inclusive, de forma bastante dissimulada, como sendo um acolhimento da “voz das ruas”.

Em pronunciamento em cadeia de rádio e TV, proferido no dia 21 de junho de 2013, a Presidente Dilma Rousseff deixou muito claro que a preocupação principal do governo não seria a de atender o conteúdo da voz das ruas por melhores condições de vida, privilegiando o interesse público, e sim o de levar adiante o “projeto” econômico da Copa, tanto que, embora tivesse esboçado um reconhecimento de que os movimentos sociais eram relevantes, expressões da cidadania, não perdeu a chance de reprimir os movimentos, com a ameaça de utilização das forças armadas, caso estes pretendessem inviabilizar a Copa[iii].

Na ocasião foram apresentadas três propostas de ação concreta, mas que, no fundo, se resumiu a uma, que, na verdade, não foi nada além do que desenterrar uma ideia que há muito gestava nos projetos petistas, o Mais Médico[iv].

Foram propostas completamente dissociadas da realidade, sendo duas apenas promessas vazias e uma, que embora tenha de fato se concretizado, acabou por abalar fortemente a imagem do governo.

Resumidamente, o governo tomou a todos como inimigos, sugerindo que os manifestantes eram “impatriotas” por tentarem inviabilizar a realização da Copa[v], valendo lembrar que a repressão, como forma de viabilizar a realização da Copa de 2014, já vinha sendo adotada desde a Copa das Confederações[vi]. Essa experiência ampliou seriamente os abalos à construção democrática, aprofundando a lógica do Estado de exceção permanente (do que, mais tarde, o próprio governo do PT seria vítima).

O governo aprofundou sua associação com as forças reacionárias, promovendo, inclusive, uma colaboração entre a União e os diversos Estados da Federação, independente de filiação partidária, para a instituição de uma “política federativa de segurança”, conforme assumiu a Presidente Dilma[vii], para abafar as mobilizações populares, suprimindo, na prática, os direitos de manifestação e de reunião.

Sobre o crescente abalo da democracia, em junho de 2013, manifestei-me no texto abaixo reproduzido[viii], alertando para os riscos trazidos pela adoção daquela lógica de preservação dos interesses econômicos do futebol a qualquer custo.

A sanha repressora manteve seu curso e, em novembro de 2013, o Senador Romero Jucá (PMDB) e o Deputado Cândido Vaccarezza (PT) apresentaram ao Congresso Nacional o PL 499, apelidado de “lei antiterrorismo”, que criminalizava movimentos sociais e, por interpretação, também a greve no serviço público. Esse PL foi aprovado em março de 2016, transformando-se na Lei n. 13.260, embora sem a menção aos movimentos sociais.

Já se evidenciava naquele instante, portanto, o aprofundamento do Estado de exceção, que punha em questão não apenas a prática democrática, mas também, mais uma vez, os direitos trabalhistas. A esse respeito, contextualizando, inclusive, a forma como o governo se relacionou com o “rolezinho”, me expressei em texto publicado em janeiro de 2014.[ix]

Em 06 de fevereiro de 2014, o cinegrafista da TV Bandeirantes, Santiago Ilídio Andrade, foi atingido na cabeça por um rojão, acionado, conforme foi divulgado, por manifestantes, durante um protesto contra o aumento da passagem de ônibus, no Centro do Rio, e morreu no dia 10 de fevereiro de 2014. A tragédia deu o impulso necessário para reforçar a campanha midiática contra a índole dos manifestantes e também para justificar a atuação policial contra as manifestações.

Com a Copa se aproximando, o incidente acabou sendo bastante utilizado para difundir a necessidade de desmobilização, sobretudo porque não se conseguia mais esconder os absurdos jurídicos, econômicos, sociais e culturais ligados à realização da Copa.

Algumas pessoas, no entanto, não se dispuseram a silenciar a respeito e saíram em protesto pelas ruas de São Paulo no dia 22 de fevereiro de 2014. Eram mais de mil manifestantes, que, em virtude das ocorrências anteriores, buscaram a estratégia de fazer uma manifestação sem incidentes patrimoniais: “pacífica e ordeira”, como se diz.

Como os manifestantes não cometeram qualquer tipo de ofensa patrimonial e não havendo argumentos para rechaçar as palavras de ordem expressas, o jeito foi conter a manifestação com violência, mesmo sem estopim para tanto. Os relatos de quem estava presente foi o de que os policiais, após horas de passeata, sem justificativa específica, fizeram um cerco e imobilizaram parte dos manifestantes, cerca de 260 pessoas, que ficaram, então, na rua, em cárcere privado, com sua liberdade subtraída, sem que tivessem cometido qualquer tipo de ilícito. Na ação três repórteres que filmavam a cena foram agredidos, não por coincidência, mas para que não houvesse registro. Além dos jornalistas, que estavam a trabalho, foram detidos dentre outros militantes organizados do movimento estudantil, diretores do DCE da Unicamp, militantes de partido (1o de Maio/PSOL) e um professor da USP (ciências moleculares).

Mas, o pior ainda estava por vir, pois sob a desculpa da necessidade de identificar os potenciais baderneiros, “black blocs”, foi iniciada uma seleção de pessoas pela aparência e pela cor da pele, que resultou na libertação dos que eram brancos e aparentemente estudantes, mantendo-se aprisionados os que “pareciam” “black blocs”, quais sejam, os que estavam de roupa preta e os pretos e pobres, segundo o critério adotado...

Essa barbaridade foi cometida no centro da cidade de São Paulo e não em um filme de ficção. Foi presenciada por repórteres da grande mídia, que foram, inclusive, em parte, vítimas dela.

A que ponto se chegou: cidadãos foram agredidos e privados de sua liberdade pelo poder instituído sob o argumento de que alguns dentre eles, não se sabendo quais, poderiam vir a cometer algum tipo de violência contra bens imóveis, encobrindo a verdadeira motivação que foi a de não permitir que se alastrasse o movimento popular de resistência à realização de um evento que interessava apenas a um restrito setor da sociedade brasileira e ao poder econômico internacional, evento que, para se concretizar, trouxe consigo a lógica do Estado de exceção.

Interessante notar que a notícia que saiu a respeito na primeira página do Jornal ao qual um dos jornalistas se vincula foi uma pequena nota, destacando que a PM considerou que a atuação foi um sucesso, pois evitou depredações, consignando o pedido de desculpas do comandante pela agressão a jornalistas, sem pedir desculpas a mais ninguém, claro. Logo ao lado, na mesma página, deu-se grande destaque a uma pesquisa com a seguinte chamada, “Apoio a protesto despenca”, deixando em segundo plano tanto o dado de que o apoio à realização da Copa no Brasil caiu de 79% para 52% quanto os aspectos, noticiados na página C1, de que entre os jovens de 16 a 24 anos o apoio aos protestos é de 63% e que entre as pessoas que possuem escolaridade superior mantém-se na faixa de 72%[x].

E as formas repressivas foram se aprimorando. No primeiro dia da Copa (12/06/14), em São Paulo, uma manifestação, que sairia do sindicato dos metroviários, foi violentamente impedida de iniciar[xi], e no dia 1º de julho/14, em ato realizado, também em São Paulo, a Praça Roosevelt foi sitiada por um contingente de policiais no mínimo três vezes superior ao número de participantes, terminando com agressão policial aos manifestantes[xii].

O que se viu não foi, como preconizado pelo governo, “a Copa das Copas”, e sim a “Copa das tropas”.

Com tudo isso, para manter a governabilidade, o que se conseguiu foi fazer vistas grossas aos atentados a experiências verdadeiramente democráticas, à evolução do Estado de exceção, às alianças com o setor econômico, aos avanços da racionalidade supressiva dos direitos dos trabalhadores e, de forma ainda mais grave, à destruição dos sonhos e do ativismo de quase toda uma geração de jovens, aquela que se mobilizou em junho de 2013.

Essa estratégia fugidia da realidade, para não reforçar a crítica dos adversários, acabou, no entanto, aprofundando o Partido dos Trabalhadores no mundo do disfarce, o que, paradoxalmente, reforçou a ascensão da direita, justamente com o argumento que sempre foi muito caro à esquerda, o desvelamento da verdade.

Talvez tenha sido por isso, aliás, que durante o processo do impeachment o governo do PT não contou com apoio maciço da classe trabalhadora e da juventude, que, de tanto apanhar nos últimos anos, não teve força ou motivação suficiente para se mobilizar contra o golpe, até porque, em certa medida, o golpe contra os seus interesses já estava em curso.

E se é certo que a votação do impeachment não teve nenhuma base jurídica, tendo sido promovida por uma fração da sociedade interessada em levar de forma ainda mais profunda a reforma neoliberal, impondo, inclusive, se lhe for permitido, um retrocesso conservador, é certo também que os “golpistas” são exatamente aqueles a quem os governos petistas elegeram como aliados, não se podendo esquecer, por exemplo, que Michel Temer era o vice de Dilma, que o Ministro da Fazenda de Dilma, nomeado em dezembro de 2014, foi o economista ortodoxo (“Chicago boy”) Joaquim Levy, depois, em dezembro de 2015, substituído por Nelson Barbosa.

Lembre-se também que o Ministro do Desenvolvimento de Dilma era Armando Monteiro Neto, que presidiu a CNI (Confederação Nacional da Indústria) de 2002 a 2010, tendo dito em seu discurso de posse: “O desafio central é promover a competitividade. O que significa reduzir custos sistêmicos e elevar a produtividade. A agenda da competitividade envolve várias áreas dentro do governo e demanda intensa articulação e coordenação. É papel primordial do Ministério do Desenvolvimento realizar essa tarefa. E colocar o tema da competitividade no centro da agenda política do país.”[xiii]

E não se esqueça que Henrique Meirelles, Ministro da Fazenda de Temer, comandou o Banco Central do Brasil durante os 8 anos de governo do Presidente Lula, cargo que é de livre nomeação pelo Presidente da República, retirando-se, em novembro de 2010, para se tornar, em 2012, Presidente do Conselho de Administração da JBS, empresa que havia recebido, até aquele período, mais de 5 bilhões de reais de empréstimos do BNDES[xiv]. Meirelles foi substituído por Alexandre Tombini, que, em 2012, deu início à privatização de aeroportos[xv] [xvi], estradas, ferrovias[xvii] e da exploração do petróleo[xviii].

Não é coincidência, portanto, que nos treze anos dos governos petistas a atividade de auditoria fiscal do Ministério do Trabalho tenha sido sucateada[xix]; que se tenha aumentado o número de trabalhadores terceirizados, que passa de 4,1 milhões, em 2005, para 12,7 milhões, em 2013[xx], boa parte no serviço público federal; e que, em 2013, tinha, segundo o Tribunal de Contas da União, 222 mil trabalhadores terceirizados, com uma despesa superior a R$ 21 bilhões, cabendo reconhecer que, ao contrário do que se verificou nos governos tucanos, que eliminaram concursos para servidores para efetuarem a contratação de trabalhadores terceirizados em larga escala, nos governos petistas o que ocorreu foi uma reversão desse quadro, substituindo-se as contratações irregulares de terceirizados por servidores concursados, embora isso se tenha feito em virtude de atuação do Ministério Público[xxi].

É possível lembrar, também, que a operação GLO, aludida no art. 142 da CF, na Lei Complementar n. 97/99 e no Decreto n. 3.897/01, que autoriza o Presidente da República a usar as Forças Armadas, foi utilizada na Rio+20, em 2012, nas visitas do Papa Francisco, em 2012 e 2013, na Copa de 2014 e também para garantir a implementação das “obras” do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), criado em 2007 e ampliado em 2011, com favorecimento de grandes empreiteiras por intermédio da lei que instituiu a PPP (Parceria Público-Privada – Lei n. 11.079/04), quando, por exemplo, em 2011, se fez uso da Força de Segurança Nacional para reprimir greves de trabalhadores nas obras de Belo Monte, Santo Antônio e Jirau.

Esse resgate histórico não é feito com o propósito de afrontar ou favorecer interesses partidários e sim para demonstrar que o avanço da lógica autoritária entre nós não é um problema localizado e que não deve ser pensado na esfera estreita desses interesses ou, como já dito, da falsa dicotomia esquerda x direita. Aliás, se for para falar especificamente do impeachment haverá sempre quem levante a hipótese de que Dilma foi vítima do próprio mérito ao tentar levar adiante a reforma política, contrariando, inclusive, muitas das forças que lhe poderiam dar apoio naquele instante, ou que incomodavam as políticas de inserção social (mesmo que pautadas pela lógica do consumo) e educacionais realizadas pelos governos petistas, e, especial, da edição da “lei das domésticas” (ainda sem a amplitude ideal), sobretudo em um país ainda marcado pelo escravismo. Na perspectiva trabalhista, se poderá falar em desenvolvimento de uma espécie de “clima favorável” à racionalidade social que teria proporcionado uma releitura da Constituição Federal, da qual resultou certa ampliação jurisprudencial dos direitos dos trabalhadores no âmbito do TST, assim como no STF, neste, especificamente, ao direito de greve, desde o julgamento do MI 712, proferido em 25/10/07, o que, igualmente, teria contribuído para a queda do governo. Mas também haverá quem diga que o que se deu não foi nada além do que o efeito da constatação da fragilidade de um governo que, para se eleger em 2014, teve que assumir compromissos com os trabalhadores, só que, refém de ajustes de governabilidade anteriores, teve que agir em sentido inverso, entretanto, já não tinha, como antes, a capilaridade necessária para conter a mobilização social de contrariedade.

Os pontos centrais dessa análise são outros e se destinam a destacar que o Estado de exceção, por meio de processo de convencimento, já vinha se alastrando desde 2013, com a aquisição de um novo patamar de gravidade em 2016, e de demonstrar que, ao contrário do que alguém possa imaginar, a situação de incertezas jurídicas e de fragilização institucional, advindas do Estado de exceção, muito rapidamente passam a atingir a tudo e a todos, valendo recordar, inclusive, que as suas primeiras vítimas foram exatamente alguns de seus protagonistas.

Esse efeito reverso se verificou, primeiramente, em novembro de 2013, com o julgamento do “mensalão”, ação penal n. 470, que consagrou a teoria do “domínio do fato”, um método de raciocínio que rompeu as bases jurídicas existentes até então e possibilitou, por deduções, extraídas de indícios (convicções formadas por outras provas), com auxílio do juízo da verossimilhança, chegar à imputação de coautoria dos crimes que estavam em análise.

Na sequência, instaurou-se um jogo aberto de julgamento moral, com pressões explícitas de pessoas e instituições que foram, então, feitas reféns do próprio emaranhado de relações em que se envolveram para a consolidação de uma realidade na qual os interesses ainda se harmonizavam, mas depois...

Vivenciando os efeitos dessa pressão, mesmo após ter sido eleito com a promessa de que não mexeria em direitos trabalhistas nem que a vaca tossisse, o governo Dilma, em 30/12/14, editou as MPs 664 e 665 (restringindo o acesso a direitos trabalhistas e previdenciários, como o seguro-desemprego) e, em 06/07/15, a MP 680 (Programa de Proteção ao Emprego), valendo lembrar que, bem antes disso, em maio de 2014, já havia dado indicativos nesta direção com a edição do Decreto nº 8.243, que instituiu a Política Nacional de Participação Social — PNPS. Essa normativa previa a criação de um Sistema Único do Trabalho — SUT, pelo qual, de forma bastante sutil, se retomava a ideia, embutida na antiga Emenda n. 3, de março de 2007, de negar o caráter de indisponibilidade da legislação trabalhista[xxii]. Isso, paradoxalmente, prejudicou o governo porque diminuiu, sensivelmente, o seu apoio popular.

Percebendo o impasse criado pela reação dos trabalhadores – que foram obrigados a lembrar a promessa de campanha, de que não se mexeria em direitos trabalhistas nem que a vaca tossisse – fazendo com que o governo já não conseguisse demonstrar nem, por um lado, apoio popular, nem, por outro, capacidade de aplicar as medidas exigidas pelo capital no ritmo e intensidade demandados, o PMDB, mesmo ainda compondo o governo, em 29/10/15, anuncia o seu programa “Uma Ponte para o Futuro”, que previa a realização de “reformas estruturais” necessárias para alavancar a economia, falando, inclusive, de alterações nas leis e na Constituição, cujas “desfuncionalidades” deveriam ser corrigidas.

Foi um indicativo meramente político, pois embora falasse em “reformas”, o programa em questão não trazia qualquer informação concreta do que seria feito a respeito, fazendo menção expressa apenas, na área previdenciária, à elevação da idade mínima para a aposentadoria, e, na questão trabalhista, a uma atuação para “permitir que as convenções coletivas prevaleçam sobre as normas legais, salvo quanto aos direitos básicos”[xxiii].

De todo modo, esse indicativo foi o impulso que faltava para a abertura do processo de impeachment, que aparece, também, como solução de um impasse.

Assim, após Eduardo Cunha acolher, em 02/12/15, o pedido de impeachment, que começa a tramitar na Câmara em 04/12/15[xxiv], o setor empresarial passou a se manifestar expressamente a favor do afastamento da Presidente, tendo a percepção de que, diante da potencial fragilização das instituições democráticas (o que já vinha se manifestando, vale lembrar, em fórmulas explícitas de Estado de exceção, pelo menos desde 2013), se teria a oportunidade para concretizar um desejo manifestado desde 1989, qual seja, o de reverter a formalização de algumas garantias próprias de um “Estado Social” incluídas na Constituição de 1988 - e, verdade seja dita, tão frequentemente ignoradas de lá pra cá -, notadamente nos aspectos da posição de direitos fundamentais que foi conferida aos direitos dos trabalhadores e da relevância dada à Justiça do Trabalho, sobretudo após a EC 45/04, quando sua competência jurisdicional foi ampliada[xxv].

A FIESP e a CIESP se manifestaram, expressamente, a favor do impeachment em 14/12/2015[xxvi]; a CNA, em 06/04/2016; a CNI e a CNT, em 14/04/2016, ou seja, três dias antes da votação na Câmara, que se deu em 17/04/16. A FEBRABAN não se pronunciou a respeito (o que não significa que estive contra, por certo).

O impeachment, aprovado na Câmara em abril de 2016, foi um efeito do processo de instauração do Estado de exceção, constituindo, ao mesmo tempo, um passo fundamental para levar adiante o projeto de interesse do grande capital no que se refere às tais “reformas impopulares” (trabalhista e previdenciária), que nunca haviam sido, vale lembrar, submetidas ao crivo eleitoral – o que demonstra, por si, a sua base não democrática.

Não se pode deixar de mencionar, é claro, o julgamento do ex-Presidente Lula, cuja tempestividade, para além de seu conteúdo jurídico extremamente discutível, só se explica no contexto da sucessão de fatos constitutivos o Estado de exceção aqui nomeados.

Em março de 2016, quando ainda não se falava expressamente em reforma trabalhista e o impeachment da Presidente era tratado apenas como uma questão de “moralização” do país, fiz a advertência de que aquele seria o passo que faltava para destruir o projeto social fixado na Constituição Federal, levando junto consigo as bases do Estado democrático de direito. Como dito no texto, não seria “nenhum absurdo ou mera força de expressão prever que eventual queda do presente governo venha acompanhada de um ‘comando’ em torno da urgência da implementação de uma intensa reforma trabalhista, na qual a ampliação da terceirização pareceria peixe pequeno, até porque para ser levada adiante requereria o desmonte da Constituição de 1988, atingindo não apenas os direitos trabalhistas, mas também a Justiça do Trabalho, o que seria, sem dúvida, o sonho dourado de uma parcela da classe empresarial (que de brasileira pouco tem), sendo que a isso não se chegaria sem o aprofundamento da lógica do Estado de exceção, situação na qual todos seriam, de um jeito ou de outro, atingidos, inclusive pessoas da classe média que se acham integradas ao capital e que estão nas ruas alimentando esse monstro de sete cabeças.”[xxvii]

Procurando deixar claro que as “cobranças” para a consagração desse projeto não teriam limite, adveio, logo a seguir, em maio de 2016, a prisão do deputado que conduziu o processo de impeachment da Presidente. Desprezando simpatias ou alinhamento ideológico, novamente vim a público, para apontar que aquela situação constituía mais um estágio do avanço do Estado de exceção[xxviii].

O que se viu na sequência foi um governo querendo executar a toque de caixa todo o projeto neoliberal iniciado na década de 90. De cara, em 15/06/2016, o governo apresenta a PEC 241 (a “PEC do fim do mundo”, como ficou conhecida), que, visando atender à ideologia do Estado mínimo, de modo a abrir espaço para a iniciativa privada, propunha alterações constitucionais para impor graves restrições orçamentárias e limitações de gastos, por um período de 20 anos, para todos os Poderes da União e órgãos federais. Andando em velocidade recorde no Congresso, a PEC foi promulgada em 15/12/16, e seu fundamento ideológico e o seu conteúdo são, inclusive, extremamente contraditórios com a ação e os custos que se integram à intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro, que, agora, em fevereiro de 2018, foi proposta pelo governo federal.

É verdadeiramente impressionante a rapidez com que se sucederam os fatos direcionados ao desmonte do Estado e ao atendimento dos interesses exclusivos da iniciativa privada, valendo-se da falência democrática, podendo-se perceber, de todo modo, como o governo Temer foi submetido a cobranças públicas para que efetivasse as reformas trabalhista e previdenciária que havia prometido na “Ponte para o Futuro”[xxix].

No que se refere a um dos temas centrais de todo esse imbróglio político, a reforma trabalhista, depois de idas e vindas do governo, que não se mostrava completamente comprometido com ideia, o passo decisivo veio no dia 10/12/16, quando “vaza” para a grande mídia a informação de que o nome de Temer havia sido citado 43 vezes nas delações da Odebrecht[xxx]. Em resposta, o que fez o governo? Rapidamente, tratou de retomar o tema da reforma trabalhista. No dia 17/12/16, o Ministro do Trabalho, alterando completamente sua fala anterior, veio a público para dizer que o governo faria uma proposta de reforma trabalhista, não sabendo, no entanto, que reforma seria essa. Apenas disse que poderia haver a adoção do “trabalho intermitente”, explicitando, ainda, que não havia consenso a respeito[xxxi]. Foi assim que se organizou, no dia 22/12/16, um grande palanque no Palácio do Planalto, para anunciar a apresentação de um projeto de lei qualquer e para informar que iria se efetivar a liberação, a partir de 1º de fevereiro de 2017, de contas inativas do FGTS.

Daí até a votação final do PL, ao qual se adicionaram, em tempo recorde, todos os pleitos possíveis do setor empresarial, foi um pulo. Vale verificar que o relatório final do PL 6.787/16, apresentado logo no dia seguinte ao da divulgação da lista do Fachin, ou seja, em 12/04/17, não era, inicialmente (em 23/12/16), um grandioso projeto de reforma trabalhista, e, em apenas quatro meses (devendo-se considerar que, de fato, a tramitação tem início em 09/02/17, quando é instalada a Comissão Especial da Reforma e eleito como relator o deputado Rogério Marinho, o que resulta em parcos dois meses de tramitação) se transformou em um texto com 132 páginas, incluindo o Parecer, propondo a alteração de mais de 200 dispositivos na CLT, dentre artigos e parágrafos, todas no mesmo sentido, o da proteção dos interesses dos grandes conglomerados econômicos.

Em 18/04/17, no entanto, o governo perdeu a votação no Congresso para incluir o projeto em regime de urgência[xxxii]. Mas a base aliada do governo não se deu por vencida e, em mais um desrespeito às regras do jogo democrático, colocou-se a matéria novamente em votação no dia seguinte, 19/04/17, quando, então a urgência foi aprovada[xxxiii].

Na base da urgência, em 26/04/17, o substitutivo do PL 6787/16 foi aprovado na Câmara dos Deputados.

Dois dias depois, em 28/04/17, realizou-se aquela que foi considerada por alguns a maior greve geral da história do Brasil, que foi chamada por todas as centrais sindicais e que contou com a participação estimada de 35 milhões de pessoas, atingindo todas as regiões do país, tendo sido integrada, também, por vários movimentos sociais e por relevante parcela da juventude organizada.

Após a divulgação, em 1º/05/17, de pesquisa feita pelo Datafolha, revelando que 64% dos brasileiros compreendia que a reforma trabalhista privilegia os interesses empresariais[xxxiv], e apontando, também, que 71% era contra a reforma previdenciária[xxxv], o jornal Folha de S. Paulo, em editorial do dia 02/05/17, intitulado “Dores da Democracia”, veio a público defender que os governos não devem atender os desejos da maioria da população se assim exigirem as necessidades econômicas[xxxvi].

Desprezando a greve e a opinião pública, em 02/05/17, o projeto da “reforma” começa a tramitar no Senado Federal sem regime de urgência, sob o número PLC 38/2017.

Os limites democráticos já estavam, pois, todos ultrapassados e tudo em nome de se efetivar a reforma que fora prometida pelo governo ao setor empresarial. A supressão dos procedimentos democráticos estava tão evidenciada que o relator da "reforma" na Câmara, deputado Rogério Marinho, no dia 17/05/17, em audiência pública no Senado Federal, acabou confessando isso ao afirmar que nenhuma mudança dessa grandeza se dá sem a "ruptura do processo democrático".

Essa confissão de uma só vez revela tanto a ilegitimidade do governo quanto a dos seus principais objetivos: acabar com a Previdência Social Pública e destruir os direitos trabalhistas.

Ainda assim a aprovação do projeto de lei fraquejava no Senado Federal. Então, talvez para demonstrar que não se suportaria recuo nessa matéria, em 17/05/17, “vaza” a notícia sobre gravação da conversa do dono da JBS com o presidente Temer[xxxvii]. A cartada, é verdade, foi muito forte e o próprio setor econômico chegou a admitir que o governo, nocauteado pela notícia, não teria como levar adiante as reformas. O setor econômico chegou a deixar claro que abriria mão do governo, mas não das “reformas”.

O que parecia uma possibilidade de reviravolta, deixando o governo suspenso por um fio e jogando incerteza sobre as condições para seguir a tramitação dos ataques aos direitos trabalhistas, acabou funcionando para tornar a situação ainda mais trágica, porque o governo e todas as demais forças passaram a atuar na lógica do tudo ou nada, sem se importar com qualquer limite ou aparência, para conseguir a aprovação da reforma trabalhista.

Mais que depressa o governo veio a público para prometer que a “reforma” trabalhista seria aprovada rapidamente[xxxviii]. No dia 23/05/17 já estava pronto o relatório do Senador Ricardo Ferraço, que foi, no mesmo dia, apresentado na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal. Em razão de divergência quanto ao procedimento o relatório não chegou a ser lido na CAE, mas foi considerado lido (sem que tivesse sido – e nada disso importava mais).

E para garantir que não haveria recuo, na tarde do dia 24/05/17, Temer edita um Decreto, autorizando o emprego das Forças Armadas para conter uma manifestação contra o PL.

Finalmente, em 11/07/17, o plenário do Senado aprova, sem modificações, o Projeto de Lei que veio da Câmara, cumprindo consignar que, na ocasião, o portal do Senado apresentava pesquisa na qual 172.168 pessoas se posicionaram contra a reforma e somente 16.791 a favor.

Coincidentemente, no dia seguinte, em 12/07/17, sai a notícia da condenação do ex-Presidente Lula[xxxix]; e o dólar abaixa[xl].

O passo dado na “reforma” trabalhista foi tão espetacular, no sentido do seu alcance, haja vista que alterou profundamente as relações de trabalho no Brasil, sempre no mesmo sentido do atendimento dos interesses do grande capital, que a reforma previdenciária se viu conduzida a segundo plano, embora, claro, não tivesse saído da pauta. Os problemas para a consagração da reforma previdenciária são a exigência do “quórum” qualificado previsto na Constituição Federal e um certo desinteresse, já que a reforma trabalhista pode dar o jeito de acabar com a Previdência pública, abrindo espaço para a Previdência privada, que é o plano maior da reforma.

E se havia alguma dúvida quanto aos objetivos do atual governo na seara trabalhista, essa dúvida restou completamente dissipada com a edição da Portaria 1.129, de 20 de outubro de 2017, que, da noite para o dia, em uma canetada, pretendeu eliminar o conceito de trabalho em condições análogas às de escravo e inviabilizar a fiscalização estatal a respeito[xli]. Depois de receber muitas críticas, a Portaria foi suspensa em 24/10/17.

De todo modo, o ajuste político ainda se vale da pauta das reformas para os mais variados fins.

A maior preocupação do governo e do setor econômico no momento é a de preservar a “reforma” trabalhista, sem, evidentemente, abandonar a pauta da reforma previdenciária e é aí que o Estado de exceção encontra os seus próprios limites, pois, como dito, não abandona, completamente, os postulados democráticos.

O que se passa a dizer, claramente, é que as eleições de 2018 representam um risco para as reformas, vez que podem significar uma reviravolta em todo esse processo, até porque, como efeito da vivência democrática, ainda preservada, todos os meandros das reformas foram exaustivamente difundidos para a opinião pública, até porque, como dito, a “reforma” trabalhista foi, por assim dizer, audaciosa demais em seus enfrentamentos aos preceitos mais rudimentares do Direito do Trabalho.

E não é só isso. Também a vigência da Constituição Federal e o funcionamento regular das instituições responsáveis por sua efetivação, notadamente, a Justiça do Trabalho, que aplica o Direito do Trabalho, visto como um conjunto de normas do qual a Lei n. 13.467/17 (a da “reforma” trabalhista) é apenas uma parte, representam riscos concretos para a consolidação dos interesses representados por dispositivos da “reforma” que contrariam a Constituição e ferem outros preceitos jurídicos ligados aos princípios e conceitos jurídicos trabalhistas, Direitos Fundamentais e Direitos Humanos.

Daí porque há de se levar a sério a projeção de que estejam efetivamente em risco as eleições democráticas de 2018, assim como a sobrevivência das instituições voltadas à efetivação dos direitos constitucionalmente assegurados e daqueles que foram fixados nos pactos de Direitos Humanos.

Não é nenhuma alucinação ou teoria da conspiração a preocupação com um eventual propósito de se levar mais adiante a lógica do Estado de exceção, sendo que como o limite já foi atingido, esse novo passo representaria a instauração de um regime autoritário, pelo qual, então, se teriam as condições para manter, pela força, a situação atual dada pela “reforma” trabalhista e para atingir outros objetivos que a Constituição Federal e as instituições democráticas impedem.

É dentro desse contexto que aparece, subitamente, a intervenção federal no Estado do Rio de Janeiro. Não se trata de ser a favor da criminalidade ou de negar os problemas de violência pública, que são, igualmente, questões de Direitos Humanos. As vítimas, concretas e em potencial, da violência devem ser alvo de um programa de combate à violência, inegavelmente.

O que só estou dizendo é que, analisando toda a história que nos trouxe até aqui, conforme acima elucidado, há razoáveis suspeitas para considerar que a intervenção federal não foi motivada para a implementação de soluções concretas e definitivas dos problemas de segurança pública, até porque não foi precedida da indicação de qualquer plano em que esteja baseada, que seria, inclusive, essencial para justificar o próprio ato institucional em que se baseia.

Ora, se o problema vem de longa data e se na histórica recente não houve alteração substancial dessa realidade, ao menos em termos de número de criminalidade, como advertiu o editorial do Estadão de 16 de fevereiro de 2018[xlii], não se teria um fato novo que justificasse o ato interventivo. Além disso, como adverte Jânio de Freitas, “não há uma só cidade do Estado do Rio entre as dez mais violentas do Brasil. Nem entre as 20. Nem entre as 30”[xliii].

Claro que o fato de nunca se ter tomado providência a respeito antes não é elemento que negue tanto a existência do problema quanto a necessidade de resolvê-lo, pois como dita a sabedoria popular, “antes tarde do que nunca”. O problema é a coincidência do momento, que se apresenta, então, de fato, meramente como uma oportunidade para colocar as forças armadas nas ruas (começando pelas favelas), buscando uma aceitação por meio da difusão do medo e do oferecimento de “segurança”. A aceitação generalizada para a utilização da força e da adoção de medidas fora dos parâmetros legais é o passo decisivo para a eliminação do Estado Democrático de Direito Social.

Se no primeiro momento, alguém até pode se sentir confortável com essa situação, vale lembrar da história recente do país, em que, na sequência do abalo institucional a tendência é a de que todos se vejam submetidos à mesma lógica, sem possibilidade de reação, pois, como também dita a sabedoria popular, “pau que dá em Chico, dá em Francisco”.

Não se trata, pois, de discutir o mérito ou demérito da medida, e sim o que ela representa no percurso da escalada antidemocrática, atingindo já a esfera do autoritarismo.

Ora, o art. 34 da Constituição Federal não autoriza a intervenção federal nos Estados ou no Distrito Federal para uma atuação militar em área exclusiva de segurança pública. Além disso, nada está dito na Constituição que essa intervenção autoriza o Exército a atuar frente aos cidadãos (ainda mais de forma seletiva) como se estivesse em estado de guerra ou que os direitos civis de alguns cidadãos sejam considerados suspensos, como chegou, inclusive, a sugerir o Ministro da Defesa Raul Jungmann, ao prometer para o interventor que ele teria poder para fazer “capturas coletivas”. A fala, é verdade, depois foi revista, mas reflete bem o espírito da intervenção, até porque não se abriu mão, ao menos até agora, da ideia de se autorizar “mandados de busca e apreensão coletivos” sem determinação de local.

Se alguém procurar na Constituição autorizações expressas para uma intervenção dessa natureza não encontrará. Aliás, bem ao contrário, o que verá é que a intervenção deve: “VII - assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais: a) forma republicana, sistema representativo e regime democrático; b) direitos da pessoa humana” (art. 34).

Aliás, para alcançar a efetividade da medida, já se tem preconizado a necessidade de se conferir poder de polícia ao Exército e o oferecimento de garantias de que seus atos não serão, posteriormente, avaliados por alguma “Comissão da Verdade”.

Cumpre perceber, portanto, que lá no final desse longo percurso já não se terá mais nem a lembrança daquela que havia sido a perspectiva inicial que a muitos embalou, da moralização do Brasil, vez que se terá passado para o tema exclusivo da segurança pública, prometida como efeito de implementação da força bruta, mas isso, paradoxalmente, também terá servido para manter fora do crivo da moralidade os agentes dessa nova promessa saneadora, pois a concessão social para o uso de uma autoridade totalizante retira da população o controle da própria vida e das instituições.

Concretamente, ao longo desse percurso várias foram as concessões que, por motivos diversos, foram feitas para que se concebesse como naturais os abalos ao projeto constitucional. Coisas aparentemente simples e inofensivas como, por exemplo, conferir, sem respaldo constitucional, aos entes públicos a possibilidade de efetuarem contratação de trabalhadores pela via da terceirização, frustrando a exigência constitucional do concurso público.

Em exercício de autocrítica, inevitável dizer que quando essas concessões são feitas por quem teria a função de preservar a ordem constitucional deixa-se um grande vácuo que vai se preenchendo pelas mais variadas e incontroláveis iniciativas, sendo ainda mais graves quando envolvem questões ligadas à própria administração da Justiça, porque com isso se estabelece uma espécie de convivência retórica com a informalidade institucional, gerando uma conta que algum dia será cobrada.

A forma como a grande mídia tem tentado fragilizar o Judiciário representa o mesmo procedimento de pressão a que foram submetidos os agentes políticos, para contribuírem com o desenvolvimento do Estado de exceção, sendo que muitos ainda se viram vítimas da situação criada.

É importante que os integrantes do Judiciário percebam o contexto histórico em que estão inseridos e que, na ânsia de defenderem o que entendam ser legítimos interesses pessoais, não acabem se tornando reféns do próprio argumento, para não se verem, mais adiante, induzidos a corroborarem os arroubos autoritários que se avizinham ou, o que seria ainda pior, para que nem consigam perceber a quebra do regime democrático.

Quando se chega a admitir um ato dessa magnitude sem previsão Constitucional, mesmo que se concorde integralmente com as suas justificativas, a mensagem que fica é que a ordem constitucional não está mais em vigor e a própria força bélica do Exército nas ruas cumpre o papel de dizer que essa página foi virada, para o bem e para o mal, e o que se avizinha na sequência é uma grande incógnita, que pode, antes, inclusive, desencadear uma guerra civil, sem vítimas delimitadas.

Independentemente da posição social ou da formação ideológica que se possa ter, não se pode deixar de reconhecer que essa concessão nos conduz a um estágio pleno de incertezas e inseguranças, devendo-se perguntar se todas isso vale mesmo a pena, ainda mais sabendo que seus verdadeiros propósitos, por ora, foram, unicamente: a) elaborar e preservar a vigência de uma “reforma” trabalhista inconstitucional; b) empurrar goela abaixo da população uma reforma previdenciária que atende exclusivamente ao interesse de conglomerados econômicos; e c) de forma contraditória com os interesses de muitas pessoas que a apoiam, manter impunes alguns agentes políticos.

As concessões que foram sendo feitas desde 2013, de forma crescente, à rigidez das garantias constitucionais, pelas mais variadas razões, sob o argumento de serem inexoráveis e necessárias, primeiro, em nome do “patriotismo”, depois, para “moralizar” e “modernizar” o país, e, agora, para conferir segurança pública, enquanto que, em paralelo, de forma concreta, o que se fez foi implementar mudanças jurídicas inconstitucionais para servir aos interesses de alguns (interesses que, mesmo que se considerem altamente relevantes, não foram, em momento algum, submetidos ao crivo do voto popular), têm se acumulando para se promova a aceitação de um regime autoritário, até porque a preservação do exercício da democracia pode custar a própria sobrevida das “reformas” impostas.

Pode ser que estejamos, portanto, a um pequeno passo de adentrar o estágio definitivo da obediência servil, da censura, da ausência de liberdade de expressão, de eliminação da liberdade de imprensa e da busca democrática da melhoria de vida e da efetivação dos direitos sociais.

Felizmente, muitas têm sido as vozes que, percebendo o potencial de descontrole que a intervenção pode gerar, até porque as demandas para novas medidas dessa natureza advirão de outros Estados (vislumbrando os seus dividendos políticos e econômicos), estão se levantado contra a medida, ou ao menos contra a sua oportunidade e os seus efeitos correlatos, merecendo destaque a Nota Técnica da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) e a Câmara Criminal do Ministério Público Federal (2CCR)[xliv] e da Associação Juízes para a Democracia[xlv], o que não deixa de ser uma oportunidade para que também se perceba, enfim, o quanto a “reforma” trabalhista foi impulsionada pela mesma lógica antidemocrática, como vem tentando demonstrar, há algum tempo, a grande maioria dos profissionais da área do Direito do Trabalho.

Talvez não seja nada disso. Talvez essas sejam advertências fantasmagóricas, alarmistas, como se costuma dizer. Talvez seja “simplesmente”, uma tentativa do governo federal de alcançar popularidade e viabilizar uma candidatura, o que, convenhamos, seria de uma irresponsabilidade sem tamanho.

O problema é que as diversas situações pretéritas em que se podia razoavelmente prever o que estava por vir (e que se confirmou) não me permitem ser tão pessimista quanto às advertências feitas e, menos ainda, otimista com relação às consequências reais desse porvir, até porque não me parece que alguém esteja sabendo ao que essa quebra recorrente e irresponsável de institucionalidade pode nos levar.

Mas se a análise do concreto nos permite compreender o contexto em que os atos se realizam e perceber a quais interesses servem e quais as consequências que geram, tem-se como resultado, ao menos, a possibilidade de tentar reverter a situação. No mínimo, a ninguém será dado dizer que foi atropelado pela história ou que foi envolvido pela inexorabilidade de fatos imprevisíveis.

Seja lá qual for a opção, que ao menos seja fruto de uma vontade consciente.

São Paulo, 22 de fevereiro de 2018.

[i]. SEVERO, Valdete Souto. Há caminhos para resistir à reforma trabalhista. Disponível em: http://justificando.cartacapital.com.br/2017/11/27/ha-caminhos-para-resistir-reforma-trabalhista-2/

[i]. SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. “A redução da tarifa e os trabalhadores”. Disponível em: http://cartamaior.com.br/?/Coluna/A-reducao-da-tarifa-e-os-trabalhadores/28705.

[ii]. SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. Vencendo o terrorismo do medo: a hora da política. Disponível em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Vencendo-o-terrorismo-do-medo-a-hora-da-politica/4/28133
[iii]. “Não posso deixar de mencionar um tema muito importante, que tem a ver com a nossa alma e o nosso jeito de ser. O Brasil, único país que participou de todas as Copas, cinco vezes campeão mundial, sempre foi muito bem recebido em toda parte. Precisamos dar aos nossos povos irmãos a mesma acolhida generosa que recebemos deles. Respeito, carinho e alegria. É assim que devemos tratar os nossos hóspedes. O futebol e o esporte são símbolos de paz e convivência pacífica entre os povos. O Brasil merece e vai fazer uma grande Copa. Minhas amigas e meus amigos, eu quero repetir que o meu governo está ouvindo as vozes democráticas que pedem mudança. Eu quero dizer a vocês que foram, pacificamente, às ruas: eu estou ouvindo vocês. E não vou transigir com a violência e a arruaça. Será sempre em paz, com liberdade e democracia que vamos continuar construindo juntos este nosso grande país.”

[iv]. “O foco será: primeiro, a elaboração do Plano Nacional de Mobilidade Urbana, que privilegie o transporte coletivo. Segundo, a destinação de 100% do petróleo para a educação. Terceiro, trazer de imediato milhares de médicos do exterior para ampliar o atendimento do SUS.”

[v]. Dilma defende legado do Mundial e diz que haverá “segurança pesada”. Notícia publicada no jornal Folha de S. Paulo, edição de 17/04/14, p. D-4.

[vi]. http://copadomundo.uol.com.br/noticias/redacao/2013/06/15/policia-dispersa-manifestantes-com-bombas-e-torcedores-sofrem-com-gas.htm#comentarios.

[vii]. http://www1.folha.uol.com.br/poder/2014/07/1484968-dilma-diz-que-seu-governo-sera-marcado-pelo-investimento-em-infraestrutura.shtml

[viii]. “A Copa das Confederações: a democracia em jogo
Assistindo, no canal Sportv, as prévias do jogo Brasil x Japão, vi a notícia sobre uma manifestação de pessoas contrárias à utilização do dinheiro público para a realização da Copa. Na imagem, as pessoas estavam dentro de um círculo formado por policiais. E o narrador, destacando a existência do cerco, dizia: “Está tudo sob controle”.
Momentos depois a imagem mostrou que houve uma dispersão dos manifestantes e que a polícia estava atirando bombas de gás lacrimogêneo. E o narrador expressava-se, preocupado, no sentido de que as bombas estavam “assustando os torcedores”. Com a retirada dos manifestantes do local pela polícia, o narrador concluiu que os torcedores podiam chegar em “paz” ao estádio.
Veio, na seqüência, o corte da imagem de pessoas chegando para assistir ao jogo, fazendo festa e demonstrando-se plenamente felizes.
E, assim, tudo voltou à normalidade…
Mas, não há normalidade alguma em impedir, pela força, uma manifestação política, que era pacífica e não infringia nenhum dispositivo da Constituição brasileira. Até porque é mesmo necessário que a população brasileira, que gosta de futebol, mas que antes de tudo ama este país, tenha o direito de se indignar e de revelar as mazelas que giram em torno da Copa, sobretudo no que se refere à utilização do patrimônio público, o dinheiro do BNDES, do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS), do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT) e do PIS/PASEP, para o financiamento das construções dos estádios, palcos de eventos privados na Copa e depois dela, mediante concessões.
Fala-se em ganhos indiretos à sociedade pela realização dos jogos. Mas, a que preço? Ao preço da supressão da dignidade, da moralidade, da ética e da legalidade?
No que se refere à população pobre, propriamente dita, o que se tem verificado é uma política ostensiva de higienização, com afastamento da população de rua, proibição de atuação de trabalhadores ambulantes, remoções de famílias de espaços interessantes à especulação imobiliária e incentivo à prostituição, além da adoção de medidas impostas pela FIFA que afrontam a ordem jurídica nacional, que é fincada nos preceitos do direito adquirido, da supremacia dos Direitos Humanos e na racionalidade do Direito Social.
As imagens transmitidas pela TV do jogo de hoje não deixam dúvida: os pobres não foram chamados para a festa! O jornalista Juca Kfouri, com a perspicácia que lhe é peculiar, tem destacado o branqueamento do futebol, que se tem produzido, inclusive, em prejuízo da eficiência futebolística. Complemente-se que se opera uma elitização do futebol, pois este passou, definitivamente, a ser visualizado como um negócio altamente lucrativo, provocando, inclusive, um branqueamento dos torcedores. No estádio em Brasília não havia, em geral, pobres e negros. À população pobre foi reservado o resquício ditatorial de telões em praças públicas, com festejos típicos da estratégia pão e circo…
Não vou me opor a isso, pois o futebol não é um bem social de primeira necessidade. Se a iniciativa privada o vislumbra como um bom negócio e se é natural, no modelo de sociedade capitalista, que se produza esse efeito seletivo e excludente, não há resistência necessária do ponto de vista da ordem pública, até porque o afastamento do povo dos estádios pode ter o efeito benéfico de conduzir as pessoas a percepções reveladoras.
Há, por ora, no entanto, algumas questões a consignar.
Primeiro, como já dito, o apetite capitalista sobre o futebol não pode ser alimentado pelo dinheiro público.
Segundo, não se podem transferir para a esfera pública urbana, com repercussão na ordem jurídica e nas relações sociais, a lógica financeira, vinculada aos interesses de alguns, e as diretrizes organizacionais de uma entidade privada estrangeira, como, ademais, já se evidencia. Verifique-se, a propósito, o quanto o Presidente da FIFA parece estar à vontade para ditar os rumos do Brasil. Na abertura do jogo de hoje o referido senhor chegou mesmo a suprimir, de forma constrangedora, a fala da Presidente Dilma ao dar “uma bronca” na torcida que estava no estádio.
Terceiro, não se pode querer impedir, pelo uso da força policial, que as pessoas se manifestem livremente contra os absurdos jurídicos, sociais e econômicos gerados pelo advento da Copa no Brasil. O que se passou antes do jogo em Brasília, a repressão dos policiais aos manifestantes, para que não houvesse interferência nos negócios do futebol, constituiu grave atentado ao Estado Democrático de Direito, pois a Constituição consagra, expressamente, que a ordem econômica deve respeitar os ditames da justiça social, assegura a liberdade de expressão e traz como preceito fundamental a preservação da dignidade humana.
A grande questão é que não se pode permitir que o maior legado da Copa seja a supressão da democracia, que fora duramente conquistada com o sacrifício de muitas vidas.
Em suma: a democracia está em jogo. Sairemos vencedores?” (SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. “Copa das Confederações: a democracia em jogo”. http://blogdojuca.uol.com.br/2013/06/copa-das-confederacoes-a-democracia-em-jogo/.

[ix]. “O segundo destaque está, aliás, diretamente ligado a este aspecto da garantia da eficácia da legislação trabalhista.
Fato é que, de forma acintosa, o governo brasileiro resolveu fazer letra morta das normas constitucionais, inseridas na órbita dos direitos fundamentais, de proteção ao trabalhador, institucionalizando o trabalho em condições análogas à de escravo, vez que desprezados os direitos trabalhistas, apoiando-se na retórica falaciosa do trabalho voluntário, que não possui qualquer respaldo jurídico, ao menos em nível constitucional, contrariando, inclusive, o compromisso público assumido junto com a FIFA, constante expressamente no art. 29 na própria Lei Geral da Copa:
Art. 29. O poder público poderá adotar providências visando à celebração de acordos com a FIFA, com vistas à:
I - divulgação, nos Eventos:
(....)
b) de campanha pelo trabalho decente; (grifou-se)
Ora, o trabalho decente é um conceito difundido pela Organização Internacional do Trabalho exatamente para impedir a execução de trabalho sem as garantias trabalhistas. Verdade que a legislação nacional (Lei n. 9.608/98), de discutível constitucionalidade, permite o trabalho voluntário, sem a garantia dos direitos trabalhistas, mas este serviço, que pode ser prestado “a entidade pública de qualquer natureza, ou a instituição privada de fins não lucrativos”, deve possuir objetivos “cívicos, culturais, educacionais, científicos, recreativos ou de assistência social, inclusive mutualidade”.
A FIFA está longe de ser uma entidade sem fins lucrativos e o serviço na Copa do Mundo, voltado a uma lógica sabidamente econômica, que é, ademais, o que justificou, na visão do próprio governo, a realização do evento no Brasil, está longe de possuir algum dos objetivos acima destacados.
E assim o governo brasileiro permitiu que a FIFA viesse aqui dar um “rolezinho”, explorando o trabalho de brasileiros e estrangeiros. E a FIFA pode, então, divulgar o “rolê” em seu “site”, da seguinte forma[ix]:
12 - O que eu vou receber por trabalhar na Copa do Mundo da FIFA e nos seus eventos auxiliares?
O trabalho voluntário é por natureza um trabalho sem remuneração. Por conta disso, não haverá pagamento de nenhum tipo de salário ou ajuda de custo para hospedagem. Porém, visando não gerar ônus, o COL e a FIFA irão fornecer os uniformes, um auxílio para o deslocamento até o local de trabalho (dentro da sede) e alimentação durante o período em que estiver atuando como voluntário. (grifou-se)
13 - Qual a duração do turno diário de trabalho voluntário?
O turno diário de trabalho voluntário durará até 10 horas. (grifou-se)
14 - Por quanto tempo preciso estar disponível para o evento?
É necessário ter disponibilidade de pelo menos 20 dias corridos na época dos eventos.
15 - Existe alguma diferença entre os tipos de voluntários?
Existem algumas funções que possuem requisitos muito específicos e, por isso, necessitam de conhecimentos e habilidades específicas. Isso leva à criação de uma organização baseada em Especialistas e Generalistas:
Os especialistas atendem a áreas como imprensa, departamento médico, serviços de idioma, etc.;
Os generalistas atendem a todas as outras áreas de trabalho e têm foco no atendimento ao público em geral.
16 - Eu não moro em nenhuma das sedes da Copa do Mundo da FIFA. Vou poder participar?
A inscrição online pode ser feita de qualquer local, mas é importante que as pessoas saibam que terão de estar disponíveis para o trabalho no período determinado e na cidade na qual forem alocados/escolherem, sabendo que o COL não proverá nenhum tipo de auxílio para a hospedagem. (grifou-se)
(....)
18 - Os voluntários poderão assistir aos jogos?
Não serão disponibilizados assentos para os voluntários. Alguns poderão estar trabalhando nas arquibancadas ou em áreas com visibilidade para o campo, mas é importante lembrar que estarão trabalhando e, por isso, não deverão ter tempo para assistir aos jogos. Nos intervalos do seu horário de trabalho, no entanto, poderão ir ao Centro de Voluntários, onde poderão assistir por alguns momentos a alguma partida que esteja sendo transmitida.
Claro que a medida auxilia também o interesse econômico do próprio governo brasileiro. Este planeja valer-se da previsão normativa de excepcionalidade em questão para angariar o trabalho de até 18 mil voluntários, sendo que a previsão de voluntários da FIFA é de 15 mil. Ou seja, um dos legados concretos da Copa será o histórico de que durante a sua ocorrência evidenciou-se o estado de exceção de modo a atingir, diretamente, a ordem constitucional pertinente aos direitos fundamentais de natureza trabalhista, renegando a condição de cidadania a pelo menos 33 mil pessoas.
As concessões do governo brasileiro à FIFA vão além, muito além, do poder que lhe fora concedido, principalmente quando pensamos a Constituição do ponto de vista da realidade teórica que lhe confere sustentação como instrumento de garantia do Estado Democrático de Direito a serviço do poder popular.
Nem se a presença da FIFA no Brasil, para a Copa de 2014, fosse mera brincadeira de criança, o governo brasileiro poderia chegar ao ponto em que chegou, pois até na brincadeira se preserva a noção de legitimidade, como se verifica na seguinte cantiga da roda
Se essa rua
Se essa rua fosse minha
Eu mandava
Eu mandava ladrilhar
Com pedrinhas
Com pedrinhas de brilhante
Para o meu
Para o meu amor passar
A rua não é do governo e ele não pode ladrilhá-la com pedrinhas de brilhante para a FIFA passar e explorar.” (SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. “O ‘rolezinho’ da FIFA no país de Pedrinhas em Estado de Exceção Permanente”. In: https://blogdaboitempo.com.br/2014/01/21/o-rolezinho-da-fifa-no-pais-de-pedrinhas-em-estado-de-excecao-permanente/.

[x]. Folha de S. Paulo, edição de 24/02/14.

[xi]. http://www.cartacapital.com.br/sociedade/policia-militar-dispersa-manifestantes-contra-a-copa-1037.html.

[xii]. http://jornalggn.com.br/noticia/testemunhos-da-truculencia-policial-em-ato-na-praca-roosevelt.

[xiii]. http://g1.globo.com/economia/noticia/2014/12/monteiro-destaca-papel-da-industria-e-diz-que-competitividade-e-desafio.html.

[xiv]. http://exame.abril.com.br/revista-exame/edicoes/1012/noticias/o-preco-de-henrique-meirelles.

[xv]. http://www.destakjornal.com.br/noticias/rio/obra-de-r-153-milhoes-antes-da-privatizacao-156727/.

[xvi]. http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,governo-arrecada-r-24-535-bi-em-leilao-de-aeroportos,101886e.

[xvii]. http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,governo-muda-de-rota-com-plano-bilionario-de-privatizacao-de-estradas-e-ferrovias-imp-,917165.

[xviii]. http://www.cut.org.br/noticias/volta-dos-leiloes-de-petroleo-e-crime-de-lesa-patria-denunciam-petroleiros-de-sp-ba12/.

[xix]. http://oglobo.globo.com/economia/ministerio-do-trabalho-perde-estrutura-relevancia-16580932.

[xx]. ASSUNÇÃO, Diana. “Nos governos Lula e Dilma a terceirização saltou de 4 milhões para 12,7 milhões de trabalhadores”. In: http://www.esquerdadiario.com.br/Nos-governos-Lula-e-Dilma-a-terceirizacao-saltou-de-4-milhoes-para-12-7-milhoes-de-trabalhadores.

[xxi]. http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/151005_sessao8.

[xxii]. SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. “Participação popular ou atentado à classe trabalhadora.” In: https://blogdaboitempo.com.br/2014/09/29/sut-participacao-popular-ou-atentado-a-classe-trabalhadora/

[xxiii]. http://pmdb.org.br/wp-content/uploads/2015/10/RELEASE-TEMER_A4-28.10.15-Online.pdf

[xxiv]. http://radioagencianacional.ebc.com.br/politica/audio/2015-12/processo-de-impeachment-de-dilma-comeca-tramitar-na-camara

[xxv]. E já era possível vislumbrar o quanto os direitos trabalhistas estavam em risco: SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. “2015: velhos ataques e novas resistências.” In: http://www.jorgesoutomaior.com/blog/2015-velhos-ataques-e-novas-resistencias

[xxvi]. http://oglobo.globo.com/brasil/fiesp-ciesp-apoiarao-impeachment-da-presidente-dilma-18293920, acesso em 14/07/16.

[xxvii]. SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. A emergência da defesa da declaração dos direitos sociais. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2016/03/23/a-emergencia-da-defesa-da-declaracao-dos-direitos-sociais/

[xxviii]. SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. E o Estado de exceção avança. Disponível em: https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/E-o-Estado-de-excecao-avanca-/4/36083

[xxix]. Vide relato feito em: SOUTO MAIOR, Jorge Luiz. A quem interessa essa reforma trabalhista. Disponível em: https://www.jorgesoutomaior.com/blog/a-quem-interessa-essa-reforma-trabalhista.

[xxx]. http://www1.folha.uol.com.br/poder/2016/12/1840250-nome-de-temer-e-citado-43-vezes-em-delacao-de-executivo-da-odebrecht.shtml

[xxxi]. http://jconline.ne10.uol.com.br/canal/economia/noticia/2016/12/17/jornada-flexivel-de-trabalho-ainda-nao-e-consenso-afirmaministro-263953.php

[xxxii]. https://www.poder360.com.br/congresso/saiba-como-temer-perdeu-a-votacao-sobre-reforma-trabalhista-na-camara/

[xxxiii]. https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2017/04/19/camara-reverte-derrota-e-aprova-urgencia-para-reforma-trabalhista.htm

[xxxiv]. http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2017/05/1880028-para-60-dos-brasileiros-novas-leis-trabalhistas-beneficiam-os-patroes.shtml

[xxxv]. http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2017/05/1880026-71-dos-brasileiros-sao-contra-reforma-da-previdencia-mostra-datafolha.shtml

[xxxvi]. http://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2017/05/1880242-dores-da-democracia.shtml

[xxxvii]. http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2017/05/dono-da-jbs-grava-conversa-com-michel-temer-diz-o-globo.html.

[xxxviii]. http://www1.folha.uol.com.br/mercado/2017/05/1888611-reforma-trabalhista-sera-aprovada-no-senado-nesta-semana-diz-ministro.shtml
https://www.poder360.com.br/congresso/eunicio-quer-votar-reforma-trabalhista-no-senado-ainda-em-maio/

[xxxix]. http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2017/07/sergio-moro-condena-ex-presidente-lula-9-anos-e-6-meses-de-prisao.html

[xl]. https://economia.uol.com.br/cotacoes/noticias/redacao/2017/07/12/dolar.htm

[xli]. Vide em: https://g1.globo.com/economia/noticia/portaria-exclui-da-definicao-de-trabalho-escravo-quase-90-dos-processos-aponta-ministerio-publico.ghtml.

[xlii]. “Uma intervenção injustificável”. Disponível em: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,uma-intervencao-injustificavel,70002192628

[xliii]. “As pontas da ilegalidade”. Folha de S. Paulo, ed. 22/02/18, p. A-10.

[xliv]. http://www.mpf.mp.br/pgr/noticias-pgr/ministerio-publico-federal-lanca-nota-tecnica-sobre-intervencao-federal-no-rio-de-janeiro

[xlv]. http://www.ajd.org.br/noticias_ver.php?idConteudo=873

 
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